Leonardo vira o rosto na minha direção, e sua expressão me atinge como um soco. Ele está fechado, os seus olhos apertados numa carranca que não consigo decifrar. É como se eu tivesse cruzado um limite invisível, e a ideia de tê-lo perdido de alguma forma me rasga por dentro.
— Esse aí é o seu ex? — Ele pergunta, a voz baixa, mas tão fria que parece cortar o ar entre nós. Ele hesita, a sua mandíbula se movendo como se mastigasse as palavras antes de soltá-las. — E quando ele me chamou... — Ele para por um momento, desviando o olhar. — Você me enxergou como a sua tábua de salvação?
As palavras dele são como um golpe certeiro. Sinto o ar escapar dos meus pulmões, e meu peito se aperta, a culpa crescendo como uma sombra dentro de mim. Não era isso. Não foi isso! Tento formular uma resposta, mas tudo parece errado, insuficiente. Não sei como explicar o que sinto, porque nem eu entendo completamente. Como posso dizer que sim, em algum momento, procurei nele um porto seguro, mas que ele é mais do que isso? Como admitir que o vejo de uma forma que nunca deveria ter permitido a mim mesma enxergá-lo?
Respiro fundo, tentando acalmar o turbilhão no meu peito, e finalmente forço uma resposta:
— Eu vi o amigo... o homem que sempre me ajudou. — Minha voz treme, como uma confissão m*l resolvida. Não é toda a verdade, mas também não é uma mentira. Ele sempre foi meu amigo, mas agora… agora tudo mudou, e o peso disso me sufoca.
Leonardo continua em silêncio, mas seus olhos permanecem cravados na estrada, como se fosse mais fácil encarar o vazio do asfalto do que lidar comigo. A tensão em seu rosto é evidente, sua confusão, palpável. Ele sente, eu sei que sente. Mas o que isso significa para nós?
— Eu arrumo seu carro. Só isso. — Ele finalmente diz, o tom frio, como se estivesse colocando uma barreira entre nós. — Se fôssemos amigos de verdade, teria me contado que seu ex estava aí. Em vez disso, disse que estava lidando com “problemas familiares”.
Suas palavras são lâminas afiadas, cada uma cortando mais fundo do que a anterior. Ele não levanta a voz, mas a calma deliberada em seu tom carrega uma frieza que dói mais do que gritos.
— Leonardo, eu… — Tento falar, mas minha garganta se fecha. Eu o decepcionei, e essa constatação me quebra. Como cheguei até aqui?
Ele não responde, não me dá a oportunidade de me explicar. O silêncio que se instala é sufocante, pior do que qualquer coisa que ele pudesse dizer. Cada segundo parece mais pesado, como um abismo que cresce entre nós, um vazio que ameaça engolir tudo o que éramos. Pela primeira vez, temo que talvez não haja mais como cruzá-lo.
Meus olhos se fixam nele, tentando encontrar algo que me dê esperança, mas o que vejo me deixa ainda mais perdida. Os seus braços fortes, com os músculos tensos e os pelos que brilham sob a luz do painel, chamam a minha atenção, mesmo sem querer. As mãos, firmes no volante, são lindas, poderosas, e de um jeito estranho, parecem segurar mais do que o controle do carro — seguram também o controle da situação, algo que claramente perdi.
Deus! Por que estou pensando nisso agora? Tento desviar meus pensamentos, mas é inútil. Tudo nele parece mais acentuado, mais palpável, como se cada detalhe dele estivesse agora gravado em minha mente de forma dolorosa.
Mas eu não posso me perder nisso. Não agora. Preciso entender o que ele está sentindo, preciso trazê-lo de volta para a realidade que estamos tentando evitar. Meus olhos sobem até seu rosto. Seu perfil está duro, marcado, os maxilares travados, como se ele estivesse segurando um peso enorme. A tensão é evidente, transbordando em cada linha de seu rosto, e me dói perceber que este não é o Leonardo que conheço.
Ele está distante de uma forma que eu nunca imaginei. Ele não é assim, nunca foi assim. Ele sempre foi meu porto seguro, a pessoa que eu podia procurar quando tudo parecia desmoronar. Agora, ele parece inalcançável, um estranho que não sei como trazer de volta.
Respiro fundo, soltando o ar pelas narinas, tentando aplacar o nó que se forma em minha garganta. Minha mente grita para que eu diga algo, qualquer coisa que possa alcançar esse Leonardo que se afasta cada vez mais.
— Eu ia te contar, com calma. Aqui no carro. — Minha voz escapa num tom mais baixo do que eu previa, quase como se não me pertencesse. É suave, mas carrega uma fragilidade tão evidente que parece prestes a se partir em mil pedaços.
Eu não sei se isso basta. Talvez nada seja suficiente. Como posso explicar o que está acontecendo dentro de mim? Como colocar em palavras esse turbilhão que me domina, essa tempestade que não consigo controlar? É como se algo dentro de mim estivesse desmoronando, e eu fosse apenas uma espectadora impotente, incapaz de interferir.
O silêncio dele é ensurdecedor. Tão presente, tão avassalador, que engole qualquer tentativa minha de construir uma ponte entre nós. Eu o encaro, buscando uma reação, qualquer coisa que me faça acreditar que ele ainda está aqui, comigo. Mas ele continua calado, os olhos fixos na estrada, e a única coisa que encontro em seu semblante é um vazio que me dilacera.
Ele não é assim. Nunca foi. Sempre foi meu apoio, o ombro em que eu me apoiava, o amigo com quem eu podia contar para qualquer coisa. Agora, no entanto, parece um estranho. Um desconhecido sentado ao meu lado, e eu me sinto perdida, como se estivesse navegando sozinha em um mar revolto, sem bússola ou direção.
— Leonardo, não fica assim. Estela não precisa saber disso. Você não tem culpa de nada. Eu sou culpada e me sinto envergonhada por isso. — As palavras saem hesitantes, vacilantes, como se a qualquer momento fossem se desmanchar no ar. Estou tentando encontrá-lo, alcançá-lo de alguma forma, mas sua expressão continua firme, como uma muralha intransponível.
— Você fez de propósito, não fez? Esqueceu sua bolsa para armar tudo. — Sua acusação me atinge como um soco no estômago. Meu peito aperta, e minha reação é instintiva.
— Não, não fiz isso! E eu agi por impulso quando te beijei. Desculpe-me. — Falo rápido demais, desesperada para afastar qualquer sombra de dúvida. Mas cada palavra soa insuficiente, fraca, como se não pudesse alcançar a profundidade da culpa que me corrói.
Seu olhar é frio, gelado, como uma ventania cortante em pleno inverno. Ele me observa com uma intensidade que faz meu coração disparar, não de amor, mas de medo. Medo de estar perdendo ele, medo de que as coisas nunca voltem a ser como eram.
— Pare de. Toda hora. Se desculpar comigo. — Suas palavras saem pausadas, calculadas, e cada pausa entre elas é um golpe que me deixa mais vulnerável. Há algo na frieza de sua voz que me faz estremecer, como se cada sílaba estivesse me afastando ainda mais dele.
O silêncio entre nós se estende como um abismo. Minhas mãos estão tremendo, mas não ouso movê-las. Respondo quase num sussurro:
— Tudo bem.