Capítulo 03

4481 Words
Eu costumava passar boa parte do meu tempo ouvindo a conversa fiada entre os enfermeiros enquanto fingia montar esculturas de lego. Certa vez, ouvi um comentário que passou a fazer todo o sentido quanto aos sons que escutava durante a madrugada. Os homens estavam parados e encostados contra a porta dupla que mantinham a mim e outros vinte malucos trancados na sala de recreação, falando casualmente sobre as constantes dores de cabeça que sentiam pelos ecos que atravessavam as paredes de concreto e desciam até o andar em que os médicos descansavam. Tudo é audível neste lugar, disse um deles. Acho que é por isso que aqueles que chegam com uma simples perda de memória saem com demência. Tudo realmente sempre foi audível neste lugar. Os gritos durante as várias tentativas dos enfermeiros em sedar os pacientes, as cadeiras que se arrastam no saguão, e até mesmo a tosse daqueles que vez ou outra pegam um resfriado. Os sons ecoam porque não conseguem encontrar a saída pelas pequenas janelas cobertas por grades e telas escuras, e é este mesmo eco que encontra os mais paranoicos, envolvendo-os em uma bolha recheada de pesadelos e insegurança. O final da escadaria possibilita a visão para o leste do campus psiquiátrico, contornado por seus imponentes muros de blocos grossos e pesados. Antes de alcançar os últimos degraus é possível ver através das janelas — que são altas demais para que cheguemos perto — as árvores balançando com força em um claro sinal de chuva se aproximando. Noelle está a apenas um passo de distância quando segue o meu olhar e sorri para o nada. Ela me disse uma vez que adorava a chuva, principalmente as mais barulhentas. Dizia que o som alto não era capaz de abafar as vozes em sua cabeça, mas era o suficiente para tranqüilizá-las. Ao contrário dela, a chuva costuma indicar um dos meus piores humores. Sei que pela minha total aversão ao clima, de algum modo, a chuva está ligada a alguma lembrança que meu subconsciente afastou de mim. Assim que cruzamos o extenso corredor leste, somos divididos por s**o. Os meninos acompanham os enfermeiros homens, enquanto as meninas se mantêm na fila inicial. Quando nos dividimos, somos observados como criaturas que a qualquer momento podem atacar. Os olhares de puro desdém que os enfermeiros lançam não são ameaçadores o bastante, por isso eles sempre estão carregando pequenas maletas. Durante um dos meus ataques, descobri da pior forma possível que havia sedativos nas maletas. Antes de apagar totalmente, consegui ver o sorriso de satisfação nos lábios da enfermeira que me pegou e foi naquele mesmo instante que percebi quão intensa era a felicidade dos enfermeiros em sedar um paciente. Podia imaginá-la dizendo: "Peguei uma!" e os outros aplaudindo o seu sucesso. Bocejando, desvio o olhar para longe das maletas sedativas e encontro o reflexo de um sorriso brilhante na fila dos meninos. Estreito os olhos e guio a minha atenção para o montante de garotos e homens cabisbaixos que se encolhem. Reconheço o som da risada antes mesmo de ver o seu dono. Ele está parado de lado, quase encostado em uma das paredes frias, sorrindo como se estivesse na fila de um banheiro público e não em uma clínica psiquiátrica. Além de Noelle, ele é o único interno com quem eu consegui manter algum tipo de conversa. A amizade com Noelle fez toda a diferença porque estamos sempre juntas, quanto ao garoto, ele pertence à ala três. O nosso convívio se resume em leves implicâncias durante as refeições e esbarrões ocasionais pelos corredores. Aprendi há algum tempo atrás que, quando fazemos novos amigos, sendo eles completamente loucos ou quase chegando lá, um tipo de elo é criado. Ainda que seu mundo desmorone, eles sempre estarão lá para recolher cada um dos cacos e uni-los novamente. Noelle é a única pessoa para quem eu posso contar todos os meus sonhos e pressentimentos sem me sentir verdadeiramente maluca, só que é a aura que sempre vejo ao redor daquele garoto que me garante uma promessa de cumplicidade nunca feita. Seus cabelos castanhos que chegam até a altura dos ombros estão presos com uma liga fina e preta. Ele mantém os braços cruzados à frente do corpo e um lado do rosto colado à parede. Quando ele sorri novamente, vejo uma de suas covinhas surgir do lado direito de seu rosto. Não reconheço o garoto com quem ele conversa, mas por um momento fico fascinada por seus cabelos negros e os olhos azuis. Os olhos do desconhecido, rasgados como o de um gato, possuem algum tipo de luz própria, um brilho que me faz questionar o que uma pessoa como ele faz em um lugar como este. Estou prestes a desviar a atenção quando o garoto de covinhas move um milímetro do corpo e sorri para mim. Seu sorriso feliz e claro se encaixaria melhor se estivéssemos em algum tipo de hotel aproveitando as férias, e não internados em uma clínica para loucos, ainda assim, eu o correspondo. Gostaria de dizer que começamos a ser amigos porque ele também percebeu que posso ser mais louca do que ele, mas estaria inventando algum tipo de situação que jamais poderia ter ocorrido com este garoto. O pátio sempre foi a zona mais habitada pelos loucos. Naquele dia embora, estávamos apenas eu, Noelle e um enfermeiro. A área que se desagrega de todo o resto do caminho de cimento por conta de seus dois pequenos degraus possui 80 metros quadrados, dividindo-se em mesas de ferro n***o e um canteiro onde flores coloridas nascem. O piso de cimento dessa área é decorado por seixos que costumam ficar escorregadios em épocas chuvosas. As flores do jardim estavam manchadas pela chuva que caíra mais cedo, o perfume forte o bastante para que a lembrança pudesse ser fixada como um lembrete em meu cérebro. Como ainda estava no início do meu tratamento, os dias ruins eram muito freqüentes. Sentir a terra em meus dedos era uma tentativa de encontrar qualquer distração para manter a minha mente ocupada, mesmo que aquela atividade parecesse algo que eu nunca faria em sã consciência. Noelle estava sentada em um dos assentos ao redor de uma mesa e tomava sorvete em uma xícara. O enfermeiro caminhava de um lado para o outro, as mãos dentro do jaleco branco e os olhos atentos aos meus movimentos. Havia alguns dias em que os enfermeiros tentavam nos agradar com alguns privilégios. Podíamos pedir qualquer coisa e eles eram obrigados a atender nosso pedido. Era algum tipo de recompensa que fazia com que o St. Carolin fosse a preferência dos familiares cansados de parentes com problemas mentais. Os pedidos variavam entre comidas mais sofisticadas do que o mingau de aveia servido pela manhã, cobertores mais quentes dos que os espécimes que nos davam para as noites frias, ou até mesmo passeios ao redor da estrada isolada que levava até a clínica. Noelle, talvez afetada pelas lembranças de uma infância perdida, pedira por um dia inteiro por sorvete de chocolate. Ainda que estivéssemos em pleno mês de Maio, a chuva pesada não tinha deixado apenas um rastro úmido para trás, mas também um frio de trincar os dentes. Reforcei a minha recusa em compartilhar o seu sorvete, pois, tinha certeza que tomá-lo seria o mesmo que tomar um banho em uma banheira com cubos de gelo. Noelle estreitou os olhos e ignorou completamente o que eu disse, pedindo pela outra xícara vazia que se encontrava na mesa, ao lado do grande pote de isopor com sorvete. Apenas estar do lado de fora já era mais do que um privilégio para mim. Então, só para não desperdiçar o meu pedido, exigi ajudar os jardineiros em suas tarefas. Senti-me a beira da violência quando os enfermeiros não aceitaram meu simples pedido e tentaram me fazer mudar de ideia. Precisei buscar o máximo de paz de espírito para convencer o meu Psiquiatra de que não iria usar as tesouras de podar para m***r ninguém e nem para me m***r. No fim, depois de muita chateação e pouco aproveitamento, recebi o sinal verde para fazer o que queria se concordasse com a escolta de um enfermeiro. Passei vinte minutos enfiando a minha mão o mais fundo que conseguia, cavando e fechando buracos apenas por prazer, até que uma sombra cobriu o pouco de luz que o tempo nublado não havia conseguido apagar. Por um momento pensei que fosse o enfermeiro me informando que meu tempo de lazer havia terminado. Inclinei meu corpo para o lado e ergui a cabeça, encontrando um par de olhos verdes me observando com curiosidade. O garoto estava tão próximo que antes de me virar completamente, eu senti a barra de sua calça de moletom encostando-se no meu pé. — Se você planeja cavar um túnel para fugir, precisa fazer ele um pouco mais largo — disse o desconhecido, sorrindo com escárnio. Seu sotaque era estranho para mim naquela época. — Não quero fazer túnel algum. — Respondi secamente. O garoto se agachou cruzando os braços e esticou o pescoço para ver os buracos vazios em torno de algumas flores. Franzindo o cenho, voltou seu olhar para mim e me lançou outro sorriso debochado. — Qual o seu nome? — Ele perguntou. Fingi não ter ouvido nada e arrastei a minha pá aos pés de uma Orquídea. Tinha quase certeza de que acabaria estragando a flor, já que por alguma razão meu principal objetivo se tornou destruir raízes e cavar mais buracos. O garoto se moveu para sair do meu caminho e foi no momento em que ele descruzou os braços que tive a sensação de mãos se fechando em formato de concha ao redor do meu ouvido direito. Olhei diretamente para a sua mão e percebi que havia algo branco envolvendo-a. — O que é isso? — Perguntei, indicando sua mão com um movimento do queixo. Ele escondeu o braço nas costas e sorriu malicioso. — Uma resposta e você têm direito a uma pergunta. Revirei os olhos. — Abby. Ele deu um sorriso largo e duas formas redondas surgiram em sua bochecha. — Abigail? — Só Abby... — Murmurei. — Não gosta do seu nome? — Ele perguntou. — Ninguém gosta do próprio nome. Uma brisa sussurrante atravessou os cabelos do garoto, soprando mechas sedosas para longe de seu rosto. — Eu gosto do meu nome. O meu incômodo com aquela conversa atingiu a minha educação em cheio. — Então deve ser um nome ridiculamente comum. — Praguejei. O garoto deu uma gargalhada e eu olhei atentamente em sua direção. Costumava odiar que passassem tempo demais me observando, mas nunca reparava quando fazia o mesmo com as outras pessoas. Tanto tempo extra para observar aquele garoto não foi utilizado para nada mais do que reparar na primeira coisa que me chamara a atenção; seus cabelos castanhos se enrolavam em cachos nas pontas e os fios sedosos estavam alvoroçados em direção à sua nuca, como se tivessem sido penteados com seus próprios dedos. — Eu me chamo Henry. — Disse ele, erguendo a mão direita para mim. A coisa branca que eu havia visto antes era uma faixa. Larguei a minha pá e apertei de leve a sua mão enfaixada. Ele soltou a minha mão depois de alguns segundos e disse: — Síndrome do túnel do carpo. — O quê? Por ter dito tudo muito rápido, pensei que aquelas palavras faziam parte de alguma saudação do lugar de onde ele veio. Ele me deu outro sorriso antes de repetir o que dissera. — Você perguntou o que era isso — acenou com a mão enfaixada. — Síndrome do túnel do carpo. Esquivei-me levemente e limpei a mão na roupa. — Isso é contagioso? Assisti enquanto o sorriso de Henry assumia proporções exageradas e sua gargalhada ecoava em minha cabeça. Era como se adivinhasse ou alguém tivesse me dito, eu já sabia que ele seria aquele que sempre encontraria um modo de tirar sarro de mim, assim como também sabia que sempre aprovaria as suas gracinhas, mesmo sem entender a maioria delas. Fechei a cara e cruzei os braços, sentindo-me estúpida e motivo de uma piada sem graça. — É uma fratura — ele respondeu ainda rindo. Constrangida, descruzei os braços e murmurei algo quase inaudível que soou como "complicado". Evitei olhar na direção de Henry mais uma vez, sabendo que as suas covinhas estariam a mostra e que ele estaria se divertindo às minhas custas. No entanto, o movimento repentino que ele fez ao se esticar para capturar uma das Orquídeas de cor magenta — que provavelmente morreria em poucos dias graças a mim —, chamou a minha atenção novamente. Por uma fração de segundos, observei suas costas arqueadas e a forma como a blusa de mangas compridas envolvia os seus braços com uma espessura significativa. Balançando de leve a cabeça para afastar uma sombra que estava se formando em meus pensamentos, virei em direção à uma das mesas de ferro n***o apenas para receber um novo estreitar de olhos vindo da direção de Noelle. Ela estava com a colher de sorvete ainda presa entre os dentes e eu podia jurar que seus lábios tremiam em uma espécie de sorriso. Senti meu cabelo agarrando-se no que pensei ser o galho de alguma flor, estiquei a mão para puxá-lo e percebi que era Henry quem estava segurando três mechas pequenas. — O que você pensa que está fazendo? — Perguntei tentando soar rude, minha voz ameaçando se tornar fina e quase infantil. Acho que pode ter sido o evento inesperado ou talvez a semelhança em uma cena que passou rápido pelos meus olhos como um flashback que despertou um dos lados que eu tanto tentava controlar. Lembrei de uma mulher que mexia em meus cabelos, seu toque deixava meu couro cabeludo borbulhando em cócegas. — Quando eu era pequeno, minha irmã sempre me deixava trançar o cabelo dela. — Ele disse movendo as mechas umas sobre as outras. — Até onde eu me lembro, o dela é tão grande quanto o seu. Franzi o cenho. — Por que não faz isso no seu próprio cabelo? Ele riu. — O seu é mais bonito. Por um lado, senti que o meu espaço estava sendo invadido e quis bater em sua mão para livrar o meu cabelo do seu toque. Por outro, o lado mais dominante, percebi que gostava daquele gesto. Sem saber, através do seu singelo toque, Henry me fazia lembrar de alguma coisa que no passado havia sido mais do que uma boa lembrança. Henry puxou levemente a ponta da minha trança e a prendeu enrolando o caule da Orquídea magenta. A mecha trançada se misturou ao resto do meu cabelo solto, apenas a cor rosa-púrpura da flor estava aparente. Puxei a mecha para olhar de perto, sentindo a minha cabeça vibrar levemente. Interpretei isso de forma errada, e comecei a pensar que o garoto a minha frente era apenas algum tipo de alucinação me afetando aos poucos ou algum tipo de novo distúrbio. Ainda pior, imaginei que ele seria uma espécie de "entidade" alegre e sarcástica, diferente de todas as outras que teimavam em me assombrar. — Então... — Ele começou com um leve tom de timidez em sua voz grave, afastando com um peteleco a minha dúvida quanto a sua existência. — Qual é o seu problema? Pela segunda vez, olhei atentamente em sua direção. — Sério? — O quê? — Você quer mesmo manter uma conversa perguntando qual a minha doença? Ele franziu o cenho e olhou ao redor. — Estamos em um hospício — disse, voltando-se para mim. — Você não queria que eu perguntasse a sua opinião sobre a previsão do tempo, não é? Dei um sorriso pomposo. — Não, mas para me conhecer melhor, você poderia ter me perguntado algo como: "qual a minha cor favorita", e depois falado de assuntos mais sérios. É assim que as pessoas normais fazem. — Pelo menos era o que eu achava. — Legal... — Ele balançou a cabeça e pigarreou antes de perguntar: — Qual a sua cor favorita? Abri a boca para responder e no instante seguinte me dei conta de que não sabia a resposta. Henry arqueou as sobrancelhas e imitou o sorriso que eu havia dado. — Você esqueceu a sua cor favorita? Neguei com a cabeça. — Já faz algum tempo que não sei o que eu realmente gosto. Henry se manteve em silêncio por um segundo, apenas observando o meu dar de ombros e a expressão neutra. Cruzou um dos braços na frente do corpo e apoiou o outro sobre este. A mão livre em direção ao rosto, batendo de leve com o dedo indicador contra os lábios fechados, disse: — Acho que já sei qual é o seu problema. — Ele olhou para cima e fingiu estar pensando. Alguma parte de mim achava que ele ficava ainda mais bonito quando se concentrava. — Bipolaridade! Quase ri. — Já tive. — Brinquei. Henry desfez o sorriso e relaxou os ombros em sinal de desânimo. Dei um pequeno sorriso e senti uma sutil mudança de peças em torno do meu crânio quando me sentei sobre a terra escura. Através de seu olhar, Henry conferiu cada parte visível de mim, procurando algo que identificasse o meu problema. Ele não havia visto o grande relógio dentro da minha cabeça, no entanto, eu estava certa de que logo ele ouviria o tique-taque que ressoava através dos meus ouvidos. As engrenagens giraram e eu senti um leve zumbido. No instante seguinte, meu corpo pareceu inchar dentro das roupas largas da clínica e um sorriso sarcástico iluminou os meus lábios — contra a minha vontade. — Por que não me diz qual o seu problema? — Perguntei, endireitando meu corpo e ensaiando outro sorriso sarcástico. Henry franziu o cenho e tombou levemente a cabeça para o lado. Tive certeza de que ele percebeu algo estranho e resolveu ignorar, porque logo cobriu a sua curiosidade com uma expressão indiferente e disse: — Sou Satiríaco. Dei outro pequeno sorriso, totalmente alheia ao que aquela palavra significava. Eu poderia entendê-la se estivesse em meu estado normal, mas esse não era o caso. — Não é algo contagioso, é? Ele deu um sorriso sem graça e me encarou. — Não, não é — engolindo em seco, completou: — Assim como aqueles que não sabem o que é isso e muito menos se interessam em saber, você também pode me chamar de Compulsivo s****l, se quiser. Não consegui controlar o meu choque antes que Henry tivesse tempo de avaliar a minha careta. A simples menção a qualquer atividade s****l era o bastante para deixar que aquela coisa n***a em meu interior se arrastasse e me envolvesse como uma mortalha. Conhecer alguém que sofria de um problema que seguia uma rota contrária à minha era tão irônico quanto assustador. Ainda mais assustador era que eu me sentia estranha. Era como se aceitar a presença de Henry não fosse bem algo que a Abigail faria. Não era eu ali naquele momento. Não era a garota que não sabia por que havia sido abandonada pelo pai em um lugar para loucos. Ou aquela que acordava chorando depois de um pesadelo desconexo. Aquela garota era uma outra Abigail. Uma que podia sorrir de piadas maliciosas e fazer amizade com alguém com hipersexualidade. Se me chamassem pelo meu nome, eu jamais responderia. Henry desviou o olhar e arregaçou as mangas da blusa, pegando um punhado de terra e deixando-a escorrer por entre os dedos da mão esquerda. A faixa branca alcançava até a metade do seu punho direito. — Você é da ala três. — Afirmei com um sorriso sábio. — Sim... — Ele sussurrou. Os olhos focados na terra escura deformada por buracos. Tomada por um sentimento muito parecido com compaixão, ergui minha mão direita e aproximei de seu braço, capturando a sua em um cumprimento rápido. — Prazer, ala quatro. Henry girou a cabeça em minha direção e arregalou os olhos, a palma da mão gelada ainda sobre a minha. Sua expressão assustada foi substituída por um sorriso malicioso e um estreitar de olhos, ao passo em que ele soltava a minha mão, deixando uma linha marrom de terra manchada em sua faixa branca. — Você é tão louca quanto eu pensava. — É o que costumam dizer — murmurei, dando de ombros. Ele riu. Sua risada ecoou em minha cabeça e eu também sorri. Meus olhos — que não eram realmente meus — desceram até a dobra que ele havia feito em sua blusa. Seus braços estavam descobertos do cotovelo para baixo e algumas formas escuras atraíram a minha atenção. Admirei os desenhos negros em sua pele branca. — Uau! — Exclamei, fascinada. Henry seguiu meu olhar e encarou o próprio braço. — Nunca viu alguém tatuado? — Neguei com a cabeça. Incapaz de controlar meus próprios impulsos, puxei o seu braço e percorri com os meus dedos o contorno de uma âncora que parecia cobrir uma pequena frase que circulava o seu pulso esquerdo. Eu sabia que estava invadindo o seu espaço, só que ele havia feito o mesmo comigo e, para mim, aquilo parecia mais do que justo. Senti seu punho estremecer contra a minha mão curiosa, mas não recebendo nenhum aviso que me impedisse, girei seu pulso e estudei as figuras de um trevo, um cadeado acompanhado de uma chave e um símbolo astrológico. Tomei a liberdade de afastar a dobra de sua blusa ainda mais e meus olhos mantiveram-se o tempo todo no pequeno A na curva de seu cotovelo esquerdo. Toquei-o levemente, escorregando a ponta de minhas unhas pelas palavras: "Things i can't". — O que significam? — Perguntei abobalhada. Quando Henry não respondeu, ergui meu olhar e me assustei com a expressão de dor em seu semblante. Afastei a mão o mais rápido que pude. — V-você está bem? — gaguejei nervosa. Henry não respondeu de imediato. Fechando os braços ao redor do corpo, travou o maxilar e balançou a cabeça várias vezes. Seus músculos estremeceram com tanta força que ouvi seus dentes rangerem. Arrastei-me pela terra úmida para manter o máximo de distância que pudesse. O enfermeiro que me vigiava estava de costas, olhando para a vista através dos portões de ferro, e nem se dava conta do que estava acontecendo. — São os remédios — Henry disse, forçando a voz para que esta pudesse sair por seus lábios cerrados. — Controlam a minha Serotonina, mas fodem, literalmente, com o meu sistema nervoso. Senti um leve desconforto na direção da minha fronte, ao mesmo tempo em que minha mente se iluminava quase como se uma lâmpada fosse colocada contra a minha cabeça. Podia me lembrar das palavras de um certo livro sobre vícios que havia lido, não fazia muito tempo. Até mesmo o punho enfaixado passou a fazer sentido quando considerei a lista de incidentes para alguém com Satiríase. De repente, notei seus músculos relaxarem e Henry respirou profundamente antes de virar a cabeça com uma expressão tão desapontada que quase doeu em mim. — Eu te assustei pra c*****o, não foi? Um sorriso largo escorregou em meus lábios de forma natural. — Minhas alucinações me assustam mais. Henry desfez a expressão preocupada e retribuiu o meu sorriso, suas covinhas surgindo novamente. Levantando-se depressa, como se lembrasse de um assunto urgente, esticou a mão enfaixada e disse: — Se você terminou de cavar buracos e fingir ser um vegetal, quer se sentar comigo e a maluca do sorvete? Eu estava assustada com sua mudança de comportamento e ainda mais nervosa em tocar em sua mão e causar outra reação estranha em seu corpo. Só que convencida por uma sensação de ansiedade, dei outro sorriso e coloquei de leve a minha mão suja de terra sobre a sua bandagem branca, manchando-a completamente ao unir os nossos dedos. Henry me guiou até a mesa de ferro e se sentou ao lado de Noelle. Ela parou por um instante de comer o seu sorvete e o cumprimentou com um sorriso tímido. — Hêr... Quer... Sorvete? Ele assentiu com a cabeça, observando-a encher a segunda xícara em cima da mesa e perguntando alguma coisa sobre margaridas. Não era segredo para ninguém que Noelle adorava margaridas. Seu próprio perfume era um indício de sua obsessão pelas flores. Ela e Henry pareciam se conhecer há mais tempo do que eu pensava. A diferença entre as duas pessoas à minha frente era óbvia. Noelle me ajudou a distrair os meus pensamentos confrontando a sua própria solidão. Henry me fez enxergar através de um único gesto que alguns momentos poderiam ser limpos e bonitos como uma manhã de Primavera. Seus olhos verdes contrastando com a pele branca e a sombra das covinhas em suas bochechas, se tornaram algum tipo de marca para mim. Fisicamente eu pude sentir o elo sendo criado. A questão era que, me considerando o próprio Outono, quando o frio surge e as lindas flores se sentem obrigadas em adaptar-se à ausência do sol, indistintamente eu sabia que em algum momento seria a responsável pela partida dele. Quando ambos riram de alguma coisa que eu não ouvi, outra sensação estranha percorreu o meu corpo. Era como se tivesse tido um Déjà vu, observando duas pessoas conversando entre sorrisos e risadas, enquanto uma garotinha loira espreitava do outro lado do jardim. A garotinha se sentia feliz, aquela era uma lembrança da qual ela sempre iria querer manter em sua memória. O pigarro de Henry chamou a minha atenção, afastando a visão que tive como se não fosse nada além de uma fumaça. — Por que você não está tomando sorvete? Olhei para o céu nublado e de volta para ele. — Não quero ficar gripada. Seu rosto se contorceu em uma careta de pura indignação e ele se afastou da mesa como se eu tivesse dito a pior ofensa do mundo. — Qual tipo de louco se recusa a fazer exatamente o que um louco faria? Noelle deu a sua famosa risada de gato e virou-se lentamente na direção dele. — A... A-Bee... é muito... boba. — A-Bee? — Henry perguntou olhando para mim. — Tipo, abelha? Dei de ombros. — Ela não consegue falar Abby. Com a colher cheia de sorvete suspensa à centímetros de seu rosto, Henry testou o meu apelido. — Bee... — Abocanhou o sorvete e murmurou após engolir: — É bem melhor do que Bipolar da ala quatro. Suspirando para esconder o meu sorriso, inclinei o meu corpo para me apoiar contra a mesa. O movimento fez com que meus cabelos escorressem pela lateral das minhas costelas e a pesada mecha trançada bateu em mim. Peguei a mecha e trouxe a orquídea magenta em direção ao rosto, sentindo um leve aroma de canela misturado com rosas, aroma que dali em diante sempre me fariam lembrar a Henry.
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