Valentina
Eu andava por aquele lugar completamente deslumbrada com cada vitrine que eu me deparava, ali não era lugar que uma menina como eu costumava ir com seus pais, em dia de domingo, para ser paparicada com aquelas roupas chiques, muito menos para comprar os meus pincéis, giz de cera e papel específico para que eu pudesse fazer minhas pinturas, não, aquele lugar era um que eu deveria manter distância, já que eu não tinha dinheiro nem para pagar o estacionamento do carro que a gente não tinha
Dez anos de idade, a idade de uma menina que deveria estar ainda vivendo os seus sonhos, no seu mundo de conto de fadas, aquele que eu conseguia retratar perfeitamente em cada desenho meu
Aquele era o meu único refúgio, o de desenhar meus sonhos, todos aqueles que eu queria muito que fossem realidade, eu queria fugir para o meu mundo de imaginação ao invés de ter que presenciar as brigas dos meus pais todo o santo dia
Minha mãe, Francisca, era uma mulher amargurada que só sabia jogar na cara do meu pai que, mesmo ele, com muito esforço conseguindo manter a casa, não passava de um homem fracassado que não conseguia satisfazê-la nem na cama quanto mais na vida
Isso não era uma coisa que uma menina de dez anos devia escutar, mas essa já era idade demais, pelo o que eu me lembre, desde que tenho consciência escuto minha mãe falando isso do meu pai, um cara honesto, que tinha os seus sonhos, mas que segue igualzinho a minha mãe, com a vida toda quebrada, a diferença é que ele não desconta a sua frustração nela
Nela não, mas em mim sim, é como se eu fosse a sua válvula de escape, ele nunca que se atreveu a me tocar, a me bater, mas as palavras doem muito mais do que um tapa, quantas e quantas vezes eu desejei que ele machucasse meu corpo ao invés do meu coração
Naquele dia em específico a briga foi muito maior do que qualquer outra e eu nem sabia direito o motivo, só deu para reparar que o estopim foi uma quantia em dinheiro, o que na verdade, sempre era, mas como eu disse, por algum motivo naquele dia foi maior
Meu pai gritava e gritava, assim como a minha mãe, sem nenhuma vergonha dos vizinhos o que não era comum, todas as vezes que as brigas começavam, eles garantiam aquele cuidado
O pior de tudo foi que meu pai me pegou parada no rumo do batente sem porta da nossa casa pequena, os cômodos era todos interligados por um simples hall que pegava o meio da casa toda, os móveis eram simples, o sofá chegava a estar rasgado, a nossa televisão ainda nem era daquelas modernas, fininhas, ela tinha era um tubo enorme atrás, mas eu nem ligava muito porque passava a maior parte do meu tempo livre, aquele que eu buscava depois de deixar a casa simples num brinco
Foi pior porque meu pai não pensou duas vezes antes de vir ao meu encontro com a raiva tomando todo o seu corpo e também porque ele não exitou antes de me dar aqueles tapas
Aquilo nunca tinha acontecido, ele acabava comigo, mas era com as palavras, com as ações, com seu desprezo e no modo que dizia que eu não fazia a mínima diferença para ele e também quando ele me dizia que não tinha sido homem suficiente para dar à minha mãe um filho digno daquela família, nunca foram tapas, nunca ele me machucou daquele jeito
Parada ali na frente daquela vitrine eu conseguia ver a minha imagem refletida pelo vidro e julguei que tinha conseguido disfarçar bem meus hematomas debaixo daquela blusa fina de manga que eu vesti, sorte minha que o tempo estava fresco, típico da cidade de São Paulo
Meu cabelos lisos ondulados, numa cor castanha clara estavam presos num r**o de cavalo alto e eu carregava uma mochila nas costas, sem muita roupa, era mais as minhas coisas de pintura mesmo, lápis, pincéis e outras coisas
Eu não pensei duas vezes antes de arrumar as minhas poucas coisas e sair de casa, sem rumo, escutando a minha mãe gritar ao fundo para que eu deixasse de manha e voltasse para dentro de casa, só percebi que não tinha o suficiente quando, ainda parada na frente do meu reflexo, minha barriga começou a roncar
Lucas – Está tudo bem? Você está perdida
Eu estava tão presa naquele lugar que nem reparei na presença de um garoto ali, bem do meu lado. Aquele foi meu dia de novidades, eu tinha fugido de casa, sem saber para onde ir, não tinha nem o arroz e o feijão que era me garantido, pelo menos isso, e um garoto tinha vindo conversar comigo
Sim, novidades, isso nunca acontecia
Lucas – Você é muda?
De repente o menino começou a fazer uns gestos que eu não tive a mínima ideia do que significava e por isso, acabei dando a minha maior gargalhada. Suas sobrancelhas fez um gesto de “o que está acontecendo?”, me fazendo rir mais ainda, eu esqueci até o tamanho da minha fome
Valentina – Desculpa, desculpa... mas eu não sou surda, só achei estranho mesmo a sua ousadia de vir conversar com uma menina que você nunca viu
Lucas – Estranho é esse teu jeito de falar, nossa, parece um adulto falando
Valentina - Adulto? Não, é meu jeito normal de falar
Segurança – Patrão, é melhor a gente ir para outro lugar
Lucas – Não Tedy, pode ficar tranquilo, ela não vai me fazer nenhum m*l, não é?
Valentina – E como eu poderia te fazer m*l? Olha pra mim
Realmente, como uma menina, do meu tamanho, mais fraca que uma vara seca, poderia fazer algum m*l para aquele menino, ainda mais acabando de saber que ele tinha gente que vivia o vigiando, não, não tinha como
O segurança olhou para mim e tentou me estudar, deu para perceber, assim como ele percebeu que eu não era nenhuma menina sendo usada para afastar o seu patrãozinho. Depois de uns segundos, seus ombros relaxaram e ele conseguiu ficar tranquilo com a minha presença próxima do garoto
O Ted era um cara de meia idade, eu não consegui descobrir muito bem qual seria, só sei que para mim, ele era grande e velho, não muito velho, mas da idade do meu pai mais ou menos
Lucas- Eu estou com fome e você? Topa fazer um lanche comigo?
A minha resposta estava na ponta da língua, mas daí eu pensei que não tinha dinheiro para acompanhar o menino naquele lanche, então não disse nada, só fiquei olhando pra ele
Lucas – Meu tio me deu dinheiro para poder comprar, vamos lá, eu p**o para você também
Ele era tão gentil e acho que nem percebia o quanto estava me fazendo bem, porque ali, prestando atenção em tudo o que ele me dizia, eu me esqueci que tinha fugido de casa, me esquecia da surra que levei do meu pai e da minha mãe tentando segurar ele para não me deixar daquele jeito, me esqueci até que estava com os meus braços roxos, só me lembrei quando sentei na praça de alimentação do shopping e tentei puxar a manga da minha blusa para poder comer o lanche sem me sujar
Até aquilo era difícil de eu fazer, aliás, eu acho que nunca comi um lanche que era comprado e muito menos um que vinha suco e até brinquedo junto, na minha casa era tudo muito igual, arroz feijão e carne e uma salada, quando muito, minha mãe conseguia comprar aqueles sucos de saquinho que a gente colocava água e virava dois litros, mas era só também
Nunca pensei que aquilo seria tão gostoso, cada mordida que eu dava a vida voltava pra mim, as minhas forças, eu comi como se só existisse aquilo na face da Terra, pra mim era assim já que eu não tinha dinheiro nem para comprar um pão seco
O menino só me olhava, sem dizer nada...
Sabe aqueles coletes de linha que os meninos usam em cima de camisa de manga comprida? Ele estava vestido assim, o colete era vermelho com detalhe azul e a sua calça era azul, jeans, eu guardei cada detalhe do seu rosto, o seu jeito de olhar, a cor dos seus olhos, o jeito com que a sua franja caía no seu olho e o irritava, tudo...
Segurança – A gente precisa ir patrão, o seu tio já ligou três vezes
Lucas – Está bem...
Valentina – Então... a gente se vê por aí né
Lucas – Você mora aqui perto? Eu sempre venho aqui para o shopping quando não tenho nenhuma atividade extra e meu pai e tio tem alguma reunião no trabalho
Valetina – É? E sua mãe
Lucas – Ela morreu quando eu nasci...
Seus olhos olharam para o chão quando ele me disse isso
Lucas – Mas me diz, você mora aqui perto?
Valentina – Na verdade não
Lucas – Entendi... é que eu queria te ver de novo, gostei de você
Valentina: Você gosta de cartas?
Lucas – Não muito, mas por quê pergunta?
Valentina – Porque a gente se ver vai ser um pouco mais difícil, mas eu consigo conversar contigo por carta, é só a gente encontrar um lugar pra trocar elas
Lucas – Ah sim, bom, se for para isso eu posso começar a gostar de cartas, que tal o Parque Ibirapuera? Lá tem um monte de lugar aonde a gente pode deixar
Valentina – Eu conheço esse parque, eu passo por ele toda vez que vou e volto da escola, então sim, dá pra eu deixar a carta lá
Antes da gente se despedir, ele me deu as coordenadas do lugar certinho onde a gente ia fazer a troca, era perto de um bebedouro, um lugar onde ele costumava ir com o seu pai para fazer piquenique
Enquanto ele ia embora, me lembrei que não tinha perguntado o seu nome, mas fiquei com vergonha de gritar ali dentro do lugar, então só me virei e saí pela outra porta
O sol já estava indo embora e o céu já ganhava um tom alaranjado, eu pensei em fazer um desenho desse dia, então guardei cada detalhe na minha mente, quem sabe eu até não mandava na minha carta
Ali, vendo aquele monte de carro passando na rua, me lembrei que não tinha para onde ir, o que comer e não sabia nem o que fazer, então fiz a única coisa que passou pela minha cabeça, dei meia volta e voltei para casa
Como eu tinha falado para o garoto, o lugar não era perto da minha casa e na verdade, eu nem sabia como tinha ido parar lá, acho que meu desespero de sair de casa me cegou
Sabe o que é o mais engraçado? Eu estava sozinha, caminhando num lugar onde muitas pessoas passavam, mas nenhuma delas veio ao meu encontro, só aquele menino
Quando eu cheguei próxima aquela casinha que eu chamava de minha, já era escuro, mas tudo estava em silêncio. Eu conseguia ver minha mãe pela janela já que a nossa casa não tinha portão e o muro era baixo, ela estava próximo da janela, parecia preocupada
Assim que passei pela porta tive três sensações, a primeira foi de alívio, não sei dizer o motivo certo, mas acho que era porque eu estava em casa, a segunda foi felicidade por escutar um “graças a Deus” da boca da minha mãe e a terceira foi a coragem que passou por todo o meu corpo, de olhar bem no fundo dos olhos do homem que eu chamava de pai e mostrar que mesmo ele tentando me quebrar, eu ainda estava de pé