Heitor dá a volta na minha rua parando em minha frente. Ele ajeita seus cabelos azuis ainda sorrindo. Dou alguns passos em sua direção.
– Bom dia, garoto do cabelo azul – digo sorrindo para ele.
– Olá, Max! Por acaso você só vai se referir a mim como o ‘garoto do cabelo azul’?
Seus olhos azuis me encaram, analisando-me.
– É porque eu acho Heitor um nome sério demais para você – confesso baixinho.
Ele dá uma risada alta.
– Eu também acho!
– Mas se não gostar eu posso parar.
– Tá de zoa. Não ligo não. Só que ninguém nunca me chama de garoto do cabelo azul – diz.
– Sério isso?
Ele concorda com a cabeça.
– Pelo menos não na sua frente, né – digo e ele volta a ri.
– Pelo menos não na minha frente – reafirma.
– Quantos garotos nessa cidade têm cabelos azuis? – pergunto.
– Só eu – diz ele. – Sobe aí logo, senão vamos ficar conversando o dia todo.
– Tudo bem, Heitor. – Subo nos apoios para os pés.
Ele se vira e olha para mim.
– É. Acho que prefiro que você me chame de ‘garoto do cabelo azul’.
– Também achei que preferiria – digo e vejo um sorriso se formando em seu rosto.
Ele começa a pedalar o mais rápido que consegue. Em alguns minutos estamos na Praça das Flores novamente. Algumas pessoas já estão aqui e ali, isso levando em conta que ainda são sete e meia da manhã. O dia está claro e quente (o que já percebi que é normal por aqui), ele contorna a praça e entra numa rua oposta de onde viemos. E segue o mais rápido que consegue.
Depois de andarmos cerca de dez quarteirões vejo duas pessoas paradas mais a frente. Ele segue em direção a eles e quase atropela um garoto que está de camiseta preta. Seus cabelos – que são negros e longos – estão presos num r**o de cavalo. Ele diz algo que não entendo e olha com raiva para o garoto do cabelo azul. E depois olha para mim com a mesma expressão. Decido desviar o olhar e me dou de cara com uma garota.
Ela está sorrindo para mim, seu sorriso é muito bonito, mesmo tendo os dois dentes do meio um pouco desalinhados. Seus cabelos são muito cacheados, seus olhos castanhos me encaram sem medo. Dou um sorriso tímido para ela.
– Você demorou. – Ouço o garoto de cabelo preto falando com Heitor. Sua voz é baixa e rouca. Não aparenta ser a voz de alguém novo como a gente.
– Eu fui buscar o Max – informa Heitor tranquilo.
– Esse aí – fala o garoto apontando a cabeça para mim. Sinto meio que um desprezo em sua voz. Mas não deixo de encará-lo.
– E quem é você? – pergunta a garota. Viro-me para ela.
– Eu sou o Max – digo meio tímido.
Heitor começa a ri sendo acompanhado por ela.
– Disso eu já sei! – constata.
– É… – Não sei o que dizer. Sinto minhas bochechas ficarem quentes de vergonha. Às vezes, essa pode ser uma pergunta muito difícil. Quem sou eu?
– Max é novo na cidade, veio de Sampa. Seu pai vai trabalhar na fábrica – diz Heitor.
– Você é filho do homem que meu pai não para de falar tem um mês? – pergunta o m*l humorado.
– Deve ser – respondo, mas sem olhar para ele. O que será que seu pai tem falado do meu? Provavelmente tudo o que os outros, das outras cidades já falaram.
– Vamos ficar aqui parados por muito tempo? Ou vamos logo para a prainha? – pergunta Heitor.
– Só iremos nós quatro? – pergunto.
– Por enquanto sim! Se o restante da galera se recuperar da bebedeira de ontem – diz a menina rindo e só agora vejo o outro cara esboçar algo que me pareceu um sorriso.
Os dois pegam suas bicicletas e seguimos para o final daquela rua. Não sei se essa cachoeira fica perto o suficiente para irmos simplesmente de bike e não sei se Heitor aguentará me levar até lá. Mas decido não dizer nada.
O caminho foi tranquilo, seguimos a mesma rua por uns dez minutos e damos de cara com uma ponte e sob ela uma cachoeira. Eu me lembro do Heitor ter falado que precisaríamos seguir uma trilha e me pergunto onde seria essa tal trilha. Então depois de passarmos pela ponte, o outro garoto que estava indo mais a frente para, e logo Heitor e a menina também param descendo das bicicletas. Desço antes de Heitor. Ele sorri para mim.
– Tranquilo Max? – pergunta ele me olhando.
– Sim! Só parece que ele não gostou de mim – digo e logo me arrependo.
– O Patrick? Não liga não que não é com você. É comigo – diz ele.
– Por que com você? – pergunto curioso.
Ele suspira.
– Depois eu te conto. Vamos.
Começamos a caminhar por uma pequena trilha na lateral da estrada. O Patrick já está no final dela quando começamos a descer. A menina vem à minha frente enquanto Heitor está atrás de mim.
Decido acelerar o passo quando pela segunda vez em cinco segundos ele mete a roda da bicicleta no meu calcanhar quase me fazendo cair, em ambas as vezes.
Fico andando lado a lado com a menina. Pergunto para ela se quer que eu leve sua bicicleta, ela sorri agradecida e diz que não precisa.
Decido puxar assunto com ela, porque ficar em silêncio está me incomodando.
– Você não me disse quem é – digo olhando para seus olhos.
Ela sorri.
– Caroline, mas pode me chamar de Carol. Todos me chamam assim – diz ela.
Sua voz é doce e aveludada.
– Também me chamam pelo meu diminutivo – digo. –E ainda bem que me chamam assim – confesso.
– Não gosta do seu nome? – pergunta ela.
Chegamos ao final da decida e vejo que tem uma trilha que é quase escondida pelas árvores. Lá da ponte é impossível ver isso aqui. Patrick voltou a subir na bike e está vários metros a nossa frente indo a toda velocidade. Sinto vontade de perguntar o porquê de ele estar fazendo isso, mas volto para minha conversa com Carol.
– Não muito…
– E qual é seu nome? – pergunta ela.
– Maximiliano – digo e ouço Heitor rir alto atrás da gente.
Viro-me para encará-lo. Ele parou de andar só para ficar rindo. Vejo lágrimas se formando em seus olhos azuis. E o branco que contrastava com o azul intenso rapidamente fica vermelho. Ele está tendo um ataque de riso. Gargalhando alto. Mas não me sinto humilhado nem nada. A verdade é que acho graça dele achar graça de mim, ou pelo menos do meu nome.
– Cara, o seu nome é h******l! – diz ele.
– Obrigado por me falar uma coisa que eu já sei há tempos – digo e Carol começa a ri.
– Não liga para o Heitor, Max. Ele é um i****a às vezes – diz ela.
– Patrick que o diga – fala ele olhando para além de nós.
– Você deveria ir falar com ele.
– Mas o que eu poderia falar? – pergunta ele. E acho que estou começando a entender o problema entre os dois.
– Por acaso vocês ficam? – pergunto e Carol arregala aqueles olhos cor de mel.
– Você falou para ele? – Ela encara Heitor.
– Eu tentei beijar ele ontem na piscina maninha. – Ele sorri maroto.
Logo ela me encara.
– Mas ele recuou – completa ele apressado.
– Cara, você m*l terminou com ele e já tá tentando beijar outro – diz ela voltando a andar.
– Vocês eram namorados? – pergunto e ele confirma com a cabeça. Isso é novo para mim, mas por algum motivo não causa nenhuma reação. É como se eles fossem normais e por que não seriam?
– Nós estamos juntos há dois anos. Mas eu nunca cheguei a me apaixonar por ele de verdade. A gente sempre foi amigo e tal. Mas nunca passou disso, então eu decidi terminar porque ele estava sofrendo e eu gosto muito dele, mas só como amigo – diz ele baixinho enquanto Carol caminha mais a frente.
– Entendi – digo e continuamos nossa trilha.
Depois de alguns minutos em silêncio decido quebrar o gelo:
– Para onde exatamente estamos indo?
– Alguns quilômetros acima tem uma espécie de barreira. São umas rochas enormes que formam uma piscina natural e tal. É muito legal lá. Dá para nadar bastante, pular, fazer várias maluquices, pois não tem pedra nenhuma lá. Tem até uma faixa de areia grande.
– Lá deve ficar muito cheio né? – pergunto.
– Pior que não. Como é meio longe e só dá para ir a pé, o pessoal não conhece muito bem. Eles acabam indo para as outras cachoeiras – explica.
– Legal. Pelo menos não corro o risco do meu pai vir me buscar – digo.
– Cara, nem te perguntei. Ele suspeitou de alguma coisa?
– Ele viu sua bicicleta e ficou me esperando na sala. A gente brigou, e ele disse que não quer que eu entre mais na piscina e tal.
– E ele deixou você vir hoje?
– Eu deixei um bilhete dizendo que ia para a casa de um amigo seu jogar vídeo game. Nada de piscina ou cachoeira – digo sorrindo.
Ele abre um sorriso largo que faz as covinhas se formarem novamente em suas bochechas.
– Pelo menos você sabe mentir.
– Foi preciso. Ele surtaria se eu falasse que iria para uma cachoeira. Ontem ele quase me matou.
– Mas qual é o problema dele com água? – pergunta Heitor.
Continuamos caminhando pela trilha. Mais a frente Carol,segue ao lado de Patrick. Então eles não conseguem ouvir o que Heitor e eu estamos conversando. Normalmente não falo nisso. Mas por algum motivo me sinto à vontade para conversar com o garoto do cabelo azul.
– Eu era gêmeo. Tinha um irmão. Na primeira mudança do papai, fomos para uma casa grande como a que estamos hoje. A empresa é a responsável por escolher as casas dele. Então, geralmente, têm os mesmos modelos, grandes e com piscina – digo tentando me lembrar daquela casa, mas não me recordo de nada. – Nós tínhamos apenas três anos e mamãe tomava conta de nós dois… sozinha. A empregada cuidava da casa, mas de nós só era minha mãe. Num dia qualquer, estávamos na sala eu, minha mãe e ele. E foi que ela dormiu. No sofá da sala mesmo, ela apagou. Imagino como deveria ser cansativo para ela cuidar de dois garotos que não paravam. Ela deveria estar cansada e dormiu. A porta que dava para a piscina estava aberta e o meu irmão foi até lá. Eu não me lembro de nada. Mas a única coisa que sei é que ele se afogou. Não sei se ele gritou ou não. Não sei se ao menos eu estava acordado. Quando minha mãe despertou ela ficou desesperada procurando ele e foi quando ela o achou, já morto na piscina.
Heitor para, abrupto.
– Isso é h******l. Eu sinto muito, Max. É sério.
– Tudo bem. Eu também sinto. Sinto muito mesmo. Toda vez que penso nele é como se uma parte de mim estivesse faltando. Acontece que meus pais nunca superaram sua morte. Minha mãe ficou instável e se afundou na bebida e por um tempo ela andou se drogando. Hoje ela é acompanhada por enfermeiros durante todo o dia. Isso para não voltar para uma clínica. Toma muitos remédios por causa da depressão. E meu pai se fechou. Ele se fixou em mim, me isolando. Sempre trabalhando e cuidando ao máximo de mim e nunca me deixando chegar perto de uma piscina. Ele acha que eu vou me afogar como meu irmão. A verdade é que nenhum dos dois ainda superou sua morte e tentam me super proteger com medo que eu morra também.
– Isso deve ser muito r**m para você.
– Na maioria das vezes não – digo e essa é a verdade.
Vejo mais a frente Patrick e Carol deixando suas bicicletas no canto da trilha e subindo a pé um morro de barro. Poucos minutos depois chegamos ao mesmo local e Heitor deixa sua bike e começamos a subir.
– Agora falta pouco – diz ele e vejo-o sorrindo mais uma vez para mim, mas dessa vez é um sorrindo tímido. Coisa que até agora não tinha visto.
Meu celular toca.
Eu paro rapidamente, Heitor também.
– É meu pai – digo.
– Atende então – diz ele.
– A cachoeira está fazendo barulho.
A água estava descendo em grande velocidade, e com certeza meu pai iria ouvir o barulho do outro lado da linha. Heitor olha para os dois lados.
– Vem comigo – diz ele pegando minha mão. Seu toque é quente e firme. Sua pele delicada. Seguimos pele meio do mato, nos embrenhando na floresta.
– Acho que aqui ele não vai conseguir ouvir – digo.
– Também acho que não – concorda.
Pego o telefone e atendo.
– Max. – Ouço sua voz no outro lado da linha.
– Oi, pai… – digo.
– Onde você está?
– Estou na casa de um amigo do Heitor.
– Por que você saiu muito cedo? – pergunta ele.
– Eu não sai tão cedo assim. Nós passamos ainda no mercado para comprar umas coisas para levar para lá. Vamos ficar de bobeira jogando vídeo game – elaboro minha mentira.
– Espero que não esteja em nenhuma piscina – diz ele.
– Aqui nem tem uma. Não precisa se preocupar tá.
– Não volte muito tarde.
– Vamos ficar o dia aqui. Devo só voltar à noite.
Ele suspira, mas não diz nada. Por um minuto ficamos em silêncio.
– Tudo bem, então. – Ele diz. Quando penso que ele vai desligar ele volta a falar: – Filho, desculpa-me por ontem. Eu sei que me excedi, mas você entende, não é?
– É claro que entendo, mas às vezes é difícil de aceitar.
– Mais tarde conversamos então.
– Tudo bem.
– Bom dia para você aí com seus novos amigos.
– Obrigado, pai. Vê se faz alguma coisa, é melhor do que ficar trancado dentro de casa.
– Pode deixar.
A ligação chega ao fim. Viro-me para Heitor. Ele está me olhando de novo daquela maneira intensa.
Voltamos para a trilha e meus ouvidos se enchem com o barulho da correnteza. Nenhum sinal de Carol ou Patrick. Eles não viram quando entramos na mata e é provável que se tivessem visto Patrick não voltaria.
Subimos o mais rápido que conseguidos. Depois de mais alguns minutos chegamos ao nosso destino e foi então que tive a visão mais linda em toda minha vida.