QUINTO CAPÍTULO

2513 Words
Heitor dá a volta na minha rua parando em minha frente. Ele ajeita seus cabelos azuis ainda sorrindo. Dou alguns passos em sua direção. – Bom dia, garoto do cabelo azul – digo sorrindo para ele. – Olá, Max! Por acaso você só vai se referir a mim como o ‘garoto do cabelo azul’? Seus olhos azuis me encaram, analisando-me. – É porque eu acho Heitor um nome sério demais para você – confesso baixinho. Ele dá uma risada alta. – Eu também acho! – Mas se não gostar eu posso parar. – Tá de zoa. Não ligo não. Só que ninguém nunca me chama de garoto do cabelo azul – diz. – Sério isso? Ele concorda com a cabeça. – Pelo menos não na sua frente, né – digo e ele volta a ri. – Pelo menos não na minha frente – reafirma. – Quantos garotos nessa cidade têm cabelos azuis? – pergunto. – Só eu – diz ele. – Sobe aí logo, senão vamos ficar conversando o dia todo. – Tudo bem, Heitor. – Subo nos apoios para os pés. Ele se vira e olha para mim. – É. Acho que prefiro que você me chame de ‘garoto do cabelo azul’. – Também achei que preferiria – digo e vejo um sorriso se formando em seu rosto. Ele começa a pedalar o mais rápido que consegue. Em alguns minutos estamos na Praça das Flores novamente. Algumas pessoas já estão aqui e ali, isso levando em conta que ainda são sete e meia da manhã. O dia está claro e quente (o que já percebi que é normal por aqui), ele contorna a praça e entra numa rua oposta de onde viemos. E segue o mais rápido que consegue. Depois de andarmos cerca de dez quarteirões vejo duas pessoas paradas mais a frente. Ele segue em direção a eles e quase atropela um garoto que está de camiseta preta. Seus cabelos – que são negros e longos – estão presos num r**o de cavalo. Ele diz algo que não entendo e olha com raiva para o garoto do cabelo azul. E depois olha para mim com a mesma expressão. Decido desviar o olhar e me dou de cara com uma garota. Ela está sorrindo para mim, seu sorriso é muito bonito, mesmo tendo os dois dentes do meio um pouco desalinhados. Seus cabelos são muito cacheados, seus olhos castanhos me encaram sem medo. Dou um sorriso tímido para ela. – Você demorou. – Ouço o garoto de cabelo preto falando com Heitor. Sua voz é baixa e rouca. Não aparenta ser a voz de alguém novo como a gente. – Eu fui buscar o Max – informa Heitor tranquilo. – Esse aí – fala o garoto apontando a cabeça para mim. Sinto meio que um desprezo em sua voz. Mas não deixo de encará-lo. – E quem é você? – pergunta a garota. Viro-me para ela. – Eu sou o Max – digo meio tímido. Heitor começa a ri sendo acompanhado por ela. – Disso eu já sei! – constata. – É… – Não sei o que dizer. Sinto minhas bochechas ficarem quentes de vergonha. Às vezes, essa pode ser uma pergunta muito difícil. Quem sou eu? – Max é novo na cidade, veio de Sampa. Seu pai vai trabalhar na fábrica – diz Heitor. – Você é filho do homem que meu pai não para de falar tem um mês? – pergunta o m*l humorado. – Deve ser – respondo, mas sem olhar para ele. O que será que seu pai tem falado do meu? Provavelmente tudo o que os outros, das outras cidades já falaram. – Vamos ficar aqui parados por muito tempo? Ou vamos logo para a prainha? – pergunta Heitor. – Só iremos nós quatro? – pergunto. – Por enquanto sim! Se o restante da galera se recuperar da bebedeira de ontem – diz a menina rindo e só agora vejo o outro cara esboçar algo que me pareceu um sorriso. Os dois pegam suas bicicletas e seguimos para o final daquela rua. Não sei se essa cachoeira fica perto o suficiente para irmos simplesmente de bike e não sei se Heitor aguentará me levar até lá. Mas decido não dizer nada. O caminho foi tranquilo, seguimos a mesma rua por uns dez minutos e damos de cara com uma ponte e sob ela uma cachoeira. Eu me lembro do Heitor ter falado que precisaríamos seguir uma trilha e me pergunto onde seria essa tal trilha. Então depois de passarmos pela ponte, o outro garoto que estava indo mais a frente para, e logo Heitor e a menina também param descendo das bicicletas. Desço antes de Heitor. Ele sorri para mim. – Tranquilo Max? – pergunta ele me olhando. – Sim! Só parece que ele não gostou de mim – digo e logo me arrependo. – O Patrick? Não liga não que não é com você. É comigo – diz ele. – Por que com você? – pergunto curioso. Ele suspira. – Depois eu te conto. Vamos. Começamos a caminhar por uma pequena trilha na lateral da estrada. O Patrick já está no final dela quando começamos a descer. A menina vem à minha frente enquanto Heitor está atrás de mim. Decido acelerar o passo quando pela segunda vez em cinco segundos ele mete a roda da bicicleta no meu calcanhar quase me fazendo cair, em ambas as vezes. Fico andando lado a lado com a menina. Pergunto para ela se quer que eu leve sua bicicleta, ela sorri agradecida e diz que não precisa. Decido puxar assunto com ela, porque ficar em silêncio está me incomodando. – Você não me disse quem é – digo olhando para seus olhos. Ela sorri. – Caroline, mas pode me chamar de Carol. Todos me chamam assim – diz ela. Sua voz é doce e aveludada. – Também me chamam pelo meu diminutivo – digo. –E ainda bem que me chamam assim – confesso. – Não gosta do seu nome? – pergunta ela. Chegamos ao final da decida e vejo que tem uma trilha que é quase escondida pelas árvores. Lá da ponte é impossível ver isso aqui. Patrick voltou a subir na bike e está vários metros a nossa frente indo a toda velocidade. Sinto vontade de perguntar o porquê de ele estar fazendo isso, mas volto para minha conversa com Carol. – Não muito… – E qual é seu nome? – pergunta ela. – Maximiliano – digo e ouço Heitor rir alto atrás da gente. Viro-me para encará-lo. Ele parou de andar só para ficar rindo. Vejo lágrimas se formando em seus olhos azuis. E o branco que contrastava com o azul intenso rapidamente fica vermelho. Ele está tendo um ataque de riso. Gargalhando alto. Mas não me sinto humilhado nem nada. A verdade é que acho graça dele achar graça de mim, ou pelo menos do meu nome. – Cara, o seu nome é h******l! – diz ele. – Obrigado por me falar uma coisa que eu já sei há tempos – digo e Carol começa a ri. – Não liga para o Heitor, Max. Ele é um i****a às vezes – diz ela. – Patrick que o diga – fala ele olhando para além de nós. – Você deveria ir falar com ele. – Mas o que eu poderia falar? – pergunta ele. E acho que estou começando a entender o problema entre os dois. – Por acaso vocês ficam? – pergunto e Carol arregala aqueles olhos cor de mel. – Você falou para ele? – Ela encara Heitor. – Eu tentei beijar ele ontem na piscina maninha. – Ele sorri maroto. Logo ela me encara. – Mas ele recuou – completa ele apressado. – Cara, você m*l terminou com ele e já tá tentando beijar outro – diz ela voltando a andar. – Vocês eram namorados? – pergunto e ele confirma com a cabeça. Isso é novo para mim, mas por algum motivo não causa nenhuma reação. É como se eles fossem normais e por que não seriam? – Nós estamos juntos há dois anos. Mas eu nunca cheguei a me apaixonar por ele de verdade. A gente sempre foi amigo e tal. Mas nunca passou disso, então eu decidi terminar porque ele estava sofrendo e eu gosto muito dele, mas só como amigo – diz ele baixinho enquanto Carol caminha mais a frente. – Entendi – digo e continuamos nossa trilha. Depois de alguns minutos em silêncio decido quebrar o gelo: – Para onde exatamente estamos indo? – Alguns quilômetros acima tem uma espécie de barreira. São umas rochas enormes que formam uma piscina natural e tal. É muito legal lá. Dá para nadar bastante, pular, fazer várias maluquices, pois não tem pedra nenhuma lá. Tem até uma faixa de areia grande. – Lá deve ficar muito cheio né? – pergunto. – Pior que não. Como é meio longe e só dá para ir a pé, o pessoal não conhece muito bem. Eles acabam indo para as outras cachoeiras – explica. – Legal. Pelo menos não corro o risco do meu pai vir me buscar – digo. – Cara, nem te perguntei. Ele suspeitou de alguma coisa? – Ele viu sua bicicleta e ficou me esperando na sala. A gente brigou, e ele disse que não quer que eu entre mais na piscina e tal. – E ele deixou você vir hoje? – Eu deixei um bilhete dizendo que ia para a casa de um amigo seu jogar vídeo game. Nada de piscina ou cachoeira – digo sorrindo. Ele abre um sorriso largo que faz as covinhas se formarem novamente em suas bochechas. – Pelo menos você sabe mentir. – Foi preciso. Ele surtaria se eu falasse que iria para uma cachoeira. Ontem ele quase me matou. – Mas qual é o problema dele com água? – pergunta Heitor. Continuamos caminhando pela trilha. Mais a frente Carol,segue ao lado de Patrick. Então eles não conseguem ouvir o que Heitor e eu estamos conversando. Normalmente não falo nisso. Mas por algum motivo me sinto à vontade para conversar com o garoto do cabelo azul. – Eu era gêmeo. Tinha um irmão. Na primeira mudança do papai, fomos para uma casa grande como a que estamos hoje. A empresa é a responsável por escolher as casas dele. Então, geralmente, têm os mesmos modelos, grandes e com piscina – digo tentando me lembrar daquela casa, mas não me recordo de nada. – Nós tínhamos apenas três anos e mamãe tomava conta de nós dois… sozinha. A empregada cuidava da casa, mas de nós só era minha mãe. Num dia qualquer, estávamos na sala eu, minha mãe e ele. E foi que ela dormiu. No sofá da sala mesmo, ela apagou. Imagino como deveria ser cansativo para ela cuidar de dois garotos que não paravam. Ela deveria estar cansada e dormiu. A porta que dava para a piscina estava aberta e o meu irmão foi até lá. Eu não me lembro de nada. Mas a única coisa que sei é que ele se afogou. Não sei se ele gritou ou não. Não sei se ao menos eu estava acordado. Quando minha mãe despertou ela ficou desesperada procurando ele e foi quando ela o achou, já morto na piscina. Heitor para, abrupto. – Isso é h******l. Eu sinto muito, Max. É sério. – Tudo bem. Eu também sinto. Sinto muito mesmo. Toda vez que penso nele é como se uma parte de mim estivesse faltando. Acontece que meus pais nunca superaram sua morte. Minha mãe ficou instável e se afundou na bebida e por um tempo ela andou se drogando. Hoje ela é acompanhada por enfermeiros durante todo o dia. Isso para não voltar para uma clínica. Toma muitos remédios por causa da depressão. E meu pai se fechou. Ele se fixou em mim, me isolando. Sempre trabalhando e cuidando ao máximo de mim e nunca me deixando chegar perto de uma piscina. Ele acha que eu vou me afogar como meu irmão. A verdade é que nenhum dos dois ainda superou sua morte e tentam me super proteger com medo que eu morra também. – Isso deve ser muito r**m para você. – Na maioria das vezes não – digo e essa é a verdade. Vejo mais a frente Patrick e Carol deixando suas bicicletas no canto da trilha e subindo a pé um morro de barro. Poucos minutos depois chegamos ao mesmo local e Heitor deixa sua bike e começamos a subir. – Agora falta pouco – diz ele e vejo-o sorrindo mais uma vez para mim, mas dessa vez é um sorrindo tímido. Coisa que até agora não tinha visto. Meu celular toca. Eu paro rapidamente, Heitor também. – É meu pai – digo. – Atende então – diz ele. – A cachoeira está fazendo barulho. A água estava descendo em grande velocidade, e com certeza meu pai iria ouvir o barulho do outro lado da linha. Heitor olha para os dois lados. – Vem comigo – diz ele pegando minha mão. Seu toque é quente e firme. Sua pele delicada. Seguimos pele meio do mato, nos embrenhando na floresta. – Acho que aqui ele não vai conseguir ouvir – digo. – Também acho que não – concorda. Pego o telefone e atendo. – Max. – Ouço sua voz no outro lado da linha. – Oi, pai… – digo. – Onde você está? – Estou na casa de um amigo do Heitor. – Por que você saiu muito cedo? – pergunta ele. – Eu não sai tão cedo assim. Nós passamos ainda no mercado para comprar umas coisas para levar para lá. Vamos ficar de bobeira jogando vídeo game – elaboro minha mentira. – Espero que não esteja em nenhuma piscina – diz ele. – Aqui nem tem uma. Não precisa se preocupar tá. – Não volte muito tarde. – Vamos ficar o dia aqui. Devo só voltar à noite. Ele suspira, mas não diz nada. Por um minuto ficamos em silêncio. – Tudo bem, então. – Ele diz. Quando penso que ele vai desligar ele volta a falar: – Filho,  desculpa-me por ontem. Eu sei que me excedi, mas você entende, não é? – É claro que entendo, mas às vezes é difícil de aceitar. – Mais tarde conversamos então. – Tudo bem. – Bom dia para você aí com seus novos amigos. – Obrigado, pai. Vê se faz alguma coisa, é melhor do que ficar trancado dentro de casa. – Pode deixar. A ligação chega ao fim. Viro-me para Heitor. Ele está me olhando de novo daquela maneira intensa. Voltamos para a trilha e meus ouvidos se enchem com o barulho da correnteza. Nenhum sinal de Carol ou Patrick. Eles não viram quando entramos na mata e é provável que se tivessem visto Patrick não voltaria. Subimos o mais rápido que conseguidos. Depois de mais alguns minutos chegamos ao nosso destino e foi então que tive a visão mais linda em toda minha vida.
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