Após o jantar de rei, Augusto chamou Abilene ao seu luxuoso escritório. Dariam continuidade ao assunto do testamento. O milionário não tinha segredos com ela. Abilene era a única pessoa que sabia de todos os lucros e gastos dele. Aliás, ela sabia de muita coisa.
Foi uma luta convencer Abilene a aceitar o benefício que Augusto poria no testamento, mas ele fez de acordo com suas vontades e não aceitou os contestamentos dela, ignorando as diversas vezes que ela o chamou de maluco.
Ainda era algo provisório, mas dava para dizer que estava pronto.
Sem dores de cabeça com isso por enquanto, pensou Augusto.
E ele estava certo: agora poderia descansar, ao menos por enquanto.
* * * * *
Quatro anos se passaram, e as principais notícias no decorrer desse tempo foram: Isadora estava grávida - contou isso aos gritinhos pelo telefone, e até arriscou que seria uma menina, disse que sentia isso. Augusto apreciava a notícia do outro lado com grande satisfação. Os irmãos não estavam tão próximos, mas havia comunicação entre eles, e isso já alegrava o empresário. E o outro grande fato foi o surgimento de Fabiano. Augusto não acreditava em magia, mas o amigo resolveu dar as caras como num passe de mágica.
Num dia de folga típico na vida de Augusto, a recepcionista da Metal Industrial ligou para ele se desculpando por incomodar e dizendo que estava com um homem na linha que insistia muito em falar com ele.
- Senhor Augusto, me perdoe mesmo por estar incomodando seu lazer, mas depois de eu dizer diversas vezes que o senhor não estava no escritório, ele chegou a dizer que era para eu dizer que ele era "amigo do Gu", e o senhor entenderia. Ele se apresentou como Fabiano. O senhor irá atender?
As pernas do velho chegaram a bambear naquela hora.
- Sim, por favor, pode transferir a ligação.
Augusto lia um livro em seu imenso jardim quando isso aconteceu, e de repente ficou nervoso.
- É você, Fabiano?
- Sou eu mesmo, Gu! Oh, me perdoe, sr. Augusto Gentil!
A voz havia mudado bastante, mas Augusto reconheceria de longe.
- Fabiano, eu... por onde andou?
- Longa história, meu amigo.
- Como assim longa história? Fabiano, você sumiu, e... como está? Está bem? - o velho tentou organizar as palavras, mas estava difícil.
- Não se desespere, Gu... posso chamar você de Gu ainda, não posso?
- Não - disse Augusto, tentando esconder a alegria repentina. - Você me deve explicações, e nem sequer pense que vai se esquivar de meus sermões.
- Meu Deus, você continua o mesmo!
Os dois trocaram risos, assim como as últimas amenidades do dia, mas a conversa ficou bem séria quando Augusto insistiu em saber o que Fabiano tinha feito por todos aqueles anos.
- E pode contar os detalhes, estou de folga hoje. Ligou num belo dia.
- Oh, me desculpe. Já fui muito chato com sua secretária, e agora estou sendo com você.
- Não mesmo - disse Augusto, sentindo-se aliviado conforme o papo fluía. Até o presente momento, estava visivelmente alegre.
- Bom, não quero estragar seu dia, Augusto...
- Deixe de bobagem, Fabiano. Diga logo, homem!
Augusto ouviu a respiração pesada do outro lado da linha. Ele percebeu que o que Fabiano teria a dizer era algo que o incomodava.
- Pois bem, tudo numa tacada só, para ser menos doloroso, combinado?
- Como queira, serei todo ouvidos.
Mais uma pausa para um suspiro pesado.
- Vejamos. Tô pensando aqui em como começar, eu liguei e... estou muito sem graça por isso - disse Fabiano, dando uma breve gargalhada nervosa. - Bem, vamos do começo, não é? - Augusto esperou. - Minha p***e mãe passou anos sofrendo pela morte de meu pai, conforme eu havia lhe contado antes de perdermos contato definitivamente.
- Eu me lembro - disse Augusto.
- A coitada não superou, nem mesmo nos dois anos seguintes, ficou tão depressiva que acabou adoecendo. Bom, durou menos de três anos sem meu pai.
O silêncio se estendeu pela linha telefônica.
- Meus avós foram meus pilares por bons anos. - A pausa fez com que Augusto sentisse o peso da emoção Fabiano. - Mas enfim, vamos para parte em que eu conheci uma garota linda, pela qual eu me apaixonei, e que me ajudou a entrar na empresa onde ela trabalhava. Foram bons momentos. Ficamos juntos por longos e bons anos. E acredito muito que ela foi o começo de uma vida. Vi esperança, meu bom amigo. Ela me trouxe de volta para o mundo, e claro, o emprego que ela havia arranjado foi um bom pontapé na minha carreira.
- E por que, ainda assim, eu sinto que há desespero em sua voz, Fabiano?
- Acredito que, mesmo passados todos esses anos todos, você ainda é a pessoa que mais bem me conhece.
- E não se esqueça que sei ler seus pensamentos - Augusto disse, para quebrar a tensão. - Você é um super-homem, sr. Augusto Gentil.
Quando as risadas cessaram, Fabiano continuou:
- Bom, o divórcio não foi o começo de tempos difíceis, mas foi uma das pressões que tive que suportar. Eu já estava num patamar invejável quando decidi voltar à ConstruMar...
- Não acredito! - Augusto se exaltou. - Você trabalhava na ConstruMar, a que presta serviços para a Marinha do Brasil?
- Sim... trabalhei por muito tempo lá, fui conquistando meu espacinho.
- Era uma boa empresa, já ouvi falar em uma das reuniões das quais participei há anos, quando a Marinha estava fazendo consultoria com várias prestadoras de serviços para a construção do protótipo de submarino nuclear brasileiro. Acredito que até hoje o projeto não tenha andado nem 25 por cento do esperado.
Fabiano elogiou a memória do amigo.
- Realmente não deu em nada, podemos dizer. Porque nos anos que transcorreram foram apresentados pouquíssimos "trechos" fabricados...
- Eu me recordo, mas isso não é o que importa agora. Fabiano, de certa forma tínhamos como nos comunicar, mesmo que profissionalmente, porque com certeza você tinha conhecimento do fornecimento de alguns equipamentos pela Metal Industrial! E você diz que trabalhou na ConstruMar e nunca tentou contato comigo?
- Augusto, eu...
- Fabiano! Anos, Fabiano! Você poderia...
- Escute! Por favor, é passado. Entenda. Você se tornou o Super-Senhor-Augusto-Gentil-da-Metal-Industrial, e eu era apenas um gerente de contratos da ConstruMar. Amigo, sei que pode relutar em entender, mas nossas vidas seguiram rumos diferentes, e com o propósito de não importunar você ou...
- Importunar, Fabiano?
- Escute, meu amigo. Sei que está nervoso agora, mas já disse, são águas passadas.
Discutiram por mais alguns minutos, porque Augusto não engolia as desculpas e os argumentos dados por Fabiano, mas antes que elevassem o nível da suposta briga, se acalmaram e diminuíram o tom.
- Peço desculpas - Augusto cedeu.
- Eu que peço desculpas, mas entenda, amigo.
- Vou colocar uma pedra em cima de seus argumentos, certo? Estou nervoso, e diria que até magoado, mas seus motivos são seus, e o que é importante nisso tudo é que você está vivo e poderemos manter contato.
- Ótimo. Sim, e dessa vez, preciso mais ainda manter contato. Como deve saber, as coisas desandaram na ConstruMar. Ela já estava m*l das pernas quando me contrataram para ajudar como pudesse na tentativa de reerguer a empresa, pois como foi espalhado na mídia, os diretores de lá se meteram numa corrupção do tamanho do planeta.
- Vi nos jornais, Fabiano, agora me lembro.
- É nessas horas que a gente agradece por a empresa ser de pequeno porte e não gerar mais caos no mundo empresarial... Pois é, naquela época foi montada uma equipe administrativa para trabalhar arduamente durante o processo de recuperação judicial, foi nesta maldita hora que resolvi mostrar minha gratidão à ConstruMar, pelos anos que ela me acolheu, mas não deu certo. A empresa faliu, junto com meu casamento. Saí de lá sem um centavo, entrei em depressão e perdi o controle da minha vida, assim, de modo brusco, repentino... Fiquei sem trabalhar por um ano, e creio que você saiba que na nossa idade, é muito difícil competir no mercado de trabalho. Os jovens estão cada vez mais ávidos, preparados para tudo, além de serem super-heróis nas horas vagas.
Os amigos riram em meio à narrativa preocupante.
- Bom, meu amigo, vamos partir para os fatos atuais. Estou me restabelecendo, e quero me reinserir no mercado industrial. Estou muito envergonhado de entrar em contato com você para lhe pedir uma oportunidade...
- Fico até feliz que se envergonhe, Fabiano! Mas se envergonhe de ter abandonado um amigo... - E depois de cuspir essas palavras, Augusto disse: - E cuide para que venha logo até a Cidade Esperança, a Metal Industrial precisa de um novo gerente de contratos na equipe.
- Você está falando sério?
- E eu estou para brincadeiras? Mas, claro, antes de tudo precisamos acertar muitas coisas, principalmente as pessoais. Quero saber de tudo. Onde você mora, por onde andou... E vou dar uns puxões de orelha bem forte, porque o senhor merece. Depois vamos negociar. Preciso que me conte sobre seus empregos anteriores, detalhadamente, suas habilidades com contratos, clientes, enfim, toda aquela conversa burocrática empresarial, meu caro!
- Estou sendo chamado para uma entrevista, sr. Augusto Gentil? - perguntou Fabiano de modo brincalhão, sem se conter de felicidade.
- Sim, e se me chamar pelo apelido em pleno recrutamento, estará fora!
Gargalhadas soaram pelo jardim e também pelo outro lado da linha.
Esse foi o recomeço de uma amizade.
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