Lissa sentira um tremor forte no chão. Era como um terremoto, precisava se segurar nos braços de sua cadeira para se apoiar. Só havia sentido aquilo uma vez e fora no dia mais infeliz de sua vida, o dia em que entrara naquela caverna.
(Trecho do livro Pequeno guerreiro da Lua, grande valente na Terra, de Antonella Bella Valentini).
∞∞∞
- Oh Mio! - exclamei me abanando com o leque de Ana e a agradecendo mentalmente.
Ainda estávamos no trem após uma parada noturna, onde passamos a noite numa pousada.
Já no dia seguinte, após inúmeras baldeações como no dia anterior, estávamos chegando próximo ao destino. Na verdade, parecia que estávamos indo em direção ao sol.
Os assentos eram desconfortáveis e o vagão parecia estar em chamas. Meu maior arrependimento fora ter continuado com aquele vestido de inverno mesmo tendo a oportunidade de mudar a vestimenta. Estive tão cansada que achava melhor nem abrir a mala. E, naquele momento, eu estava sofrendo as consequências daquela péssima escolha, suando em todos os lugares e extremidades.
Quase rasguei as mangas com o canivete a fim de libertar meus membros daquela agonia.
Como era possível dois lugares no mesmo país serem tão diferentes?
Em um havia frio e chuva e no outro calor em estoque e muita umidade. Aquela viagem parecia ser eterna, não chegava ao fim.
- Srta. Bella? Está se sentindo bem? - perguntou o homem irritante ainda ao meu lado.
- Não! Esse calor é angustiante. -respondi em tortura.
- Deveria ter escolhido outro vestido então. - disse ele como se eu já não soubesse.
Preferi nem responder, pois estava tão apavorada que só queria chegar logo e arrancar aqueles trajes.
Duas horas aterrorizantes se passaram e o trem finalmente parou. Romeu foi primeiro buscar as bagagens e pediu para me encontrar fora do vagão. Conforme as pessoas foram saindo, eu comecei a me sentir enjoada.
Quando me levantei, minhas mãos tremiam e meus pés não pareciam encontrar o chão.
- Senhorita? - perguntou meu vizinho de assento.
E de repente tudo ficou tingido de preto.
…
Minha visão parecia flashes de memória.
O homem me segurando.
O homem me pondo numa carruagem.
Romeu espantado.
Romeu colocando uma substância salgada na minha língua.
Uma casa.
Muitas pessoas espantadas.
Um quarto.
Uma mulher me examinando.
Espera, aquilo era uma mulher me examinando?
Quando finalmente acordei, estava numa cama muito confortável com roupas de dormir frescas e a janela aberta trazendo um vento quente do entardecer. Aquele lugar parecia nunca ter visto o frio.
Alguém bateu na porta.
- Olá Srta. Ella, eu sou a Dra. Augusta Montes. Está se sentindo melhor? Trouxe a janta para você. - disse ela.
Dra. Augusta era diferente de tudo o que eu havia imaginado. Era uma mulher muito bonita de quase meia idade, tinha os cabelos castanhos lisos e olhos verdes que agora me encaravam esperando uma resposta.
“Ótimo!” Eu tinha imaginado tantos encontros descentes com Augusta, mas nenhum deles se concretizou.
Se o que diziam sobre a primeira impressão ser a que permanece, então eu tinha acabado de mostrá-la que eu era incapaz de cuidar de mim mesma e, portanto, a traria muitos prejuízos. Logo, ela veria que tinha tomado a pior decisão ao me hospedar.
- Muitíssimo prazer em conhecê-la Senhora… quer dizer Doutora. Oh mio! A senhora é médica? É lógico que é, pois se não, não seria nomeada assim... Quero dizer, não que eu me importe. Por que deveria me importar? Mas é que... - eu não parava de falar e a cada sílaba que saía da minha boca mais constrangida eu ficava.
- Acalme-se senhorita! - disse ela parecendo se divertir com meu estado. - Você teve uma queda brusca de pressão e não pode fazer muito esforço. Por favor, coma um pouco. - ela falava com tanto cuidado que eu realmente precisei obedecê-la.
- Obrigada senhora! Perdoe-me pela falta de educação, não era assim que eu imaginava encontrá-la. - disse tentando soar o menos decepcionada possível.
- Não se preocupe querida! Dr. Gatti já me adiantou sobre muitas de suas qualidades, Srta. Antonella. Então, vejo que a deixei em desvantagem. Logo que se recuperar poderemos nos conhecer melhor, mas por hora, tudo o que me importa é que se sinta bem. - fez uma pausa - Vou chamar meus filhos para que os conheça.
- Tudo bem! - disse animada.
- Crianças venham aqui!
De repente quatro crianças saíram por detrás da porta. Foram tão rápidas que só pude deduzir que estavam ouvindo por trás dela.
- Estes são David, Charlotte, Elizabeth e Manuel. - fez uma pausa e voltou sua atenção aos filhos. - Digam olá à senhorita Antonella. - ordenou ela, enquanto eu ainda estava perplexa ao ver quádruplos gêmeos.
”Eu só podia estar delirando”. - pensei.
A imagem daquelas quatro criaturas me fazia esfregar os olhos várias vezes para saber se eu estava tão debilitada a ponto de ter alucinações. Tudo o que eu pensava era como aquela mulher que estava a minha frente podia ainda estar viva após conceber quatro crianças de uma vez.
Quando minha mãe dera à luz a Luca não havia ninguém em casa além de mim, fora a primeira vez que eu vira como uma criança nascia.
Ela gritava tanto que parecia estar sendo açoitada ou desmembrada viva, isso me traumatizou de tal modo que eu já declarara que nunca teria filhos. Porém, quatro bebês de uma única vez era inimaginável.
- Olaaaaá Senhorita Antoneeeeella! Seja bem viiinda! - disseram em uníssono como se tivessem ensaiado.
Ainda perplexa, eu observava suas características. Eles não eram nada parecidos com a mãe, pois tinham cabelos e olhos muito escuros, o que só me deixou com mais compaixão por ela ter carregado por nove meses e terem nascido com as características do pai que eu não conhecia.
- Olá! Muito prazer em conhecê-los. - devolvi com um sorriso amável.
A mais animada, que devia ser a Charlotte cochichava no ouvido do irmão e dava risadinhas.
- Podem ir crianças! Depois conversamos. - disse a doutora.
- Sim mamãe! - tristes e desanimadas saíram da sala.
- Eles não são muito calmos, mas com uma boa conversa são fáceis de lidar. - declarou ela com um sorriso se desfazendo aos poucos. - Só ficou mais difícil após o falecimento do meu marido.
- Sinto muito senhora!- disse sem saber o que falar.
- Tudo bem! Com o tempo as coisas vão melhorar. - fez uma pausa. - Agora a deixarei descansar. Já examinei sua pressão e aos poucos ela voltará a estabilizar. Qualquer coisa é só me chamar. - disse ela em direção à porta.
- Muito obrigada, de verdade, senhora! O que está fazendo por mim é incalculável.
- Não se preocupe é uma honra em tê-la aqui na verdade - disse ela com um sorriso amável antes de fechar a porta.
Terminei de comer em cinco minutos, estava tão faminta que ignorei as etiquetas sociais e quase empurrei o alimento por goela a baixo.
A comida era saborosa, mas não se podia comparar com a de Filomena. Não que eu estivesse reclamando, afinal, tudo o que estava acontecendo era absolutamente mais do que eu poderia merecer.
Logo depois, tentei descansar um pouco, pois meu corpo parecia ter sido atropelado por um elefante. Porém, após mudar de posição pela septuagésima vez, decidi fazer algo mais útil do que esperar o sono vir.
Então, fui escrever a Ana, pois precisava liberar a carga e só ela poderia me compreender mesmo de longe.
12 de Outubro de 1904, Rio de Janeiro
Querida Ana,
A senhorita não poderia imaginar o que aconteceu durante os dois dias desta infindável e tortuosa viagem. E muito menos como foi o meu encontro com Augusta...
∞∞∞
Várias horas depois, uma batida na porta me despertou. Eu estava apoiada na mesa com o rosto pressionando a carta ainda molhada pela tinta.
“Ótimo!”
- Srta. Ella? - chamou Romeu.
- Dr. Gatti! - exclamei abrindo a porta. - Como é bom vê-lo! - indiquei para que ele entrasse.
- É muito bom vê-la também. - disse ele enquanto pegava um lenço no bolso do paletó. – Tome. Acredito que terá que se lavar com água quente para tirar a mancha da face, mas talvez isso a ajude. - tentando segurar a risada.
- Hã … obrigada Dr. Gatti. - peguei o lenço para me limpar, mas parecia ser muito caro para ser manchado de tinta, e então o devolvi mudando de assunto antes que ele percebesse- Como pode ver, eu estou muito melhor, apesar de sempre estar desalinhada em suas visitas - declarei já me contentando com o meu destino.
- Eu vejo que sim! - fez uma pausa. - Quero dizer, vejo que está bem e não que está desalinhada. Acho, na verdade, que está muito bonita nesta noite. - disse ele rapidamente.
- Apesar de discordar do senhor, eu o agradeço. - lançando lhe um sorriso amável.
- Desculpe a intromissão, mas precisava vê-la. Fiquei muito preocupado com seu estado e sinto muito por não perceber que a senhorita não estava se sentindo bem no trem. Se não fosse o senhor que estava ao seu lado, a senhorita poderia ter batido a cabeça ou sido pisoteada. - comentou.
- Não precisa se desculpar doutor! Eu é que preciso agradecer por ter me ajudado. - fiz uma pausa, pensativa. - Eu deveria ter agradecido ao desconhecido que me ajudou também, mas fui tão orgulhosa que nem perguntei seu nome.
- Sinto muito, mas também não sei informar sobre o nome do cavalheiro. Se te conforta, entreguei seu endereço para que ele pudesse visitá-la. - fez uma pausa. - Sei que foi pouco prudente da minha parte, mas aquele senhor estava muito preocupado com a senhorita. Apesar de ele ter me ameaçado de diversas maneiras, tomei tal liberdade, pois supus que se tornaram amigos durante a viagem. - declarou demonstrando que o homem em questão o tinha pressionado até ele ceder.
- Obrigada doutor Gatti, mais uma vez. Se não fosse pelo senhor nem teria chegado a esta casa. - dei de ombros.
- Não há de quê senhorita. - ele puxou o braço que estava atrás de suas costas e em sua mão estava um pequeno buquê de rosas. - Trouxe para você.
- Oh mio! Muito obrigada senhor! - disse pegando o lindo buquê e imaginando que se fosse uma aliança eu provavelmente o aceitaria. Afinal, como rejeitar um homem daquele?
- Agora devo deixá-la, pois já está tarde. - antes de fechar a porta disse. - Boa noite senhorita. Antes de ir avisarei Dra. Augusta sobre a possível visita de seu amigo, tudo bem? - perguntou.
- Claro, faça isso, por favor. Boa noite doutor!