Capitulo1

1239 Palavras
A chuva caía sem parar, torrencial, como se o céu tivesse decidido chorar junto com ela. Dinah não sentia mais o peso das gotas em sua pele, não sentia mais o chão enlameado sob seus pés. Apenas andava, os olhos fixos no corpo de sua mãe, envolto nas esteiras sujas que ela usara para cobri-la, sem forças para chorar ou sequer para respirar com clareza. Cada passo que dava, cada movimento que fazia, parecia uma eternidade. O mundo à sua volta parecia ter se dissolvido em uma névoa espessa, e só existiam duas coisas: a sua mãe, moribunda e agora sem vida, e o vazio que se instalara no peito de Dinah. A vida na cidade de Enoque nunca fora fácil, mas, naquela noite, ela se mostrava mais c***l do que nunca. As ruas, sempre sujas e encharcadas de lama, refletiam os vestígios da miséria que a cercava. O ar era pesado, abafado, e a cidade inteira exalava o cheiro de podridão que emanava da pobreza crônica de seus habitantes. Ali, a morte não era novidade, mas a morte da mãe de Dinah parecia cortar ainda mais fundo, como se um pedaço de sua alma tivesse sido arrancado, deixando um buraco imenso que nada poderia preencher. Dinah havia visto sua mãe sofrer por anos, com o corpo cada vez mais frágil e a alma se quebrando a cada dia. A doença que a consumira lentamente não era apenas física, mas emocional. O sofrimento físico era apenas uma camada superficial de algo mais profundo. Sua mãe, naquela terra implacável, havia sido obrigada a se entregar aos homens, a dar seu corpo em troca de migalhas, em busca de uma sobrevivência que não existia. Sua mãe foi vendida pelo próprio marido, foi usada, explorada, forçada a viver como um objeto, uma mercadoria que passava de mão em mão sem direito a qualquer escolha. E agora, quando ela mais precisava de ajuda, quando ela mais precisava de proteção, sua mãe estava ali, imóvel, com o corpo já não mais resistindo à dor. Dinah sabia que sua mãe nunca foi fraca. Ela não tinha culpa de estar ali. Mas as ruas imundas de Enoque, os homens cruéis que abusavam de mulheres como sua mãe, a pobreza excruciante que sufocava todas as possibilidades de escape, tudo isso tinha a quebrado. E o pior de tudo era que Dinah sabia, no fundo, que sua mãe não era a única a passar por isso. Havia tantas outras mulheres, e tantas outras crianças, que viviam aquela mesma vida de miséria, de abuso e de abandono. Elas eram todas invisíveis aos olhos da sociedade, simplesmente descartadas, jogadas no esquecimento. Com as mãos trêmulas, Dinah segurou firmemente a esteira, e arrastou o corpo até fora do casebre – uma construção improvisada de sapê e bambus que m*l resistia à chuva torrencial que caía constantemente. As ruas enlamaçadas e m*l cheirosas da cidade de Enoque eram agora seu caminho, e Dinah seguiu sem hesitar, com os olhos fixos na única coisa que ela ainda podia controlar: o destino de sua mãe. Chegando ao lugar onde o povo enterrava seus entes queridos, Dinah, com as próprias mãos, cavou a terra com uma força desesperada. O solo estava encharcado, dificultando o trabalho, mas ela não parou. A cada golpe que dava na terra, sentia como se estivesse afastando um pouco mais o peso da sua própria dor, como se estivesse tentando escavar o buraco também para sua própria alma. Quando a sepultura estava feita, ela abaixou o corpo da mãe com extremo cuidado, cobrindo-o com a terra fria e úmida, até que ele desapareceu por completo, sumindo sob a camada de terra. Durante alguns segundos, Dinah ficou ali, imóvel, observando a terra se assentando sobre o túmulo. O vento forte batia contra seu rosto, e ela sentiu uma lágrima escorrer, mas não fez movimento algum para limpá-la. O calor do corpo de sua mãe, que agora estava enterrado ali, parecia ainda estar com ela. Mas agora, só restava o vazio. Dinah, de algum modo, sabia que sua mãe não sofria mais, mas também sabia que ela mesma, em algum nível, havia morrido naquela noite. Ela ficou ali por um longo tempo, olhando para o chão, sem saber o que fazer a seguir. Então, uma força que ela não sabia que tinha dentro de si começou a se manifestar. Ela levantou a cabeça, olhou para o céu nublado e sentiu um impulso, algo instintivo, algo que lhe dizia para não sucumbir, para não se perder ali naquele campo, naquele túmulo. Não. Ela não seria mais uma mulher frágil, como a mãe, que se entregara à dor e à miséria. Ela não se permitiria ser engolida pela desesperança. Dinah sabia que, para sobreviver, teria que se transformar, mudar, lutar. E foi nesse momento que algo dentro dela morreu – e algo novo nasceu. De volta ao casebre, Dinah não teve mais forças para se sentar ou deitar. Seu corpo estava cansado, mas sua mente estava em um turbilhão. Ela sentia um vazio imenso, mas também uma raiva crescente, uma vontade desesperada de se reerguer. O lugar, que antes era seu lar, parecia agora um cárcere, uma prisão sem grades. Não podia mais ficar ali. Não queria mais ser vista como uma mulher frágil, sem voz, sem poder. Não queria ser mais uma vítima. Ali, entre os destroços de sua vida, ela tomou a decisão que mudaria tudo. Ela cortou seus cabelos longos com uma lâmina improvisada, com um movimento rápido, quase selvagem. Os fios caíam ao chão como símbolos de sua antiga identidade, que ela não queria mais carregar. Aquela mulher que usara vestidos simples, que se curva diante da dor e do abuso, já não existia. Ela agora vestia as roupas de seu pai. Um homem que, em sua ausência, a havia vendido como gado. Ele nunca fora um pai de verdade, e Dinah se negava a ser o reflexo dele. Enquanto cortava os cabelos e se vestia como homem, ela sentia algo novo surgir dentro de si. Um novo nome. Um novo destino. Ela se tornaria Dino, e essa transformação seria sua única chance de sobrevivência. Não seria mais uma mulher sozinha na terra de Enoque, sem poder e sem voz. Seria alguém forte, alguém que poderia enfrentar os homens que a olhavam como mercadoria. Agora, ela, Dino, poderia se virar contra eles. Com o corte dos cabelos, algo também foi cortado em seu coração. Ela não mais carregaria o peso da vulnerabilidade de uma mulher. Agora, seu corpo e alma pertenciam a algo mais sombrio, mais perigoso. Ela olhou para o espelho improvisado que fazia com a superfície de um pedaço de vidro quebrado. O reflexo que viu não era o de uma menina assustada, mas o de um homem determinado a sobreviver. Não havia mais Dinah ali. Agora, havia apenas Dino, alguém que não tinha mais nada a perder, alguém que era invisível, mas que agora se sentia mais poderoso do que nunca. Dino respirou fundo, se levantou e olhou pela última vez para o casebre que um dia foi sua casa. Era hora de partir. O mundo de Enoque, com toda a sua miséria e crueldade, agora era um campo de batalha onde ele lutaria para conquistar seu lugar. Ela não seria mais uma vítima. Ela seria o agente de sua própria transformação. O passado tinha ficado para trás. O futuro agora seria uma jornada de poder e vingança.
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