Quem talhou os costumes e dirigiu o guardaroupa foi a própria marquesa, que respeitando a côr local, porque a tragédia se passava na Índia, seguiu o rigor dos trajos opulentíssimos, assistindo ela própria a todos os preparativos e trabalhos. Depois da tragédia houve baile e ceia opípara oferecida às fidalgas de Goa. Na noite seguinte representou-se uma ópera portuguesa desempenhada por curiosos, em que entraram os Correias de Sá, irmãos do visconde de Asseca. A esta festa seguiram-se outras em que a vice-rainha continuou a exibir as suas faculdades inventivas e a alta compreensão que possuia da grande vida e do luxo inteligente.
Nos intervalos dessas festas, ou no remate delas, mandava distribuir fartas esmolas pelas famílias fidalgas decaídas na miséria, «relíquias dos antigos potentados da Ásia arruinados pela dissipação, e durante os quatro anos do seu vice-reinado subsidiava com mesadas os que não podiam vir ao paço receber as esmolas. Êsses mendigos envergonhados eram os legítimos representantes da Índia portuguesa»[5].
Tinha um defeito a marquesa de Távora: era soberba da sua estirpe em grau inadmissível. Ás suas ironias desdenhosas de fidalga se atribuiu grande parte do ódio que o marquês de Pombal mais tarde manifestou cruamente aos seus. Mas êsse pecaminoso orgulho, de que se contam mil anedotas típicas, transformou-se na fôrça estoica com que suportou o martírio; depurou-se na energia inquebrantável com que recebeu a morte e a tortura moral que a precedeu, sem dobrar nem envilecer a sua bela cabeça aristocrática.
Neste nosso tempo de alta civilização intelectual em que as noções mais complicadas da sciência humana penetram, por meio da extrema vulgarização das ideas, até nos espíritos menos preparados por uma forte educação técnica para as receberem; neste nosso tempo—quem pode ignorar as influências poderosas que a hereditariedade exerce na formação de um organismo?
De um lado a energia indomável do ânimo da marquesa de Távora, o seu amor pelas especulações da inteligência ou pelas graças e encantos da literatura; o fino orgulho de raça que a exalta, a sua capacidade extraordinária de sofrer, com altiva resignação, a injusta fortuna: por outro lado a valentia heróica de D. Pedro de Almeida, a sua superioridade de inteligência e de carácter manifestada em acidentados lances, reflectir-se hão, com as mudanças inevitáveis de circunstâncias e de meio, na fisionomia de Leonor de Almeida, marquesa de Alorna.
Mas não sómente influências atávicas tinham de actuar eficazmente no seu espírito; outra fôrça ainda mais enérgica, ainda mais directa e positiva havia de exercer a sua acção dominante nesse temperamento delicado e resistente, enérgico e flexível, capaz de dobrar-se com a graça pendida de uma flor, e de reagir com a inquebrantavel coragem de uma alma de antiga têmpera.
A infância de Leonor de Almeida foi obumbrada pela tragédia histórica que, numa espécie de rubra nuvem de sangue, envolveu tôda a sua bela, florescente e poderosa família e a fulminou com raio sinistro.
Não contaríamos aqui essa catástrofe por demais conhecida, se não atribuíssemos, tanto a ela em si como às circunstâncias impressionadoras que a revestiram, uma influência decisiva no espírito de Leonor de Almeida. As sombrias ramificações dêsse drama enlaçaram estreitamente o destino da nossa heroína.
Á sombra densíssima que a cingiu desde a infância; às lagrimas maternas que lhe regaram a cabeça infantil e deliciosamente linda; ao horror mil vezes lembrado do suplício dos seus; à crudelíssima e longa clausura desse pai adorado, com quem ela viveu em íntima comunhão espiritual; às tristezas da sua adolescência, que buscara na poesia um refúgio abençoado, um voluptuoso anestesiante das torturas da alma; à disciplina férrea a que ela sujeitou o seu alto entendimento—a tôdas estas circunstâncias romanescas e dolorosas deveu ela de-certo parte do seu talento singular. As duas qualidades predominantes desta inteligência de mulher são o vigor quási viril do pensamento experimentado, e a extrema cultura adquirida em longos anos de prisão. Resistiu ao desespêro pelo trabalho e pelo estudo; resistiu ao tédio mortal pela curiosidade viva das cousas, que a teve sempre em comunicação simpática com o mundo exterior.
Foi, portanto, a desgraça dos seus, o género especial e trágico e grandioso dessa desgraça immerecida, que fêz dela a mulher forte, desenganada e triste que a vemos ser desde os quinze anos!
Uma noite, a 3 de Setembro de 1758, espalhava-se pela cidade o lúgubre boato de que el-rei D. José, voltando de, não sei que misterioso passeio nocturno, a caminho da Ajuda, fôra vítima de uma tentativa de regicídio, de que muito a custo escapara com vida.
Deveu-se o insucesso parcial da criminosa emboscada ao facto de el-rei, sentindo-se ferido pelo primeiro tiro, disparado (dizem) pelo duque de Aveiro ou pelo seu criado José Miguel, se lembrar de repente de que o cirurgião mor do paço morava na Junqueira, e ordenar, portanto, ao cocheiro que retrocedesse naquela direcção.
Morava ali perto o marquês de Angeja, D. Pedro José de Noronha, para cuja casa D. José quis ir, e que, alucinado de surpresa e de terror, recebeu, e deitou na sua própria cama o rei ferido.
Os conspiradores, distribuídos em diversos lugares e todos a cavalo, esperaram debalde por D. José, que uma intuìção, que diríeis milagrosa, salvara da morte, contrariando os planos tenebrosos dos seus inimigos.
Justamente na ocasião em que êste crime, gravíssimo hoje e verdadeiramente sacrílego naquele tempo, se perpetrava, o marquês de Pombal pedia ao destino um pretexto que o justificasse e favorecesse na guerra com que êle ambicionava pôr ponto ao poder ilimitado, à soberba arrogância da fidalguia portuguesa. Estadista à maneira de Richelieu, de Cromwel, de Frederico II, de Bismarck, o sangue derramado, as torturas impostas, as lágrimas choradas eram-lhe pequeno obstáculo à linha recta da sua implacável e brônzea vontade.
Vendo a nação devastada pelas plantas parasitas que lhe sugavam tôda a seiva, a sua ambição foi salvá-la custasse embora muito cara a salvação.
O que a história nos conta dessa hora sinistra da vida de Portugal, assombra e enoja a um tempo. Charnecas desertas e incultas, enormes extensões de terrenos despovoados, destruídas as manufacturas da Covilhã, do Fundão, de Bragança, de tôdas as cidades onde os cristãos novos—agora expulsos pela inquisição—tinham feito da sua energia, da sua inteligência, do seu trabalho, do seu amor pelo ganho, instrumento de riqueza para êste país desgraçado; caminhos impraticáveis tornando impossível o tráfego comercial e o transporte de mercadorias ou pessoas[6]; o exército sem disciplina, sem decôro, onde os soldados e até os oficiais subalternos faziam mister de criados dos seus superiores, servindo-lhes à mesa, e executando os mais humilhantes ofícios, quando não pediam como mendigos andrajosos pelas ruas das cidades mais populosas[7]; a têrça parte do solo nacional possuído pela Igreja, e a sentir-se em todo o país a tríplice e funesta influência do clero devasso, ignorante e cobiçoso, da nobreza da côrte, ociosa e insolente, e da inquisição ameaçadora, que, na caça feroz ao judeu, tinha aniquilado tôdas as actividades produtoras, tinha expulsado do país tôdas as fôrças vivas, tinha quebrado e destruído tôdas as energias fecundas. O mau clero embrutecendo, a inquisição queimando os resistentes e depravando sob a influência do seu terror os ânimos que a cobardia dobrava servilmente, tinham feito de Portugal e da Espanha dois países mortalmente condenados.
Comercialmente, éramos uma reles feitoria de Inglaterra, que pelo tratado de Methwen nos enfeudava sem defeza aos seus interesses. Espiritualmente, éramos a mina extinta de que Roma extraíu cento e oitenta milhões de cruzados a trôco de privilégios cultuais[8], de canonizações de santos[9], de bulas especiais para diversos usos. Bandos capitaneados pelos primeiros fidalgos da côrte, o duque de Cadaval, o marquês de Cascais, os condes de Aveiro e de Óbidos, traziam Lisboa em permanente susto e permanente sobressalto, espancando as rondas, matando as autoridades que lhes resistiam[10], travando entre si bulhas de que muitas vezes resultavam mortes e gravíssimos ferimentos. Sob a tirania e o livre arbítrio da realeza, e sob o ôco beatério da nobreza e do povo, havia o desenfreamento dos mais baixos instintos, a brutalidade mais soez, a devassidão mais desbragada. O exemplo, partindo de alto, alastrava com vertiginosa rapidez por tôdas as camadas sociais eivadas da mesma ignorância e submersas no mesmo embrutecimento. O abêtissez-vous de Pascal, aplicado pelos jesuítas e pela inquisição, fôra o único meio que Roma encontrára para defender o seu baluarte ameaçado. A Península ibérica fôra o teatro escolhido para essa horrenda experiência, que fazia da mutilação do pensamento uma arma política, e perdoava o desenfreamento audaz dos instintos brutais, contanto que a consciência não tentasse despertar sequer do seu adormecimento e do seu ignóbil torpor...
O marquês de Pombal encontrou êste quadro horrendo e grotesco ao tomar posse do país, que pretendia regenerar, na volta da sua longa permanência em Londres e em Viena. Na Inglaterra é claro que Pombal não aprendeu nenhum dos processos da política liberal a que êsse robusto país deve a integridade da sua duração e a solidez da sua grandeza, mas viu—e com que humilhação melancólica para um coração português!—o que era ali a aristocracia comparada ao que estava sendo entre nós!
Para o confirmar na idea que ela de-certo lhe inspirou, bastou-lhe assistir ao formar da brilhante e formidável oposição contra o poder corrupto de Walpole, porque não foi num período glorioso da vida política de Inglaterra que Pombal ali viveu. É provável que êle observasse de perto com o seu olhar de miope, tão espirituoso e penetrante, as notáveis e características figuras que constituem essa colisão famosa[11]. Pitt, o futuro lord Chattam, tinha então trinta anos e já pronunciara contra o ambicioso ministro, agarrado ao poder como a ostra à concha, alguns dêsses belos discursos clássicos e pomposamente teatrais, que tão viva impressão produziram no seu auditório político. Carteret, conde de Grenville, formosa figura de estadista e de erudito, falando tôdas as línguas mortas e vivas, inclusivamente o português, brilhava então deslumbradoramente na scena política pela coragem, pela ambição nobre, pela eloqùência declamatória ou pela agudeza e agilidade do debate parlamentar. Chesterfield era o tipo consumado da elegância cortesã, do gôsto cultivado e fino, das maneiras galantes. Garrick acabava de estrear-se, e logo adorado, adulado pela aristocracia londrina, fazia chorar o seu patrício auditório interpretando na scena Shakespeare, como mais tarde o fará convulsivamente rir, arremedando nas salas a figura e os modos estranhos, tão cómicamente dolorosos, de Samuel Johnson, então desconhecido ainda. Pope vivia no pé de perfeita igualdade com a alta sociedade elegante e política do tempo, mas literáriamente era então uma excepção única. Em Inglaterra, como em Portugal, aquele período era da mais desoladora esterilidade literária, mas ali era apenas o intervalo entre duas fases brilhantes. Desaparecera a geração de Addisson, de Prior de Steele, de Congreve, de Foe, de Swift, mas iam aparecer Goldsmith, Fielding, Burke, Collins, Thompson, e outros mais.
E em todo o caso a Sebastião José de Carvalho e Melo era indiferente que a literatura estivesse ou não numa fase gloriosa. O que devia impressioná-lo, indigná-lo ali, pela triste comparação a que se via forçado, era a vida intensa, o alto valor social e moral, a utilidade e a fôrça dessa classe aristocrática, que na Inglaterra nunca aceitou privilégios a que não estivessem ligados graves e austeros deveres cívicos, ao passo que nada havia mais estéril, mais imbuído da sua falsa importância, mais perturbador da ordem e do equilíbrio nacional do que a nossa nobreza degenerada, vivendo, salvas excepções raríssimas, que podem apontar-se, dos bens da corôa, da munificência régia e dos abusos e privilégios; voluntáriamente ignorante e gabando-se de o ser, reduzida, pela paz prolongada e pela inércia em que o país caíra nos braços do jesuíta manhoso, ou sob o látego do inquisidor c***l, aos ofícios de ante-câmara e às manhas e intrigas da côrte.
D. Luís da Cunha, um dos privilegiados, mas um dos raros que ilustravam a sua classe, melhor do que ninguêm pôs o dedo nas misérias que Portugal chamara sôbre si nesse período sombrio da sua existência nacional.
O ministro de D. José, que D. Luís da Cunha[12] indicara como o mais apto para dar algum remédio a tantos males, aproveitou, portanto, o ensejo que a nobreza lhe dava para travar com ela a terrível luta em que afinal foi vencido pelo destino e por ela...