Anos depois
A vida na cidade grande não era o que eu sonhei, nem mesmo em meus piores pesadelos, não tinha cobra, nem tinha mato, tudo que Robson e os meus tios disseram sobre o Rio de Janeiro, esqueceram-se do principal. Do lado para onde vai os pobres, aquele lugar em que morava, a favela aqui é a Central, no inicio foi díficil para me adaptar, não há bicho, mas há tráfico, não tem que catar p*u, mas há violência e de todos os tipos, doméstica, há violência entre vizinhos, há disparos a qualquer momento do dia, é tão díficil conseguir médico quanto na roça, e dinheiro ainda mais, pra sair na rua tem que pagar.
No inicio não foi fácil, grávida de três meses sem nenhum documento que comprovase a gestação, ir em filas de postos de saúde, acordar cedo não era tão dificil, complicado mesmo é lidar com o povo, ninguém tá nem aí pra ordem, é bate boca, é empurra, é chuva, médico que não vem, eu já não sabia se era melhor ter vindo ou ter ficado na roça, mas era tão distante, a cada dia que passa passei a agradecer a Deus por ter sobrevivido, por não ter sido encontrada por uma bala perdida, no inicio quando havia brigas saia a porta pra olhar, era curiosa, mas com o tempo entre gritos e disparos aprendi que nem tudo é preciso ver, gente morre ninguém liga.
Eu não precisava estar lá para saber que alguém morreria. O meu primeiro filho Adailton nasceu, Robson que escolheu o nome, apesar dos médicos avisarem do repouso, cuidado e resguardo, quem iria controlar o fogo de nós dois jovem, a cama sempre balançava enquanto o nenê chorava ou dormia, e em trêss meses a barriga voltou a crescer novamente era a vez de Dalton, ele viu este nome num filme, na televisão, a única coisa que fazia meu tempo passar, e os dois menino se tornaram o motivo da minha vida, mesmo que me fizesse ficar acordada a noite tentando amamentar um e segurar o outro pra o pai dormir, porque no dia seguinte ia trabalhar na oficina.
Robson é ajudante de mecanico, mas mesmo com toda graxa e dificuldades, eu amo ele, desejo e tenho paixão por ele, mas os meses foram passando, como resultado dos dois partos m*l cuidado fui engordando, os beijos foram diminuindo, ao invés de puxões de cabelo para roubar um beijo, os puxões era para me chamar. — Gorda! — Na cara, os tapas na b***a também, o puxar da calcinha como se fosse um badoque de matar passarinho, bater do elastico da calcinha na pele, arder em seguida.
Com dois anos juntos, ninguém mais me reconheceria se me visse hoje, comparando ao passado, quem foi eu? Até mesmo meus filhos aprenderam a pronunia a apelido que todos chamava. — Gorda? — No inicio eu ainda reclamava, corrigia, mas cansei, tudo foi mudando e eu foi parando de responder meu nome é Zaya. Aos dois anos, pra Adailton consegui uma vaga na creche, depois de um bolo m*l feito na oficina, Robson foi demitido, usaram o carro e nenhum dos funcionarios sabia quem foi.
Com a ida de Adailton de dois anos pra a creche, Dalton poderia ir pra a vizinha, Claudia, que fala da vida de todo mundo, mas ajuda dando um socorro quando preciso, faço mesmo quando posso, mas um dia ela chegou com a bocona grande, dizendo que o shopping estava pegando curriculo para jovens aprendizes, eu já sou mãe, mas só tinha dezessete anos de idade, com um pouco de ajuda do que conheci na cidade, pra pegar ônibus juntando as letras, e as vizinhas que ajudava, além do desespero da empresa para ter pessoas que aceitassem o tipo de trabalho quase escravo, me aceitaram, foi o meu primeiro trabalho, mas Robson fez questão de lhe dizer que era teste, um teste que eu não ia passar.
Desse teste, cinco anos passaram, trabalhando ali, atender telefone e fazer cobrança, Robson nunca mais voltou a trabalhar, sempre estava fazendo b***s, os nossos filhos começaram a estudar e o mais velho cuida do mais novo as tardes, além da vizinha que sempre passam o olho. Até que surgiu outra empresa, com a fiscalização no pé, da primeira, passei a trabalhar o dia inteiro como operadora, agora além de ser no shopping, passei a ser operadora da Oi. É o que garantia o sustento do mês e o aluguel da casa.
Eu comecei a perder o amor pela vida, com o tempo, meu peso estava a cima do padrão, com um metro e sessenta e cinco de altura, deveria pesar entre cinquenta a sessenta e sete quilos, isso o médico me disse na última consulta, mas não estava nem perto disto, cento e trinta e seis quilos era o que apontava a balança, a calça jeans não faziam mais parte da minha vida, além de serem mais caras, meu tamanho era maior, quarenta e oito a medida.
Nunca me disseram sobre o amor, o que é, como é, se a gente se ama ou não, na roça não tinha isso de amor próprio, o trabalho da mulher é fazer as obrigações de casa, dos filhos, do trabalho no mato, e sempre ter filho, quanto mais filho melhor, não importa o que faz, não importa como foi feito, ninguém se importa com ela, mas se deixar de fazer é r**m, a mulher é medida o valor pelo que faz, aprendi cedo na vida.
Os meus cabelos castanhos que já foram queimados de sol, agora tem duas cores, um tom mais escuro outro avermelhado, nunca usei maquiagem porque nem mesmo soube o que é isso, só soube no dia em que as vizinhas me maquiaram para passar na entrevista, meu rosto tinha sarda pintas vermelhas, a minha pele ficou lisinha, mas Robson nõ gostou, disse que parecia um traveco, não sei bem o que é traveco, mas alguns deles passam na rua como mulheres. Com o tempo, o cansaço, a cama parou de balança, meu marido não me procurava mais, a algum tempo, mesmo que a minha mão deslize para dentro da sua bermuda durante a noite, ele se virava para o canto parta continuar a dormir, eu gosto tanto do movimento de entrar e sai.
Com os dois partos engordei muito, acabando comendo demais, pela ansiedade, aproveitando as vantagens da vida, só cabe ir assistir televisão, ao sentar no sofá velho me afundar nele, agarrada ao prato de macarrão com bastante molho e catchup. Nessa vida complicada tudo que penso é dá o melhor aos meus filhos.
Dalton é o meu mais novo, com cinco anos sempre traz uma florzinha que rouba do jardim da escola para me dá, enquanto Adailton o mais velho, deita a meu lado quando tem febre, ou se sente triste, tento consolar, o acariciando devagar, sei que ele se esforça para chamar a atenção do pai que não liga, só pensa em cerveja em beber com os amigos, mas sem estar doente, meu mais velho parece um homenzinho.
Sempre tive vontade de escrever para casa, mas como se por ali talvez ninguém mais saiba ler, e nem mesmo tem carteiro para levar? O que mudou nestes anos na lá em casa? Sempre me pergunto quando escuto alguém de sotaque conterrâneo falar, agora já falo diferente, aprendi por ser exigido no trabalho, aprendi a falar bem, a usar uma boa dicção, o que no inicio foi dificil para mim como falar com uma voz de arroto, mas agora acostumei e exigo isso dos meus filhos. Que eles falem bem, que estudem, pra não precisar entrar pra o tráfico.
Todos na rua falavam que meu marido me trai, ele nem mesmo me deixa pegar no celular que era só tocar nos domingos e feriados ele some de casa como um raio após o anúncio do trovão. Eu tenho as minhas suspeitas, mas não quero ver e nem acreditar, o que eu poderia fazer se algum dia soubesse ou pegasse? É melhor continuar fingindo cegueira, enquanto o teto de casa continua firme, foi assim que aprendi com mãe, a fingir que não ver, até que elas vão embora, cercar pra briga não adianta.
Meus filhos tem um pai, mesmo que for só pra dizer que tem, mas que ele é. Se não for apenas pra pegar o chinelo e bater nos dois, não, ele não era mais que isso. Não é diferente do meu pai, que até tem filhos fora do casamento, alguns dizia que os dois mais da dona Lúcia era dele, mas ninguém em casa podia falar, nem nela, tampouco nos filhos, minha mãe batia na gente. Era mais importante ele ficar em casa, acima de qualquer coisa, e ir embora painho nunca foi.
Todos so dias com os meus vestidos largos subo o morro para trabalhar, cumprimento os rapazes da boca, peço a Deus mentalmente pra que os meus filhos nunca dêem pra isso. — Bom dia rapazes. — Todos eles com seus fuzis na mãos, sempre diziam em unissono. — Bom dia Gorda. — Este é o meu nome por aqui, apenas sorrio fraco, não havia com o que lutar, porque mais? Dizer que meu nome é Zaya, eles escutam assim, é só perguntar pela gorda, e todo mundo aponta a casa azul, é alugada, mas é a casa da Gorda por sete anos.
— Gorda! Gorda! — Me viro olhando pra Claúdia, que vem ofegando pra contar a fofoca do dia. — Advinha quem tá dizendo por aí menina que tá buchuca do chefe? — Segura o meu braço, envolvendo com o seu, subimos a rampa juntos. — Não faço a menor ideia, você não cansa de falar desse homem e eu ainda nem sei quem é. — Gargalha do meu lado,não importa muito o que a gente diz por aqui, o negócio é ficar informado na fofoca desde cedo. — A Gabriella.
Parei abrindo a boca. — O que menina? Quem? — Pergunto pra a mulher que bate em meu braço afirmando várias vezes. — Pois é, novinha né menina, já foi la garanti o acesso vip no baile. Agora tá o... — Faz o gesto de barriguda com a mão, franzo o cenho ao ver. — E tu acha que ali já menstrua? — Dá mais gargalhada, chegamos ao ponto do ônibus conversando, não faço ideia de quem seja o chefe, mas Gabriela, Gabizinha, conheci pequena ainda comendo catarro. — Oxi menstrua, tá até guentando p**a, mulê. Porque te dizer viu, aguentar a madeira do chefe né moleza não, deve ser bem... — Levanta o braço, mostrando o ante braço a minha frente.
Ergo as duas sobrancelhas, ela solta de repente.— É cavalo! — Rimos, vejo que o ônibus esta chegando. — É da de cavalo que elas gostam Gorda. — A turma ja se acumula na espera, apenas olho até que para, entro pela frente por causa da catraca que não me deixa passar, sempre trava. — Bom dia senhor Ronaldo. — Sorri largo, aceno pra Claúdia dando tchau. — Bom dia Zaya, pronta pra mais um dia?
Suspiro fundo levantando as sobrancelhas. — Pronta não tô, né,mas a gente finge que tá. — Rimos juntos, ele segue no volante enquanto eu de pé me apoio pra não cair, esperando que qualquer assento seja desocupado, pra poder sentar, a brincadeira das cadeiras que Dalton conheceu na escola ano passado, conheci de forma diferente, é sem música e num busão em movimento, cheio de pessoas.