Síria volta a si novamente, ainda com o gosto amargo das lembranças na boca. Naquela noite, ela perdeu tudo, até a sua identidade. Naquela noite, Mia morreu, e Síria nasceu. Ela termina o restante do vinho, desce novamente, lava a taça e volta para o quarto.
A noite foi agitada. Ela quase não dormiu. Pesadelos que há muito não tinha haviam retornado para assombrá-la. O seu corpo estava pesado, e sua mente, um caos total. Quem a visse naquele momento não a reconheceria. Ela se levanta, toma um banho rápido, veste uma regata preta e uma calça folgada, calça os seus chinelos e desce para tomar café. Os outros já estavam sentados à mesa.
— Bom dia, maninha, como foi sua noite?
Nico dispara assim que a vê. Ele sabe que a sua noite foi terrível, mas não perde uma oportunidade de atazaná-la.
— Horrível — diz ela, servindo-se de uma xícara de café.
— Sabe do que precisa? — continua ele.
— Não, mas tenho certeza de que vai me dizer.
— Um namorado.
Os outros o olham com espanto. Esse assunto era quase um tabu naquela casa.
— Eu não sabia que tinha perdido o amor à vida, Nico — ela o encara com olhos mortais.
— Qual é! Você não pode ficar sozinha o resto da vida, e o seu mau humor é de matar.
— Não.
— Tenho alguns amigos. O que acha de um encontro? — Sua persistência era louvável, mas na cabeça de Síria, ela só queria espancá-lo naquele momento.
— Chega, Nico. Vamos tomar o nosso café em paz — o chefe põe fim à conversa, recebendo um olhar de agradecimento de Síria.
— O que vai fazer hoje, Si? — pergunta Xavier.
— Vou passar na oficina para ver o Antônio.
— Ele deve estar puto da vida com você — diz Nico, rindo.
— Não tenho alternativa. Preciso ao menos me explicar.
— Você precisava ver a cara dele quando viu a situação em que a moto chegou — Nico ri —, foi impagável. Parecia que ele ia ter um infarto.
— Não deve ter sido tão r**m assim — diz ela, encarando-o.
— Foi, sim — completa Charles. — Se eu fosse você, levava café. Isso sempre o acalma.
Ela suspira, passando a mão pelos cabelos.
— Não desanime. Lembre-se de que você já passou por isso antes — diz Ricardo com um meio sorriso, saindo da cozinha.
— Isso não me conforta muito.
— Boa sorte pra você — diz Xavier, saindo também.
— Vamos, maninha, ânimo. E lembre-se!
— O quê?
— As coisas sempre podem piorar.
Ela pega uma faca sobre a mesa e a arremessa na direção de Nico, que se abaixa a tempo de salvar o pescoço.
— Viu! É por isso que você não tem namorado.
— Eu vou te matar, Nico! — diz, levantando-se e indo na sua direção.
— E essa é minha deixa — diz, correndo. — Tchau, maninha!
Nico era incorrigível, mas ela amava esse jeito dele. Às vezes, só queria que as coisas fossem como antes. Enchendo uma xícara de café, ela se dirige à oficina no subsolo. Não foi preciso ir muito longe para ouvir os gritos de Antônio. Ela começou a repensar a sua decisão de vê-lo.
— Oi, Tony.
— Como você ousa dar as caras por aqui depois do que fez?!
Antônio era o melhor mecânico que tinham. Aos quarenta e poucos anos, era baixo, com cabelos negros e curtos, e pele morena. Era uma pessoa amável e gentil, quando não estava bravo.
— Vim pedir desculpas — diz ela, ainda na porta.
— Uma hora você vai me matar, Síria! Tem noção de quanto tempo investi naquela Ducati?! — diz, passando as mãos pelos cabelos e andando de um lado para outro.
— Não tive escolha desta vez.
— Você disse a mesma coisa nas outras vezes também.
— Aqui — diz, estendendo a xícara de café para ele —, trouxe café.
— Não pense que pode me comprar com café — diz, pegando a xícara das suas mãos e tomando um gole.
— Posso te ajudar a consertar.
— Nem pensar! Se o chefe te pega trabalhando aqui, ele me mata.
Ela entra na oficina e lhe dá um abraço, deixando-o surpreso.
— Vou te recompensar pelo trabalho — diz, soltando-o.
— Você sabe que nos preocupamos com você — diz, segurando os seus ombros. — Quando veículos chegam naquela situação, a primeira coisa que pensamos é que você se machucou. Cuide-se melhor, está bem?
— Desculpe por preocupá-lo. Vou tomar mais cuidado.
— Ótimo. Sabe que é como uma filha para mim. Não me faça ficar preocupado à toa — diz, olhando nos seus olhos. Ela apenas assente, e ele se afasta.
Antônio era uma pessoa incrível, sempre a ajudando na sua fase difícil. Ele era família. Já enxugou as suas lágrimas muitas vezes.
— O que vai fazer nestas férias?
— Nada.
— Tire um dia para visitar a Joana. Ela não para de perguntar por você.
Joana era sua esposa, uma senhora amável e muito querida.
— Eu vou. Também sinto falta dela.
— Isso é bom. Ela vai ficar muito feliz — diz, sorrindo.
— Faz tempo que não a vejo. Vai ser bom tirar um tempo para conversarmos.
— Verdade — ele para o que estava fazendo e se vira para ela. — Quando vai arrumar um namorado?
Ela o encara, com olhos arregalados. Antônio nunca havia lhe perguntado isso.
— Até você! — diz, fazendo careta. — Qual é o problema de vocês hoje?
Antônio fica surpreso, depois começa a sorrir.
— Foi o Nico, não foi?
— Sim.
— Aquele garoto tem coragem.
— Vocês não deveriam estar preocupados com isso.
— Isso é impossível, querida. Queremos te ver bem, e ele só disse o que todos por aqui pensam — diz, aproximando-se e sentando ao seu lado.
— Quando foi que entrei para essa empresa de encontros?
— Seja sincera comigo — diz, olhando nos seus olhos. — Já está na hora de deixar o passado para trás e focar no seu presente.
Ela suspira e o encara.
— Não sei se consigo.
— Consegue sim, assim que encontrar o cara certo.
Ele sorri, bagunça os seus cabelos e volta ao serviço. O seu telefone toca, e ela vê que é Alícia. Finalmente!