Lissa não sabia ainda se poderia confiar no menino que havia acabado de conhecer, mas depois que soube que seu nome era Luno, não teve dúvidas que aquele menino poderia fazê-la voltar para sua verdadeira casa. Mas será que estaria disposta a abandonar os pais adotivos que tivera na terra e voltar para sua antiga vida?
(Trecho do livro Pequeno Guerreiro da Lua, grande valente terrestre, de Antonella Bella Valentini).
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Naquela manhã, acordei com um pressentimento r**m, como se algo nada bom fosse acontecer. Na hora, só pude pensar em minha família e se estavam bem.
Apesar das cartas me manterem informada sobre a situação em minha casa, elas só traziam informações passadas, o que era angustiante, pois mesmo que eu não ajudasse estando presente na situação, pelo menos ficaria sabendo imediatamente se algo de r**m tivesse os acometido.
Afastei aqueles pensamentos, pois eles não me tranquilizariam, apenas me deixariam mais preocupada com as suposições que eu criara. A única ação que eu poderia ter era suplicar aos céus que minha família estivesse bem e seguir com meus afazeres.
O dia amanhecera nublado e frio, de forma que as gotículas do temporal da noite passada ofuscavam o vidro da janela. Meu corpo estava totalmente dolorido e minha garganta parecia ter sido arranhada por cacos de vidro. Não havia muito que eu poderia fazer além de tomar chás e me agasalhar.
Olhei para o armário e constatei que só trouxera um vestido de inverno, o amarelo que minha mãe detestava. O coloquei e fui direto para o escritório, m*l tomei café da manhã, apenas um pouco de café quente e puro para amenizar a dor de garganta.
Jade me deixou em frente ao jornal e segurava uma cesta que provavelmente seria usada para fazer algumas compras para a dispensa.
Conforme eu entrava no escritório, o ar quente com aroma de tinta e papel aquecia as frias maçãs do rosto. Assim que cheguei próximo a minha mesa, encontrei Tomás me esperando com um sorriso divertido no rosto.
- Bom dia Srta. Bella! - cumprimentou.
- Bo… - uma tosse me atrapalhou - Bom dia Sr. Marks! - respondi. Quase conseguia ler em seu semblante algo como: “Eu avisei para sair da chuva!”
- Vejo que não está sendo um dia muito bom não é mesmo? - perguntou com um ânimo inigualável, totalmente oposto ao humor que eu estava naquela manhã.
- Parece que não mesmo! - declarei.
- Bom… Tenho algo que talvez possa animá-la. - e me entregou uma folha de papel.
- O que é isso? - perguntei estranhando a situação.
- Bem… É uma folha de papel. Geralmente eu gosto muito de usá-la, pois veja só esta textura e… - ele nem terminou ao ver meu olhar cansado. - Tudo bem, estou apenas importunando-a. Isso é a sua primeira publicação no jornal! - declarou com entusiasmo.
- Como disse? - questionei quase sem acreditar no que estava ouvindo.
- Olhe só, quantos jornais a senhorita conhece que trazem textos e conteúdos para mulheres? - perguntou.
- Acredito que nenhum. - constatei.
- Bom, então tome esta tarefa como sua! - fez uma pausa e sentou na quina da mesa. - É claro que a senhorita poderá abordar o que quiser, eu não interferirei.
- E por que eu? - perguntei ainda sem acreditar no que meus tímpanos estavam absorvendo.
- Acredito que a senhorita é muito capacitada para isso! - ele cruzou os braços sobre o peito e prosseguiu. - Poderia escrever sobre alguma entrevista, ou moda e talvez até trazer alguma crônica, ou poema. Eu não sei. Sinta-se livre para escolher. - declarou satisfeito.
- Mas… c-como? E-Eu não sei… - até as palavras me faltavam naquele momento, pois a ansiedade era tanta que eu só queria tomar aquela folha e escrever.
- Fique calma! A senhorita é a única mulher que trabalha no setor da edição. Quem sabe assim nosso jornal não começa a inseri-las mais e até destinar algumas colunas especificamente com temas femininos. - disse ele contente com a ideia modernista. - Bem… Se não quiser não precisa falar apenas às mulheres, pode fazer algo para o público como um todo. Fica à seu critério. - terminou me encarando com expectativa.
- Oh mio! - murmurei exultante.
- Sabia que diria isso! - constatou com duas covinhas na bochecha.
- Mas e o Sr. Alves? Ele não…
- Não se preocupe com Nikolai. - disse sério. - Eu já estou farto das intromissões dele no meu trabalho e antes que a senhorita pergunte, meu pai ficou muito satisfeito com a ideia. Então, só depende da senhorita começar a escrever. - declarou se desencostando da minha mesa.
- Muitíssimo obrigada Sr. Marks! Eu não vou decepcioná-lo.
- Nem se a senhorita quisesse, conseguiria me decepcionar! – declarou. - Tenha um bom dia Srta. Bella. - disse ele com uma breve reverência e se afastou.
Mal esperei ele ir e já me sentei de frente para minha mesa. A folha em branco reluzia com a luminosidade da janela e com isso muitas ideias percorriam minha mente, pois havia uma infinidade de assuntos que eu poderia abordar.
Alguns evidentemente estavam fora de cogitação, como a moda. Eu nem me atreveria a escrever sobre isso, pois não sabia nada sobre tendências, harmonia de cores, babados e tecidos, talvez Ana fosse a pessoa certa para isso, mas eu não.
Então pensei em escrever uma crônica, porém nenhuma história me vinha à mente. Apenas rabiscava a folha e não saía nada que de fato prendesse a atenção das pessoas. Fiquei horas pensando em algo que pudesse escrever sem que parecerem apenas esboços.
- Srta. Ella? - despertava-me Carlota segurando uma xícara de café. - A senhorita estaria muito ocupada no momento? - perguntou ela com um ar intrigante.
- Não muito. - disse decepcionada com meu péssimo desempenho. - Por quê?
- Poderia me fazer o favor de me ajudar a procurar um arquivo na sala de documentos? - questionou com a cabeça caindo para o lado, como uma súplica.
- Claro Srta. Carlota! Qual é o documento? - perguntei.
- Bom… O Sr. Alves me solicitou que eu encontrasse o arquivo E25. Era para estar na quinta prateleira, mas não o encontrei. - disse ela com uma falsidade cobrindo sua voz.
- Entendo! Vou ver se consigo encontrar. - declarei me levantando.
- Obrigada Srta. Ella! - respondeu com um sorriso satisfeito, se afastando da mesa.
- Não me acompanhará Srta. Carlota? - questionei.
- Hã… Eu tenho que entregar este café ao Sr. Robs. - olhou para os lados e voltou a me fitar. - Logo eu irei, mas pode ir à frente. - declarou ela andando rápido sem esperar por uma resposta.
Entrei na sala de documentos e constatei que estava vazia, com apenas a luz da pequena janela iluminando a interposição das estantes. A sala era enorme e tinham vários corredores enumerados. Então, fui em direção à fileira cinco.
Conforme meus olhos percorriam as caixas sobre as estantes o ar entrava nos meus pulmões com dificuldade, pois estava saturado pela poeira e pelo mofo daquele local, por vezes provocando crises de tosses.
Meus olhos continuavam a busca. Havia uma sequência desordenada sobre a prateleira cinco, com os números: E21, E15, W12, Z30. Comecei a pular para tentar enxergar as prateleiras de cima, mas foi em vão. Então, me curvei para procurar pelas de baixo, estavam muito mais desalinhadas, algumas até vazias. No entanto, quando meus olhos se estreitaram para o fundo da última prateleira, a caixa etiquetada como E25 reluziu. Ela estava encostada no fundo como se tivesse sido empurrada ou escondida.
Levantei as saias para conseguir encostar os joelhos no chão e ter apoio para puxar o arquivo. Porém, um formigamento desagradável se alojou em minha nuca, causando uma sensação totalmente desconfortável.
Levantei e sai da fileira que eu estava para ir em direção ao corredor principal que dava acesso a porta de saída. Olhei os lados para ver se mais alguém estava na sala e não notei nada. Então, retornei a minha tarefa mesmo com a sensação desagradável ainda presente.
Uma movimentação atrás de mim chamou minha atenção enquanto eu voltava à fileira. Virei o rosto, mas não conclui o movimento, pois alguém, de repente, tapou minha boca e me segurou por trás.
Eu não conseguia ver quem era só podia saber que era um homem pela força e altura. Ele me puxava para o fundo da sala de forma grotesca, enquanto eu resistia e me desequilibrava.
- Pare de se mexer mulher! - era Nikolai. - Acha que eu não notei seus olhares em minha direção ontem? - e me virou para ficar de frente para ele. - Sabia que é errado ficar bisbilhotando seus superiores? - fez uma pausa. - Mas não se preocupe, eu não vou machucá-la. - e me pressionou à parede com força. - Pelo contrário! - disse ele sorrindo de forma assustadora, ainda tapando minha boca. - Vou te dar aquilo que a senhorita tanto queria. - e passou os olhos pelo meu corpo. - Afinal de contas, uma bela mulher em um ambiente como este não poderia estar querendo outra coisa, não é? Acha mesmo que eu acreditei que estava aqui apenas para trabalhar? - e começou a rir. - E ainda tentou seduzir Ernesto para que ele publicasse o seu livro. - e deu outra risada. - Não precisa se preocupar mais, eu vou lhe dar aquilo que você tanto queria!- então, tapou minha boca com a sua.
Aquilo foi como um soco, tão forte que eu podia sentir a marca exata do meu dente fincado ao lábio superior. Eu não conseguia me desvencilhar de Nikolai, aquilo era nojento e ele me segurava com tanta força que eu já podia sentir meus pulsos formigando, precisava sair dali o mais rápido possível.
Então num ato de desespero mordi seu lábio com toda força que meu maxilar era capaz, até que ele se afastou.
- Socorro! Socorro! - gritei, tentando me soltar de suas mãos, mas ele era muito mais forte do que eu.
A mordida que eu havia lhe dado só fez com que ele se sentisse mais incentivado a me atacar. Ele segurou minhas duas mãos com uma só e usou a que sobrara para tentar rasgar meu vestido. Eu lutava, usava toda força que eu tinha, mas nada parecia ser o suficiente.
- Por que está lutando? Não era o que desejava? Não precisa se fazer de difícil querida. - dizia ele, tapando minha boca.
Aquelas palavras só me fizeram resistir mais. Sem pensar duas vezes, puxei o joelho com toda força que eu possuía para tentar atingi-lo. Luigi sempre me dizia que quando um homem tentasse me machucar eu deveria fazer aquilo, nunca o dei ouvidos, pois não achei que eu fosse precisar. Porém, de fato precisei e o ato dera certo. Nikolai me soltou.
Eu saí correndo gritando por Tomás, mas não chegara a dar nem dois passos em direção à porta, pois ele me puxou pelos cabelos e novamente tapou minha boca, dessa vez com tanta brutalidade que eu podia sentir o couro cabeludo se desgrudando.
Minhas forças pareciam ter se esgotado e meu corpo doía por inteiro enquanto eu me contorcia tentando me afastar do monstro. Tudo em mim se tremia em pavor, e o único som que eu podia ouvir era um zumbido ensurdecedor, enquanto Nikolai novamente tentava me arrastar para o fundo.
Eu gritava internamente tentando provocar algum ruído que chamasse a atenção de alguém que estivesse por perto, mesmo que minha garganta queimasse em resposta, pois precisava sair dali.
Até que enfim alguém entrou escancarando a porta.
- Bella? - gritou Tomás. Quando seus olhos repousaram sobre mim, vi o terror dominar seu semblante e uma tempestade de raios encobrir suas negras íris. - Solte-a!- vociferou.
Havia sido a primeira vez que eu vira Tomás em completo furor. Nikolai imediatamente me soltou, com tamanha brutidão que minha cabeça se chocou com força contra o solo.
Tudo ficou desfocado por alguns segundos, não sabia se era pelo pânico ou pela colisão.
No entanto, quando eu abri meus olhos Tomás estava por cima de Nikolai o golpeando sem intervalos. Alguns homens logo entraram na sala e separaram os dois.
- Vá! - rugiu Tomás.
- Não. Não irei se eu não quiser, pois meu pai também é dono deste lugar! - gritou o monstro limpando o sangue do nariz.
- Muito bem! Fique e espere a Guarda chegar com uma ordem de prisão, pois é isto que receberá. Será até melhor, pois não precisarão seguir os seus rastros de imundice. - respondeu Tomás com os punhos cerrados.
Nikolai cuspiu no chão e saiu da sala me olhando como se proclamasse vingança. Tomás se desvencilhou dos homens que o seguravam e foi em minha direção com o horror e pânico tomando conta de seu olhar.
- Bella? - chamava-me enquanto me examinava.
Eu não conseguia reagir, nem dizer palavra alguma, pois minha cabeça ainda latejava pela colisão e o choque. Então, Tomás me retirou do chão como se fosse um tecido de seda delicado. Suas mãos tremiam e havia sangue na curvatura dos ossos da mão.
Conforme ele me carregava em seus braços pelo escritório, eu podia ver a multidão me olhando. Uns me lançavam olhares de pena e outros de desaprovação e, de alguma forma inexplicável, eu me sentia culpada.
Quando meus membros se encostavam pelo tremor, uma onda de náusea parecia consumir meu estômago. Não conseguia processar nada do que havia acontecido, apenas sentia a própria definição de nojo na pele. Sentia-me imunda como se estivesse coberta por estrume.
- Bella, está conseguindo me ouvir? - perguntava Tomás.
Sem tirar os olhos de mim, me colocou cuidadosamente sobre um sofá e trancou a porta de seu escritório. Olhei para mim e ainda estava com as roupas no lugar, apesar das mangas e a lateral da saia terem se rasgado, deixando parte dos ombros e do b***o expostos.
Naquele momento eu podia entender o porquê minha mãe odiava aquele vestido, eu mesma o odiei tanto que me enojava só de olhar para ele.
Tomás se sentou ao meu lado e, sem dizer nada, me abraçou. Até aquele momento nada fazia sentido, tudo parecia ser como num pesadelo, e minhas memórias como flashes e borrões.
O toque acolhedor de Tomás me envolveu juntamente com o ar inebriante de sua sala perfumada, fazendo-me sentir em completa segurança. Eu o agarrei e encostei a cabeça sobre o seu peito, como se as batidas de seu coração fossem meu porto seguro.
Ele apenas me firmou mais ainda em seus braços, dando a liberdade que eu precisava para me lamentar.
Chorei em completo pavor e desespero, pois me sentia humilhada, imunda e totalmente vulnerável.
Tudo o que eu queria fazer era ficar ali trancada naquela sala e nunca mais sair dali, nunca mais ter que me lembrar do que ocorrera ou ter que enfrentar aquelas pessoas novamente, principalmente Nikolai Alves.