O passado não é nada além de uma fantasia. Embora falso, porque não podemos realmente vivê-lo, são as lembranças de uma memória clara que determina quem nós seremos no futuro. Os perfumes, os sons, as sensações de Déjà vu, e todas as intuições que possuo seis vezes mais do que uma pessoa normal, se torna inútil para alguém que não pode reviver momentos realmente importantes. Estou sempre me perdendo em pensamentos e recordações que não me levam a lugar algum.
O banheiro das garotas já está aquecido pelo vapor dos chuveiros dentro das nove baias ocupadas quando desperto de mais um devaneio; sendo o terceiro numa única manhã. A décima baia sobrou para mim, só que os meus passos se dirigem à frente do longo espelho quadrado acima das pias. Apesar da política inflexível da clínica, os banheiros possuem espelhos porque é uma tentativa de não deixar que esqueçamos de nós mesmos. Os enfermeiros estão sempre esperando encostados nas pias, enquanto os pacientes se escondem através da cortina azul que substitui uma porta de verdade.
Maisee me entrega um saquinho com minha escova de dente e uma pasta com sabor de menta. As toalhas e roupas são guardadas em saquinhos plásticos até que sejam levadas para lavanderias. Todos os saquinhos com zíper têm os nossos nomes no seu exterior, para que ninguém use nada de ninguém.
Maisee se afasta brevemente para guardar a minha escova e procurar pelo meu nome no enorme cesto de saquinhos do lado esquerdo da pia. Sozinha, não resisto mais à tentação de encarar a minha imagem refletida no espelho.
Hoje sei que não se trata de nada além de uma alucinação, mas várias vezes senti as paredes escurecerem, os azuis das minhas íris se tornarem opacos e, de repente, uma luz se acender, as peças girarem e outra Abigail pular para fora. Dessa vez, considerando a decadência em que me encontro, me sentiria imensamente grata em constatar que esta imagem pertence à outra pessoa.
Meus cabelos estão em um emaranhando platinado que lembra muito uma teia de aranha, os cachos nas pontas alcançando o meu cóccix. Meus olhos estão fundos e as olheiras estão mais aparentes do que nunca, um nítido sinal de várias noites em claro. Sei que nunca me livrarei das olheiras, ainda que durma por anos. É uma marca tão permanente quanto a cicatriz que começa abaixo da curva de meu nariz e atravessa o canto direito do meu lábio superior. Essa cicatriz é apenas mais uma das muitas rachaduras que possuo em meu corpo. Virando de costas, ignoro a visão que tenta se arrastar diante dos meus olhos para me lembrar a maneira como obtive essa marca.
O banho em si não demora muito. O cheiro do sabonete de canela me distrai e preenche aquele vazio em meu cérebro que procura por informações. Ao secar o meu corpo com a toalha branca, sinto dor em cada uma das marcas roxas que me decoram a pele pálida. Na altura do meu seio esquerdo, há um grande círculo vazio do tamanho da minha mão fechada em punho, que, durante sonhos dos quais não me lembro ao acordar na manhã seguinte, posso sentir quase como se a ferida se abrisse e queimasse a minha pele outra vez.
Além da lingerie de algodão branca e do uniforme padrão, há um tênis de velcro. O uniforme não passa de uma blusa de manga comprida e calça de moletom cinza que devemos usar mesmo nas épocas quentes. As minhas meias m*l alcançam os meus tornozelos e são cobertas pelos tênis perfeitamente brancos que possuem duas pequenas tiras que grudam nas laterais. Depois de pronta, seco meus cabelos e abro a cortina. O cheiro do desodorante cítrico impregna na minha roupa enquanto sigo para fora.
Maisee e eu contornarmos todo o corredor leste e tornamos a subir o primeiro lance de escadas para chegar ao primeiro andar. Atravessando o corredor, nos encontramos com o diretor da clínica. Um homem careca, baixinho e que por seu peso excessivo dá sempre a impressão de que não tem um pescoço. Seu sorriso amarelado nos cumprimenta e eu retribuo apenas por educação. Quase nunca vejo o diretor fora de sua sala. Ele está sempre resolvendo assuntos importantes e nunca parece interessado em saber de cor o nome ou qualquer coisa significante sobre seus internos.
Maisee se aproxima da porta com uma pequena placa em que se lê "Dr. Conway", batendo duas vezes antes de abrir.
A sala do médico tem boa parte do piso de madeira coberto por um enorme tapete indiano. Os quadros de pintores famosos estão paralelamente erguidos em contraste às prateleiras com uma infinidade de livros grossos e muito bem polidos. As grandes cortinas quase sempre fechadas impedem que o pouco do sol entre na sala, o que a deixa com um "quê" sombrio que me fascina. Há dois sofás de couro n***o e um divã onde já me deitei várias vezes durante o meu tratamento. Foram ali que as minhas primeiras lembranças surgiram e sumiram como uma poeira que se arrasta para debaixo de um móvel.
O doutor Conway está de braços cruzados e em pé de frente para sua enorme escrivaninha, esperando com paciência enquanto eu analiso sua sala da mesma forma que sempre faço quando estou aqui.
— Bom dia, Abby. — Conway me cumprimenta com um sorriso caloroso. — Como estamos hoje?
O doutor Conway nunca me disse sua idade, ou talvez tenha dito e eu não me lembre. De qualquer forma, ele tem a aparência de um homem de cinqüenta e poucos anos. Seus cabelos castanhos mais claros em algumas partes são tão curtos que quase não existem. A expressão gentil e amável está sempre estampando seu rosto, ainda que fique menos evidente quando ele quer soar como um verdadeiro Psiquiatra. Nossas sessões com o acompanhamento de um Psicanalista foram substituídas por sessões individuais quando, segundo ele, meus resultados pareceram promissores. Desde então, passei a anotar mentalmente cada um de seus humores me baseando em sua roupa diária.
Hoje ele está usando uma camisa de manga comprida na cor azul marinho e enrolada até a altura de seus cotovelos, além de calças sociais pretas. Presumo que ele está em um ótimo humor.
— Muito bem, doutor. — Respondo imediatamente, espelhando o seu sorriso com o meu.
O doutor sempre me recebe sentado em sua cadeira giratória e com o queixo apoiado nas mãos cruzadas. Hoje ele permanece de pé, uma expressão de expectativa estampada em seu rosto magro. A rotina faz parte da vida dos médicos, é assim que eles conseguem manter a paciência para ajudar aos outros. Quebrar uma rotina é um péssimo sinal.
Mesmo que a minha intuição aguçada tenha sido ativada no momento em que cruzei a sua porta, não digo nada, esperando pelo próximo plano genial que ele terá para mim durante a semana.
— Ótimo — Conway descruza os braços e seus olhos acinzentados brilham para mim. — Porque hoje nós temos visita. — Ele inclina o braço na direção das cortinas da sala. Sigo seu movimento e congelo no lugar.
O doutor Conway aponta para o sofá de couro de dois lugares à frente das cortinas, onde um homem está sentado. Meus olhos se arregalam e um formigamento dentro de mim ameaça revirar as paredes do meu estômago. O homem ergue o seu olhar e estuda a minha reação. Seus cabelos agora completamente grisalhos estão perfeitamente penteados para que não caiam sobre a testa. Sinto vontade de gritar assim que ele se levanta e sorri. O seu sorriso é contido, como quem quer sorrir e não sabe como fazê-lo. O mesmo que eu não vejo há cinco anos.
— Pai?