DA AUTORA:Primavera de mulher (poema), 1867.
Vozes do ermo (versos), 1876.
Serões no campo.
Mulheres e crianças (Notas sôbre educação), 1880-1887.
Contos e fantasias, 1880.
Contos para os nossos filhos, 8 edições.
Arabescos, 1880.
Um conto, 1885.
Cartas a Luísa (Moral, educação e costumes), 1886.
Alguns homens do meu tempo (Impressões literárias), 1889.
As crónicas de Valentina, 1890.
Cartas a uma noiva.
Pelo mundo fora, 1896.
Arte de viver na sociedade ou Manual da vida elegante, 4 edições.
Vida do Duque de Palmela, 3 vols., 1898-1903.
Em Portugal e no estrangeiro (Ensaios críticos), 1899.
Figuras de ontem e de hoje, 1902.
Cérebros e corações, 1903.
As nossas filhas (Cartas às mães), 2 edições, 1905-1906.
Ao correr do tempo, 1906.
No meu cantinho (Homens. Factos. Idéas.), 1909.
Duqueza de Palmela (In memoriam), 1910.
Impressões de História, 1911.
Cousas de agora, 1913.
Páginas escolhidas, 1920.
MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO
SCENAS DO SÉCULO XVIII
EM PORTUGAL
A MARQUESA DE ALORNA
CAPÍTULO IO nascimento de Leonor de Almeida.—Seu avô Pedro de Almeida nas guerras da sucessão de Espanha. O seu govêrno da Índia. Sucessos que o assinalaram.—O título de marquês de Alorna.—Sua avó a marquesa de Távora D. Leonor no terremoto. Versos que ela inspirou.—A marquesa de Távora D. Leonor na Índia.—Festas pomposas.—Tragédia de Corneille.—O teatro de Pangim.—Influências atávicas do carácter de Leonor de Almeida.—Influências directas.—O atentado contra D. José.—A prisão dos fidalgos.—O tribunal da inconfidência.—A sentença.—O cadafalso de Belém.—A morte da marquesa de Távora.—Com que altiva elegância ela sofre a execução.—A carnificina de 13 de Janeiro de 1759.—José Maria Távora.—Duelo de morte entre Pombal e a nobreza da côrte.—A política pombalina.—A ferocidade de todos os condutores de homens.—Como é que na bravura de carácter português conseguem destoar vigorosamente os tipos de fôrça.—Lógica medonha da situação.—A marquesa de Alorna na Junqueira.—A marquesa de Alorna e Leonor de Almeida em Chelas.
Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, conhecida na literatura portuguesa pelo seu título de marquesa de Alorna, nasceu em Lisboa aos 13 de Outubro de 1750.
Foi seu pai D. João de Almeida Portugal, segundo marquês de Alorna, quarto conde de Assumar, veador da casa real, comendador da ordem de Cristo, e capitão de cavalaria na côrte. Foi sua mãe D. Leonor de Lorena, quarta filha dos terceiros marqueses de Távora. É das mais ilustres a ascendência de D. Leonor. Mas não é sómente pelo sangue e pela antiguidade que se recomenda a sua família. A futura marquesa de Alorna tem de quem opulentamente herdar a beleza feminina, o carácter viril e o extraordinário talento.
Sem nos perdermos nos meandros de uma remota e complicada genealogia, e indicando, a quem se interessa por êsses estudos a notícia que acompanha a edição completa das obras da marquesa, mandada fazer por suas filhas, basta remontar à origem do título de Alorna, que data do meado do século XVIII, para vermos como êle foi nobremente conquistado pelo avô da nossa biografada.
D. Pedro de Almeida, que mais tarde foi marquês de Castelo Novo e herdeiro de seu pai, teve o título de conde de Assumar (3.ᵒ), a comenda de S. Cosme, de S. Damião e de Cristo e mais bens da corôa e de ordem[1]. Distinguiu-se desde os vinte e dois anos como bravo militar e como capitão inteligente e hábil.
Nas guerras da sucessão de Espanha D. Pedro militou sob as ordens do marquês das Minas, e comandou um corpo à frente do qual se bateu como um valente na batalha de Saragoça. Depois tão nobremente se portou na de Vila Viçosa, que na participação escrita da batalha, o marechal austríaco Staremberg cita-o como um dos cinco mestres de campo generais que mais denodo e mais bravura manifestaram no combate.
Feitas as tréguas e assentes os preliminares do futuro tratado, foi a D. Pedro que se confiou a custosa missão de reconduzir a Portugal, sob a má vontade disfarçada ou clara dos espanhóis, o corpo de tropas que havia tomado parte, debaixo do comando directo do conde da Atalaia, nas duas batalhas de Saragoça e de Vila Viçosa.
Esta retirada, que não vem ao caso narrar aqui, foi uma verdadeira odisseia, que deixou lembrado nos fastos da história portuguesa o nome fidalgo de D. Pedro de Almeida. Em tão delicada conjuntura o môço general revelou não sómente a coragem ingénita da sua raça mas o tino, a prudência, a razão clara que são raros em curtos anos, que infelizmente se iam tornando raríssimos na casta a que êle pertencia.
Tais provas da mocidade indicavam eloqùentemente o seu nome para futuros serviços prestados à pátria. Estava esta numa das horas mais sombrias da sua degeneração lenta e dolorosa, num dêstes lances de angústia inconsolável que de há três séculos para cá tanta vez a teem pôsto a pique de subverter-se em abismo, que se não sabe bem aonde vai, se ao mar sem fundo, se ao pântano lodoso.
Em 1747 foi D. Pedro de Almeida, avô de Leonor, nomeado governador da Índia, num dos momentos mais críticos daquela nossa tão ilustre quanto descurada possessão.
O estado da Índia chegara nesse lance ao mais miserável extremo de objecção e abandôno. Um deficit formidável; o govêrno desorganizado e sem prestígio; desfalque na receita dos tributos, grave diminuìção no comércio; paralisia em todos os órgãos, de corrupção em tôdas as células dêsse corpo em que, por um momento, tinha circulado o mais puro, o mais generoso sangue português. A província fôra invadida pelos maratas, a raça indomável e feroz, da qual os europeus tremiam, e que só a férrea dominação inglesa, mixto de astúcia e fôrça, de traição e de energia, conseguiu definitivamante amordaçar.
D. Pedro de Almeida não teve mêdo à implacável, à selvagem e impetuosa bravura dessa casta de bandidos, e afrontando com supremo valor o poder marata correu ao assalto da fortaleza de Alorna, já que encontrara perdida, ao chegar à Índia, a de Pondá, que pouco havia nos tinha pertencido. Não foi sem resistência que a praça de Alorna foi tomada aos maratas; os portugueses sofreram grandes perdas, e muitos oficiais sucumbiram naquele primeiro assalto das nossas armas, que o desleixo tinha enfraquecido e embotado.
Aproveitando, porêm, com a sua costumada habilidade, o prestígio readquirido pelo nome português, na vitória que fôra renhida e bravamente disputada pelos contrários, o marquês de Castelo Novo tomou logo, quási sem resistência, as fortalezas de Bicholim, Avara, Tyracol e Bary[2].
A notícia destas vitórias excitou verdadeiro entusiasmo em Portugal. Estava por um fio a conservação dessas tristes relíquias do poder português na Índia. Se o marquês de Castelo Novo não se apossasse com tão feliz e pronta bravura de umas poucas de praças cobiçadas pelo inimigo, sustendo assim a roda de uma fortuna que tão contrária nos ia sendo, quem sabe se o que possuimos ali seria ainda hoje nosso! A êste homem notável pela decisão do carácter, e pela arte com que executava os seus planos arrojados, se deve porventura a conservação do nosso poder no Oriente.
D. João V recompensou o general vitorioso com o título de marquês de Alorna, que lhe foi concedido por um decreto muito honroso em 9 de Novembro de 1750.
Leonor de Almeida comemorava com justo desvanecimento e invocava com o legítimo orgulho os heróis da sua raça. Vê-se que tinha razão. Não era sómente pelos serviços de ante-câmara, ou pelas manhas de destros cortesãos, que os seus maiores tinham ascendido à posição que nobremente gozavam.
No mesmo ano de 1750, data do nascimento da ilustre mulher, cuja vida tentamos escrever, partia tambêm para o palácio dos vice-reis da Índia outro ascendente seu, o marquês de Távora, pai de sua mãe. Estava êste predestinado, não à celebridade do heroismo, brilhante e prestigiosa, mas à outra, que fica mais profundamente gravada nas almas, que inspira a universal simpatia, que gera as piedosas lendas... à celebridade do martírio.
A marquesa de Távora D. Leonor, espôsa dêste novo vice-rei e avó da marquesa de Alorna, fôra uma das fulgurantes belezas da côrte de D. João V, tão rica em formosuras, ou provocadoras e sensuais, ou deliciosamente sugestivas de místicos arrebatamentos de alma. Era natural que assim fôsse; essas mulheres eram indispensável ornato de uma côrte, cuja pompa lembrava a de uma satrapia oriental, cujos requintes galantes, cujo fausto devoto, cujo fanatismo violento e pagão, constituiam o espanto da Europa culta do tempo. Ninguêm entendia como tão extraordinários contrastes se podiam fundir num todo único. Mafra e Odivelas; as devoções a Nossa Senhora, e os amores com a cigana Margarida do Monte; o ajoelhamento permanente diante da côrte de Roma a pedir-lhe bênçãos, indulgências, privilégios, patriarcado, e a crónica apimentada que baixinho se repetia em todo o reino, tudo isto era tão extravagante que se perdia a cabeça na contemplação de tais prodígios.
Mas a marquesa de Távora conservou-se impecável no meio deletério e estonteante em que a devoção era um sensualismo mais doce, mais requintado que os outros, e o amor, precisava da sombra sonora e fresca dos claustros, do cheiro do incenso, das flores expirantes entre velas do altar...
Por um dêstes segredos de toucador, de que as privilegiadas não confiam de ninguêm o segrêdo precioso, conservou-se ela formosa até aos cinqùenta e cinco anos. Sabe-se isso, porque no ano do terremoto, em que contava justamente essa idade, Teodoro de Almeida escreveu um mau poema, Lisboa destruída, no qual se refere à sua rara formosura. Nesse poema, que só viu a luz em 1803, porque o seu autor, é claro, não se atreveu a publicá-lo em vida de D. José I, há uma vinheta em que se vê a miniatura da marquesa D. Leonor, e diz a tradição que era um retrato fidelíssimo em que o artista se esmerou a rogos do poeta. Estão com ela a filha, condessa de Atouguia, a nora, marquesa de Távora e uma neta.
Camilo, que é a fonte, fonte inexgotável e genuína, de onde tirámos estas informações, acrescenta naquela sua frase cunhada em oiro de Lei:
«O congregado Teodoro de Almeida não extrema a marqueza velha das mais novas, quanto a beleza:
Neste ponto avistaram de repente
Junto a si três matronas mui formosas.
«O certo é que a marquesa aos cinqùenta e cinco anos era ainda uma esbelta senhora, com o aprumo juvenil e o garbo da mocidade sadia e alegre. Ás maneiras fidalgas e altivez de raça ajuntava a superioridade do espírito, essa segunda fidalguia que devia torná-la odiosa à estupidez de suas primas.»
Um dos mil poetas detestáveis daquele tempo, dedicou à marquesa de Távora uns versos em que lhe celebrava o denodo na ocasião de embarcar para a Índia, de onde voltou justamente um ano antes do terremoto, para morrer da trágica maneira que sabemos[3].
Em Goa os marqueses de Távora celebraram com festas pomposas, ao gôsto da época, mas espiritualizadas por um toque de talento, que então não era vulgar, a aclamação de D. José I—o rei sob cujo poder êles tinham de vir a sofrer tão afrontosa morte!
O espírito da gentil e orgulhosa vice-rainha desentranhou-se em graciosas invenções que revelavam a sua cultura superior. Nessas festas quis ela manifestar aos estrangeiros a magnificência, um tanto ôca, as mais das vezes, fictícia quási sempre, do génio português. No teatro, mandado construir pela marquesa na capital da Índia, e que foi edificado dentro do paço de Pangim, houve durante três dias representações de gala. No primeiro representou-se em francês a peça de Corneille Porus vaincu par Alexandre. Dos seis personagens da peça cinco eram franceses e um português; e haver naquela época uma senhora da côrte freirática de D. João V que soubesse apreciar com lúcido critério o valor literário do nome de Corneille, indica da sua parte uma ilustração desproporcionada com o seu triste meio. Só ela tinha, porêm, ali essa cultura fenomenalmente rara, pois que o auditório não entendia palavra... «mas foi a representação feita com tão vivas expressões, que ajudados de um sumário em português, que a senhora marquesa tinha mandado traduzir da ópera, todos saíram satisfeitos e agradados da novidade, nunca até ao presente vista em Goa»[4].