Alemão
Quando finalmente tive forças para levantar, fui direto para o banho. Um banho gelado, daqueles que acordam até a alma. Deixei a água cair sobre mim, lavando o suor, o álcool, e talvez, por um instante, a dor. Vesti a primeira roupa que encontrei, simples, prática.
Na cozinha, coloquei café sem açúcar na cafeteira e esperei o processo. Enquanto o cheiro forte preenchia o ambiente, olhei ao redor. O lugar precisava de uma organização, era pequeno, sim, mas as paredes estavam pintadas, o teto forrado e, pra sorte minha, tinha até um ar-condicionado que funcionava. Não era grande, nem luxuoso, mas era o meu lugar. Só meu e não necessitava de um lugar maior.
Bebi o café, forte e amargo, sentindo o gosto me trazer de volta à realidade, quando bateram na porta.
João apareceu, com aquele jeito de sempre.
— O Capitão disse que tá atrasado,e que você tem umas entradas de valores pra você conferir e aplicar.
— Diga que já tô indo — respondi, sem paciência. — Só tô entrando no ritmo do meu corpo.
— Digo mais: sua casa fede, e o Capitão já falou que o morro dele tem que ficar limpo.
Levantei o olhar pra ele, firme.
— Vai se fod.er, João. Vai cuidar da po.rra da sua vida.
Ele riu, sarcástico, e se encostou na porta.
— Por que não busca a mulher que você goste? Assim perde esse humor h******l.
— Porque aquela me traiu.
Ele me encarou por um instante, antes de dizer:
— Aqui, ela não pode te trair. Não deixa ela descer do morro. Simples. E mesmo que te pense, você faz parte do comando, ninguém é louco de furar o seu olho.
As palavras dele me fizeram pensar. Engoli seco, o café já não tinha o mesmo gosto. João saiu, enquanto eu ficava ali, preso na minha própria mente, tentando decidir o que era pior: a traição dela ou o fato de que, no fundo, eu ainda a queria.
Mas a ideia de João ficou na minha cabeça, me deixando pensativo. Eu me sentia um i****a completo por sequer considerar algo assim, era como rastejar na lama atrás de uma mulher que me traiu. Porém, no fundo, eu sabia que chegaria um momento em que eu não teria força para segurar tudo sozinho. Se não pudesse tê-la como antes, ao menos passar um tempo com ela, m***r o desejo que ainda me consumia, parecia a única forma de aliviar o peso que carregava.
Terminei meu café, tentando afastar esses pensamentos, e segui para o posto de comando.
O morro aqui era diferente, organizado, limpo. Não era como outros lugares onde o caos reinava. Tínhamos esgoto tratado, água encanada, e até luz elétrica em todas as casas. Muitas construções precárias foram demolidas, e o Capitão deu um jeito de organizar tudo. O lugar tinha um sentido, uma ordem.
Não era um lugar chique, daqueles que você vê na televisão, mas também não era um lixo. Era limpo, seguro, com um comando forte, fortíssimo. O morro era do Capitão, e eu era leal a ele.
Enquanto caminhava, olhei ao redor, vendo as crianças correndo pelas vielas, mulheres conversando nas portas, e homens que sempre cumprimentavam com respeito. O Capitão tinha transformado aquilo em um território sólido, e eu fazia parte disso.
Mesmo com tudo isso, porém, dentro de mim o vazio ainda estava lá, a voz dela ainda ecoava, e eu sabia que não havia organização ou comando que preenchesse o buraco que ela tinha deixado.
Quando entrei no posto de comando, o Capitão estava sentado na cadeira, o olhar firme como sempre. Assim que me viu, foi direto ao ponto:
— Virou bagunça?
Balancei a cabeça, sem energia para rodeios.
— Não, Capitão. Bebi demais ontem e perdi o horário... foi m*l.
Ele me observou por um instante, mas não comentou nada. Apenas empurrou o notebook na minha direção.
— Tá aí. Setecentos mil. Dinheiro de fora. Organiza tudo.
Peguei o computador e me sentei. Já sabia o que fazer, não precisava de mais explicações. O dinheiro era "quente", como o Capitão gostava de chamar, e minha função era garantir que ficasse assim. Comecei a trabalhar, fazendo boletos de p*******o, organizando as transferências, e preparando os documentos necessários para que tudo passasse despercebido.
Isso era outra coisa sobre o Capitão: ele não seria pego. Nunca. Porque cada centavo estava sendo registrado, movimentado, e, quando necessário, até declarado. Ele entendia que a sujeira precisava ser limpa para que ninguém suspeitasse.
Eu tinha transformado aquele dinheiro em algo sólido, legal. E mais do que isso: estava investindo cada parte de maneira que o futuro estivesse garantido. Se o Capitão quisesse parar amanhã, ele podia.
Entre os investimentos do Capitão, do seu irmão Navalha e do Tenente Marcelo, tudo ia muito bem. Contas offshores, imóveis, negócios limpos. Eu cuidava de tudo com precisão. Esse era meu trabalho. Essa era minha função.
E, enquanto eu organizava os números e ajustava cada detalhe, sabia que, mesmo que minha vida pessoal estivesse em ruínas, profissionalmente, eu era insubstituível. Ali, naquele sistema, eu era o pilar que sustentava os negócios do Morro Vai quem quer..