Bruna
Agora:
Caí no chão com a força com que fui atingida. Coloquei as minhas mãos ao lado da cintura, onde vi que estava sangrando muito.
Não gosto de ver sangue. Não tanto sangue assim. É assustador.
Eles continuavam ameaçando.
Eles falaram que iriam me matar.
Comecei a chorar enquanto a dor começava a crescer.
O medo de morrer me tomou.
— Atira nela, Arroz! Atira nela logo! — o mandante de tudo gritava.
Era o meu fim. Não tinha como reverter isso.
O cara deixou o revólver cair no chão e parece que era a única arma que havia ali. Quando ele dobrou seus joelhos para pegar o objeto no chão, a sirene do carro de polícia tocou alto e a porta se abriu com um golpe.
— SE AFASTA! SE AFASTA! — alguém gritou.
Fiquei em posição fetal no chão, ainda cobrindo o lugar do ferimento, mas de olhos fechados, com medo de tudo o que pode acontecer agora.
Esperanças de viver? Não tenho.
— UMA REFÉM. UMA REFÉM. — alguém segurou meu braço.
Estava uma gritaria só no lugar. Mas eu foquei as vozes que estavam mais próximas a mim.
— Deixa que eu cuido dela. — outro homem disse. Soltaram meu braço e tocaram no meu rosto. — Pode ficar tranquila. Vai ficar tudo bem. — disse a pessoa e eu abri meus olhos.
O homem que estava agachado ali na minha frente era Isaac.
— Bruna? — ele arregalou seus olhos e franziu as sobrancelhas, estranhando a situação em que me encontro. Depois olhou para o lugar do sangramento e se afobou. — Ela foi baleada! Rápido! Tragam a SAMU!
Chamar a SAMU já quer dizer que estou nas ultimas mesmo.
— Eu vou morrer, Isaac?
— Não. Nós não vamos deixar. — ele segurou a minha mão firme.
Sinto que encontrei a reciprocidade tarde demais.
[...]
MARANHÃO, BRASIL, 2010.
(Baseado em fatos reais)
Terminei de me arrumar para ir pra escola e apareci na sala com a mochila na mão. A minha mãe estava terminando de fazer o café da manhã e meu pai se preparava para sair pro trabalho.
O clima não estava tão legal até eles me verem. Ambos olharam para mim e sorriram. O meu pai veio todo empolgado e me abraçou, fazendo com que eu soltasse a mochila e ela caiu no chão.
— Minha princesinha tá tão grande! — ele esfregou seu nariz no meu pescoço e eu ri.
— Tô grande mesmo, pai. Já tenho 10 anos. Você não pode me carregar nos braços!
— Quem disse que não? — ele afastou sua cabeça e encarou meu rosto com uma expressão engraçada.
Nesta época eu era tão inocente que não conseguia enxergar nada além do amor que meus pais me davam. Mas logo eu começaria a entender que nem tudo são flores.
Fiquei rindo e meu pai me colocou no chão.
Peguei a minha mochila e pendurei na cadeira, depois sentei para comer o pão com manteiga e café com leite que a minha mãe havia feito para mim.
— Hoje será pão. Amanhã você come o que gosta. — ela avisou sorrindo.
O que eu mais gostava de comer no café da manhã era cuscuz.
Assim que ela terminou de fazer o café da manhã para todos, limpou suas mãos e veio para perto de mim. — E esse cabelo?
— Eu fiz sozinha. — olhei para ela orgulhosa.
— Mas está uma moça mesmo! Ficou lindo!
Seus elogios sempre me deixavam toda encabulada. Logo eu estava rindo como uma boba e balançando os pés embaixo da mesa.
— Que sorriso lindo dessa criança. — ela passou a mão na minha cabeça.
Eu sou filha única, então todo o amor que meus pais poderiam dar a um filho, foi dado a mim.
Este não era o primeiro dia numa escola nova, numa série nova ou numa cidade nova. Era um dia comum como qualquer outro. Eu não esperava que alguma coisa diferente poderia acontecer em minha vida. Mas as coisas acontecem quando a gente menos espera, então foi neste dia comum que eu a minha cabeça de criança inocente foi se abrindo para coisas novas.
Eu havia esquecido de pegar o caderno de tarefas no quarto e pedi para meu pai esperar, antes de sair de casa. Sempre saíamos juntos e ele me levava até o ponto de ônibus.
Enquanto pegava o caderno no quarto, ouvi uma discussão entre meus pais. Era uma energia muito diferente da que eles passavam para mim. Isso me causou uma péssima sensação.
A minha mãe reclamava com meu pai. Falando que ele deveria parar. Ele deveria parar com alguma coisa que eu não entendia ainda. Ela dizia que tudo aquilo prejudicaria a mim e a nossa família.
Meu pai retrucava com ela. Em objeção, parecia que ele odiava ser repreendido pela minha mãe. Ele fez ameaças. Ameaças de ir embora e deixa-la para trás.
Foi neste momento em que percebi que o casamento deles estava por um fio e o medo tomou conta do meu coração. Pensar em uma vida longe de um deles era algo impossível. Eu queria passar a minha vida toda morando com meus pais e se possível recebendo o mesmo amor que eles me davam desde que nasci.
Eu não era uma criança burra. Talvez muito inocente, mas burra nunca. Então quando saí do quarto, bati a porta para que eles soubessem que eu estava chegando na cozinha. Então pararam de discutir bem antes de eu aparecer.
Eles sorriram para mim e eu coloquei o caderno na mochila. A minha mãe guardou também ali uma lancheira e fechou a mochila, me ajudando a colocar nas costas. Ela me deu um beijo na cabeça e me deixou ir com o meu pai. De mãos dadas.
Fomos em silêncio até certo ponto do percurso, até ele quebrar o silêncio com um assunto que não tinha nada haver com a sua briga com a minha mãe. O meu pai podia ter defeitos, mas comigo ele era perfeito.
— Então, me conta, a sua amiguinha Sarah está se comportando? Ela te trata bem?
— Sim. Ela é a minha melhor amiga do mundo todo. A gente brinca e come juntas e gostamos de Justin Bieber.
— Quem é Justin Bieber?
Não me julguem. Que ser humano que viveu em 2010 com idade entre 10 a 16 anos que não foi apaixonada pelo Justin Bieber?
— Aquele pôster que você me deu era dele.
— Ah. Aquele rapaz do cabelo na testa? — ele ficou rindo e chegamos no ponto de ônibus.
Eu tinha muito ciúmes do Justin. Ninguém podia falar m*l dele. Mas o meu pai era o meu pai. Resolvi não ficar magoada.
Depois que ele se despediu de mim, sentei no banco e esperei o ônibus chegar.
Pouco tempo depois, Sarah também apareceu, sozinha.
A família dela não era como a minha em questão de atenção. Eles eram um pouco negligentes, mas para uma garota de 10 anos como eu, aquilo era um máximo. Sarah podia ir toda tarde para a minha casa, brincar comigo. Os pais dela não se importavam de ela sair sozinha na rua.
Sempre vamos sentadas juntas no ônibus. Neste dia, a Sarah estava mais arrumada do que nunca.
— Olha, Bruna. — ela abriu o bolso da frente da sua mochila e tirou um brilho labial da Avon e me mostrou.
Seus lábios estavam brilhando por causa deles. Ela também estava usando uma tiara bonita nos cabelos e sombra.
— Quem te deu? — peguei o cosmético e tirei a tampa para cheirar. Tinha cheirinho de morango. Me lembro como se fosse hoje. Eu adorava esse cheirinho.
— Foi a minha tia. — ela estava toda contente com o presente. — Quando a gente chegar na escola eu vou te mostrar uma coisa. — ela olhou para trás e depois ficou toda corada, olhando para a frente. Fechei seu brilho e te devolvi.
Fiquei com vontade de ter um brilho desses, mas eu não podia pedir a minha mãe. Ela não gostava que eu usasse coisa de adolescente. Também, éramos da igreja e a minha mãe acreditava que tudo tinha o seu tempo e não era hora de entrar em vaidade.
Já bastava os meus cabelos e as presilhas que ela colocava e que eu amava.
Seguimos viagem e quando estávamos na sala, Sarah, que sentava numa carteira ao lado da minha, me mostrou o grande segredo. Era uma cartinha de folha de caderno. Por fora estava escrito: “Para Sarah, de seu admirador secreto”.
— Admirador secreto?! — eu fiquei eufórica. Eu fui uma criança que assistia muito desejo e adorava as 3 espiãs demais, as visões da Raven e X-men Evolution. Certamente um deles falou sobre isso e eu fiquei eufórica por acontecer também na vida real. Isso era demais.
— Aham. — ela levantou da cadeira e veio falar no meu ouvido. — Mas eu sei quem é. — contou sorrindo.
Abri a cartinha e não sabia se estava mais ansiosa para saber o que estava escrito nela ou quem havia escrito.
“Vocé e bonita, Çara. Eu gosto de vocé. Um dia eu vou dá um beigo na sua boca”
Fiquei morrendo de constrangimento quando cheguei naquela muita frase.
Por mais que esse admirador secreto ainda fosse péssimo em gramática e pontuação, o sentido final era mais gritante.
— Ele gosta de você! — eu tentei falar baixinho.
— E eu também gosto dele. — ela se agachou ao lado da minha carteira, com um sorriso brilhante.
— Quem é ele? — a minha curiosidade voltou.
Ela pegou uma das minhas canetas e puxou a minha mão. Escreveu na palma dela a letra I.
— Descubra sozinha. — ela levantou ainda com os olhos brilhando e deixou a minha
caneta encima da mesa.
Alguém com I. Eu já pensei logo em quem poderia ser.
Era um garoto impossível que tinha na nossa turma. Ele era daqueles insuportáveis que desobedecia aos professores e fazia baderna.
Me lembro não gostar nem um pouco dele. Mas a Sarah gostava.
Depois de saber quem era, os erros na cartinha fizeram todo sentido.
[...]
Durante a tarde, estava eu e ela brincando na praça próximo da minha casa. A gente brincava basicamente de fanficar sobre o Justin. Inventavamos muitas histórias de situações que poderíamos viver.
Sarah não gostava mais de brincar de boneca, então eu tive que ir na onda dela.
No meio disto, apareceram os meninos. Iago, mais três do bonde dele e outro que eu nunca tinha visto na minha vida.
Iago deixou seus outros amigos no playground e veio até nós. Sarah estava eufórica. Me lembro de ela esticar tanto o pescoço neste dia, que parecia uma girafa.
— O que vocês estão fazendo aqui? — ele encarou nos duas. Tinha gudes em suas mãos.
— Brincando. Ué. — Sarah resolveu dar uma de afrontosa.
— Brincando de quê?
— Não te interessa. — eu respondi e a Sarah me apoiou.
— É. Não te interessa.
Ele deu um sorriso de canto, girando uma gude entre os dedos. — Vocês sabem brincar de gude?
— Não. — Respondi.
— Sim. — Sarah respondeu.
— Venham brincar com a gente. — ele andou de costas e quase tropeçou num paralelepípedo.
A Sarah não pensou duas vezes antes de me arrastar para o meio daqueles moleques.
Se o meu pai me visse assim, ele com certeza brigaria comigo.
A gente ficou por ali, brincando. Confesso que não me empolguei muito não. Mas o garoto estranho não parava de olhar pra mim. Eu, como criança inocente, achei isso um insulto e comecei a ignora-lo.
No final da brincadeira, ele veio para perto de mim.
— Oi, Bruna. Meu nome é Isaac. — ele estendeu a mão. Eu olhei para sua mão e olhei para o seu rosto.
Recusei o aperto de mãos.
— Eu gostei de você. Gostei do seu jeito.
Isaac parecia ser bem mais velho do que eu. Acho que ele tinha uns 13 anos.
— E eu com isso?
Ele sorriu.
— Você vai ser a minha namorada.
Namorada?
Foi aí que o meu coração disparou e eu me vi numa nova fase da minha vida.
E foi a fase que fodeu com o meu psicológico. Fodeu com tudo.
Não foi algo de se recordar, mas eu me recordo. Lembro que naquela noite eu caguei para aquele comentário. Fui pra casa, assisti minha novelinha, comendo biscoitos enquanto recebia carinho da minha mãe.
Foi a melhor época da minha vida.
No outro dia, eu fui pra escola e a Sarah não falava em outra coisa, senão o tal Isaac.
— Isaac disse que gosta de você.
— Eu não gosto do Isaac.
— Mas o Isaac é gente boa e ele é bonito.
— Ele engula a sua beleza e não achei ele gente boa. Ele é chato e ficou encima de mim.
Eu penso porque não virei a casaca nessa época. Eu odiava os garotos.
— Bruna você é muito valente. Assim nenhum menino vai gostar de você.
— Mas eu não quero que ele goste de mim.
Parece que para Sarah era muito difícil entender.
Quando foi de tarde, onde fiquei em paz, nem cogitei na possibilidade de brincar com Sarah, pra ver se aquele menino não aparecia, mas eu fiquei ali pela vizinhança, passeando com o cachorrinho da vizinha e ele me encontrou.
Eu entendi que a minha cidade era muito pequena nesse dia. Ele me encontrou tão fácil.
— Bruna. — sentou do meu lado no banco da pracinha da minha rua.
— Eu não te dei permissão pra sentar do meu lado. — achei um absurdo ele ter feito isso. Quem era invasivo era ele. Mas ele era cheiroso. Eu não posso negar. Que garoto cheiroso!
— Desculpa. — ele então levantou. — Porque não foi brincar na outra praça, junto com a Sarah?
— Pra não cruzar com você.
Sim. Eu era muito sincera.
Pense numa garota sincera, era eu.
O coitado ficou todo sem graça, mas não desistiu.
Ele foi baixo. Foi muito baixo. Lançou o golpe.
Colocou a mão no bolso do casaco e tirou pirulitos. — Trouxe pra você.
— Você tava me procurando?
— Sim. — assentiu com os pirulitos estendidos para mim. — Pega. Eu comprei pra você.
Ele comprou pra mim. Nós éramos crianças. Criança nem dinheiro tem, então ele deveria ter pedido dinheiro ao pai dele só pra comprar doce pra mim.
Ganhou pontos, é claro.
Eu aceitei os pirulitos e logo abri um e comecei a chupar. Claro que eu não dei muita bola pra ele por causa disso, mas aos poucos ele foi conseguindo conversar comigo sem que eu desse tantas patadas.
O fato de ter um menino mais velho interessado em mim, deixava as outras meninas da escola bem mexidas, porque a fofoca rolou no outro dia, então eu era a garota de quem o garoto novo gostava.
E elas se perguntavam o porquê.
Claro que elas se perguntariam né, eu não era a criança mais popular, doce e gentil. Eu era tipo a menina que fazia o dever, mas queria mesmo era estar em casa assistindo tv. Nunca me liguei muito nas coisas da escola.
Elas ficaram pura inveja.
Passei uma semana sendo o assunto da escola. E isso me deixou muito irritada. Tanto que comecei a evitar mesmo o Isaac, só pra não dar o que falar.
Só o fato de saber que ele gostava de mim, me fazia ter raiva dele.
— Tchau, Bruna. — Sarah acenou quando descemos do ônibus e eu fiz o mesmo.
Eu estava bem tranquila até ouvir dali mesmo da calçada, as vozes do meu pai e da minha mãe brigando.
Lembro que a minha mãe exclamava que não podia mais viver com o meu pai fazendo aquilo e ele dizia que ela não podia mandar nele, que a vida era dele.
Fiquei com medo de entrar ali, mas não tinha outra opção. Eu entrei e foi só eles me verem chegar que a briga parou.
Eles se entreolharam e a minha mãe tomou a grande decisão.
— Não dá mais pra viver assim. Nós vamos pra casa dos meus pais no interior.
— Você vai levar a Bruna? — ele estranhou.
— Claro. Não vou deixar a minha filha nas mãos de um... um... — ela se podou. A palavra era “viciado”.
Eu fiquei tão confusa. Não iria mais morar naquela casa? Não iria mais morar com meu pai? E minha amiga Sarah?
E pasme, eu também me questionei: E o Isaac?
A decisão era real e a mudança não demorou.
Foi doloroso demais me despedir da Sarah. A gente não parava de chorar e escrevemos um monte de cartinhas uma para a outra. Juramos ser amigas para sempre e nunca, nunca esquecer uma a outra. Foi um momento fofinho da minha infância.
Sarah tomou a liberdade de contar ao Isaac sobre a minha ida pra longe e ele me procurou.
Foi num lugar onde os meus pais não poderiam ver, então eu fiquei mais tranquila em relação a isso, contudo, eu estava sem saber o que dizer diante dessa situação.
— Eu não acredito que você vai embora.
— Pois é. — mantive meus braços atrás do corpo. Eu estava encostada na parede e encarava o chão.
— Mesmo que você vá embora, eu não vou te esquecer. — ele garantiu. — Um dia eu vou ser seu namorado, Bruna. Quando eu for maior de idade, vou poder sair por aí e te procurar.
— Você tá falando sério? — eu achei aquilo, naquela hora, um absurdo.
— Tô falando sério. Eu gosto de você, Bruna. — ele me deu um beijo na bochecha.
Foi a nossa despedida.
A pergunta que ficou foi: Será que um dia eu iria reencontrar mesmo esse garoto? Ou a vida me reservava outro amor? Um amor cheio de reciprocidade.