Três meses depois.
Gabrielli
– Bom dia, Jacó, suas roupas limpas dessa semana.
Depois que decidimos ficar com os bebês começamos a procurar alternativas para sobreviver. Irma ficou feliz por desistirmos dos abortos, no fundo acredito que ela também não queria, mesmo não tendo se expressado. Ela nos sugeriu trabalhar lavando roupas com as outras mulheres que vivem aqui, mas não são prostitutas.
Desde então estamos trabalhando como lavadeiras e as vezes faço comida no bordel da cidade, as minhas joias acabaram, mas conseguimos viver com o que ganhamos e Deus ao contrário do que pensei tem cuidado de nós. Vagner vai ser o padrinho dos nossos filhos, ele continua vindo nos visitar mesmo pedindo tanto para não fazer isso.
– Chegou à mulher mais linda do lixo. Colocou novamente aquele perfume gostoso nas minhas roupas?
– Mas é claro, Jacó, você é nosso melhor cliente além de ser o dono da lavanderia, portanto, tem que andar bem arrumado e perfumado, dona Noemi está bem?
Jacó cuida da avó que o criou, é uma senhora simpática e muito querida, gosto de conversar com ela em hebraico e aramaico, é bom, pois pratico o idioma, Marcele também faz o mesmo.
– Shalom, menina Gabrielli.
– Shalom, dona Noemi, como vai? Acabei de perguntar para o seu neto sobre a senhora.
Ela foi até mim segurando minha barriga, começou a conversar em hebraico e aramaico comigo dizendo como meu bebê está grande, pergunta de Jorginho e Marcele como sempre faz. Jacó observa nossa interação com um lindo brilho no olhar, é bonito vê-lo tão cuidadoso com a avó.
– Esse perfume todo é nas nossas roupas?
– Sim, seu neto é exigente, a senhora bem sabe, claro que não tenho as mesmas habilidades da senhora, mas um dia chego lá.
Começamos a rir, dona Noemi também trabalhou na lavanderia por muito tempo, até hoje seu trabalho é reconhecido, aqui apesar de ser muito pobre todos se ajudam, não há julgamentos, todos vivem em comunhão. Há judeus, muçulmanos, católicos e protestantes que vivem em harmonia.
Jacó gosta de dizer que somos os excluídos por sermos diferentes, mas que quem é excluído são os outros que não vivem como nós. Com o tempo me acostumei com este lugar e com as pessoas, todas tem alguma história complicada, mas encontraram aqui refúgio para recomeçar.
– Está no caminho certo, יָקָר (querida), Jacó acompanhe Gabrielli até a casa dela.
– Dona Noemi, não precisa, ainda vou passar no mercado para comprar leite e outras coisas, e não quero atrapalhar.
– Não me atrapalha nem se quisesse, agora vamos, a levo até o mercado e depois a acompanho até em casa.
Jacó é traficante de armas, além de patrocinar lutas ilegais, dona Noemi fingi não saber, mas sei que isso a deixa chateada. Ele tem um belo carro e uma casa confortável, frutos do dinheiro ilegal que ganha, mas não vou julgá-lo, tem suas problemáticas como todo mundo aqui.
Entro no carro lembrando que meu pai tinha um muito parecido, com o tempo acho que vou esquecer dele como esqueceu de nós, parece que cada dia ele fica mais distante, acredito que com o passar dos anos será uma lembrança do passado que vivemos.
– Tem certeza de que não vou atrapalhar?
– Não, Gabrielli, é um prazer cuidar de você. Também quero conversar sobre algo importante.
Não tenho medo dele, nem dos outros. Cada um aqui tem sua própria vida e ninguém julga, vivem suas religiões e professam sua fé sem medo. O padre é vizinho do rabino, do sheik da pequena mesquita e do pastor da igreja protestante, todos vivem em harmonia, o fato daqui ser um lugar de refúgio mudou a mentalidade de todos, como se esse fosse uma parte do mundo separada do resto.
– O que acha do casamento?
– Penso que é bom, Deus fez o ser humano para viver com um parceiro seja homem ou mulher. Particularmente, não queria me casar, antes do que houve comigo estava prestes a noivar, mas não aconteceu, penso que foi melhor assim. Antes de tudo que houve tinha um desejo de viajar pelo mundo, conhecer outros lugares, mas não seria possível pela posição que ocupava. O máximo que ouvi sobre o mundo foi nas aulas de línguas, e no que conversei com sua avó e com as outras pessoas daqui.
Conheci os beduínos, as histórias dos latino-americanos, sei sobre comunismo, socialismo e política no geral, além de ter ido da Índia até Austrália apenas conversando com os moradores daqui. Jamais pensei que poderia ser tão culta apenas ouvindo, e Marcele também está vivendo bem essa experiência.
– Entendi. Então não quer se casar?
– Não, e nenhum homem vai querer me assumir sabendo que tenho um filho de outro. Mas porque está perguntando isso?
Chegamos no mercado, Jacó me ajudou a descer como um perfeito cavalheiro, sei que é bem bruto quando quer, mas comigo e minha família sempre tenta ser educado.
– Curiosidade.
– Entendi, mas não sou contra alguém se casar, apenas acredito que não seja algo que me faria feliz, além disso tenho que cuidar de dois irmãos e uma sobrinha, um homem jamais iria aceitar dois cunhados, uma sobrinha e o filho de outro.
Entramos no mercado recebendo os cumprimentos do senhor Ali, sua linda esposa está com o pequeno Said no colo como de costume, aqui parece ser o único lugar do mundo que um árabe é amigo de um judeu, por isso gosto tanto daqui todos vivem em comunidade sem julgamentos. Comprei o que precisava voltando para o carro junto com Jacó, ele me levou até em casa e percebi que o carro de Vagner está aqui.
– O que este cara está fazendo aqui, Gabrielli?
– Jacó, não faça isso, conversamos aquele dia, Vagner é como um pai para mim e meus irmãos, será padrinho das crianças. Me sinto m*l quando fica bravo, sabe que não quero escolher entre sua amizade e o símbolo paterno que Vagner representa.
Jacó é territorial demais, não gosta de Vagner desde que descobriu de suas vindas até aqui, durante todos esses meses vem implicando com ele, até tiveram um embate no mês passado, não sei mais o que fazer.
– Esse cara está vindo vigiá-las, pensa que não sei que mora no território dos Assis, você e Marcele são boas demais, precisam ser mais desconfiadas, mas não se preocupe, estou aqui para garantir que ninguém fará nada de r**m com vocês.
– Oh Jacó, meu bom amigo, agradeço o carinho e zelo por nós, mas Vagner está se arriscando vindo aqui, já pedi para parar bem antes de vocês terem brigado, mas não posso proibi-lo de vir, entende?
Ele balançou a cabeça em negação, Jacó é um bom homem, mas muito complicado de se lidar em alguns momentos, ele me ajuda com as compras, mas sua expressão é péssima ao ver Vagner sentado tomando café e comendo as roscas que eu e Marcele fizemos.
– Cara, odeio ser repetitivo, mas parece que não entendeu ou se faz de i****a. Pare de vir aqui, não vou mais avisar. A próxima vez que vê-lo aqui, vou matá-lo.
– Não tenho medo de você, judeu! Vou continuar vindo aqui quantas vezes eu quiser, e não pode me impedir.
Jacó foi na direção dele deixando as compras no chão pronto para brigar, se não fosse eu e Marcele entrando no meio com certeza estariam rolando no chão.
– Ficaram doidos? Jorginho está dormindo, parem de brigar!
Jacó se afastou ao ouvir Marcele e Vagner fez o mesmo, levei ele para fora antes que os dois tivessem novamente um novo embate.
– Não quero ter que escolher, por favor, não me faça escolher.
– Não quero fazê-la escolher, mas em algum momento terá que escolher entre sua vida do presente e sua vida do passado, aconselho que faça isso rápido, minha paciência é curta e para esta situação já está no limite.
Sei que é uma ameaça, não a mim e sim a Vagner, Jacó realmente está usando todo seu autocontrole para não matar Vagner, aqui é um lugar bom, mas não quer dizer que não tenha problemas, ainda mais quando se pensa que tem todo tipo de criminoso aqui. Jacó é assim para preservar seu território, e não o julgo por isso, volto para casa chateada com toda essa situação, sei que meu amigo tem razão, mas Vagner é muito importante para mim.
– Tem que parar de andar com esse judeu. Seu pai não gostaria nada de saber dessa amizade que tem com esse homem, é nítido que quer você e ainda continua andando com ele como se não percebesse.
– Vagner, vou dizer o mesmo que disse para ele, não me faça escolher entre você e ele. Não estou preocupada com o que meu pai gosta ou deixa de gostar, ele nos abandonou, já tem seis meses que tudo aconteceu. Se ele realmente estivesse preocupado teria vindo se explicar, mas meu pai não fará isso.
Vagner continua defendo meu pai com unhas e dentes, somos mais realistas, e sabemos que não podemos esperar nada dele.
– Queria contar algo a vocês, é sobre seu pai. Ele está de volta e pretende provar sua inocência no dia do casamento dos Assis.
– Como? Deve convencê-lo a vir ficar conosco aqui, mamãe gostaria disso.
Marcele o perdoou, mas como eu não acredita na inocência dele, um erro de julgamento dessa magnitude seria demais, a família Assis não iria se recuperar se descobrisse que eles erraram dessa forma, ainda mais com alguém como Jorge Gusmão que era muito bem-quisto por eles.
– Seu pai não me ouve, contei sobre vocês, mas não mencionei sobre meus afilhados, ele está mais magro e visivelmente abatido, ainda mais por saber o que houve com a senhora Rute.
– Mais um motivo para vir viver conosco, já perdemos a mamãe, agora vamos perdê-lo também? Tente mais uma vez convencê-lo a deixar essa bobagem para lá, a essa altura todos sabem o que fizeram conosco. Nossa honra e reputação já não existem mais, lutar por isso é besteira.
– Ele tem alguém de dentro da família Assis o ajudando, Teodoro juntou muitas evidências que mostram que seu pai foi vítima de uma armação.
Meu pai jamais deixaria essa história quieta, sei que Vagner não vai fazê-lo retroceder da sua decisão. Irma chega abrindo a porta como sempre, ela e Vagner são envolvidos, a muitos anos inclusive, ela compartilhou conosco que já tem muito tempo que não fica com outros homens apenas com ele.
– Rosquinhas de leite, parece que adivinharam que estava com desejo. Marcele, você deveria ser minha cozinheira, na realidade, você e sua irmã. Não saberia viver sem esse café maravilhoso, essa rosquinha de leite e minhas roupas com cheiro de lavanda. Oi, Vagner, como vai?
Ela beijou sua boca sendo correspondida com a mesma paixão, é muito interessante perceber como os dois são apaixonados e como se implicam na mesma proporção.
– Você tem que parar de vir comer de graça, Irma, não é à toa que p**o você tão bem para comprar comida e fazer em sua casa.
– Vocês viram? Venho na maior boa vontade ver como meus afilhados e minhas comadres estão, e Vagner fica me ofendendo. Tem comida na minha casa sim, mas prefiro comer a das minhas lindas comadres, pare de encher o saco, e me diga, veio para dormir comigo hoje? Estou com saudades!
Como disse os dois vivem uma relação de amor e implicância, ele implica com ela e Irma faz o mesmo com ele.
– Não, fui convocado para a guarda de seguranças dos casamentos dos Assis, mas amanhã venho, e quero comer da sua comida. Você cozinha bem também, não entendo por que vem aqui comer.
– Vagner, deixe ela vir, não implique com Irma. Ela lava as louças e cuida do Jorginho.
Irma vai até Marcele beijando seu rosto, ela é nossa amiga, no começo sei que ela ficou desconfiada, mas agora somos muito próximas.
– Viu, Vagner, porque não pode me amar como Marcele, Gabrielli e Jorginho me amam? Você é um insensível.
– Não se faça de vítima, Irma, sei bem como é uma grande folgada.
Eles ficaram discutindo por um tempo, até que Vagner se despede, vou até a porta para levá-lo.
– Vagner, tente convencer meu pai, apesar da grande mágoa que ainda sinto por tudo, acredito que seja mais seguro que venha ficar conosco. Vamos recebê-lo, e quem sabe podemos recomeçar, a Organização já tirou muito de nós.
Honra, reputação e orgulho não vão trazer mamãe de volta bem como apagar aquela noite horrível das nossas vidas, mas estamos recomeçando, tentando cada dia viver nossa nova realidade.
– Concordo com você, Gabrielli, mas sabe como seu pai é. A Organização foi tudo para ele durante toda sua vida, ele fez parte da comissão durante anos, além de ter se casado com uma filha das cinco famílias, o que fizeram não foi justo, mas também gostaria que esquecesse disso, ainda mais porque quer provar a injustiça que fizeram no casamento dos irmãos, está se arriscando à toa.
– Ele está correndo um risco desnecessário, ainda mais por querer fazer isso no casamento dos orgulhosos da família Assis, mas não posso falar nada, só espero que não morra por se arriscar tanto.