Capítulo 12

2329 Words
Algumas horas depois eu me levantei novamente atrasada. Estava com tanto sono que demorei mais ao colocar o meu vestido ao contrário sem perceber. Parecia que se eu piscasse acabaria adormecendo ainda em pé. Quando acabei, nem me dei o trabalho de olhar meu reflexo no espelho, apenas segui a rotina de me organizar instintivamente. Assim que abri a porta para sair do meu quarto, quatro cabecinhas que estavam cochichando como em uma roda voltaram sua atenção a mim. - Bom dia Srta. Antonella! - cumprimentaram. - Bom dia crianças - respondi desconfiada. - Não precisa nos chamar de crianças, pois apesar do nosso corpo ser um pouco menor do que o seu, por dentro já somos adultos - declarou David. - Pare de importuná-la David! Ela só estava sendo gentil. - disse Elizabeth. - E por que me deram a honra desta visita nesta manhã? - perguntei com um sorriso divertido. - Viemos vê-la, pois mamãe nos disse que se acidentou a noite. - explicou Charlotte com um ar de mentira. - Haa… Obrigada senhores, e senhorita! Eu acredito que já estou bem melhor. - declarei sabendo que eu estava mentindo, pois não conseguia andar sem mancar. - Mesmo assim deixe Manuel ajudá-la e acompanhá-la até a entrada. - disse Charlotte ainda com um ar de mentira. - Por que eu? - perguntou Manuel cruzando os braços. - Por que… Bem, porque eu estou te mandando ir! -declarou ela autoritária. - Você não manda em mim! - reclamou Manuel franzindo os lábios, enquanto eu me divertia com eles. - Mando sim, pois sou cinco minutos mais velha que todos vocês! - respondeu Charlotte empinando o queixo em superioridade. - Vamos Srta. Antonella! -disse Manuel, emburrado, segurando em minha mão para me levar até a entrada, enquanto os outros acenavam atrás. Seja lá o que aquelas crianças estivessem aprontando, com certeza não era algo bom. ... Durante o caminho até o jornal, Jade foi como um anjo enviado para me ajudar a não mancar, mas era quase inevitável. Dra. Augusta tinha uma carruagem, mas ainda não havia contratado um motorista. Ela possuía dois cavalos e até poderíamos ir cavalgando, mas o jornal ficava muito próximo de sua casa. Dessa forma, podíamos seguir andando até o destino. O único empecilho, ou talvez um grande obstáculo, era o calor escaldante daquela cidade. Os músculos da minha mão já estavam ficando firmes de tanto balançar o leque de Ana, na tentativa de provocar uma sutil ventania sob a face. Apesar de suar mais do que o normal, isso não era um problema, pois nada é perfeito e quando eu havia aceitado a proposta, sabia muito bem disso. Conforme avançávamos, comecei a observar a cidade com mais atenção. O Rio de Janeiro era diferente de tudo que eu imaginava, na verdade, era até muito parecido com a arquitetura europeia, ainda que minhas memórias fossem escassas. A Avenida Principal parecia ter saído de um cartão postal parisiense, pois havia colunas e arcos decorando todos os prédios, de baixo à cima. Também era possível notar que algumas ruas estavam com construções demolidas, era como se a cidade ainda estivesse em construção ou fazendo uma grande reforma, como se aquelas residências fossem móveis dentro de uma casa e os donos estivessem os renovando. O jornal ficava a pouco mais de dois quarteirões da Avenida Central, numa rua nomeada como Moreira César, apesar da maioria das pessoas a conhecerem como Rua do Ouvidor. Pelo que se podiam ver, todos os jornais editoriais do Rio de Janeiro estavam alojados ali. Era impressionante o quanto aquela área era movimentada, mesmo sendo estreita. Possuía livrarias, confeitarias, vitrines das modistas francesas e muitos senhores sentados próximos, conversando com seus conhecidos e sempre possuindo um jornal debaixo do braço. Havia pedestres indo por todas as direções e também algumas carruagens e cavalos estacionadas próximas, em ruas menos restritas de tamanho. No entanto, o que realmente despertou mais minha atenção foram os chamados "automóveis" e, para minha surpresa, havia um deles estacionado na frente do jornal, o que não era muito educado, visto que a rua já não esbanjava muito espaço. Em São Paulo, os automóveis já não eram mais novidade, pois havia pouco mais de oitenta em todo o estado, mesmo assim não era muito comum vê-los circulando. Eles eram os objetos mais peculiares que eu já vira, como se toda vez que meus olhos repousassem sobre eles estivessem encarando a própria marca registrada do futuro. Era uma loucura pensar em algo que se movesse sozinho, sem carvão ou trilhos. Minha família não possuía um desses "automóveis", ou seja lá o que aquela geringonça fosse, pois não tínhamos dinheiro para isso. Quando meu pai, muito alucinado com essa ideia futurista, pensou em ter um automóvel, precisou investir o dinheiro na faculdade de Luigi e acabou desistindo da ideia. Além disso, morávamos muito afastados do centro e caso aquele objeto resolvesse parar de funcionar no meio da estrada seria muito difícil conseguir ajuda. Em emergências com as carruagens, o escape era fácil, pois só era preciso pegar um dos cavalos e ir buscar ajuda. Era simples. Já com aquelas geringonças eu nem imaginava o que deveria ser feito nestes casos. Meus pensamentos escaparam da minha mente quando vi Tomás me encarando na entrada do prédio. - Srta. Bella? - chamou ele, me fazendo desvincular rapidamente de Jade para que não visse que eu estava mancando, mas não foi rápido o suficiente, pois ele já tinha notado. - Sr. Marks! - disse eu, engolindo em seco. - Algum problema com seu pé senhorita? - disse ele se aproximando. - Eu tive uma leve torção, mas já estou melhor. - confessei. Afinal, não adiantaria mentir para aquele homem. Ele era mais esperto do que parecia ser. - Por favor, deixe-me ajudá-la. - disse ele já passando o braço pela minha cintura e apoiando o meu sobre seu ombro. Despedi-me de Jade enquanto ele praticamente me carregava. O que era de fato muito confortável, pois eu só precisava fingir que meus pés se movimentavam, enquanto o vestido fazia seu papel em escondê-los. "Talvez devesse torcer o pé mais vezes!”- imaginava. Conforme fomos entrando as pessoas começavam a me olhar em horror e desaprovação. Eu não sabia se esses olhares eram por causa de Tomás ou pelo meu estado pouco atrativo. Pelo que se podia ver, as pessoas dali eram incapazes de cuidar da própria vida, pois não paravam de cochichar entre os cantos. Porém algo em Tomás me deixava mais desconfortável do que os murmúrios, eu não sabia se era pelo seu toque firme ou pelo aroma inebriante de seu perfume. No que eu estava pensando? Não podia me encantar por ele. Por acaso eu tinha esquecido que ele era meu chefe? - Fique aqui e me chame se precisar ir a algum lugar - disse ele enquanto me colocava sob a cadeira de frente a minha mesa. - Tudo bem, muito obrigada Sr. Marks! - cumprimentei dando-lhe um sorriso torto. “TORTO? Por acaso eu tinha enlouquecido?” - Senhorita? - chamou ele. - Sim? - respondi rapidamente, querendo me livrar de sua companhia. - Poderia revisar esta matéria? - fez uma pausa e prosseguiu- É sobre uma entrevista com o médico Oswaldo Cruz, não sei se a senhorita está a par ainda dos acontecimentos daqui, mas ele é um dos responsáveis pelas muitas reformas sanitárias que há meses modificam esta cidade. - Perdoe-me, senhor. Não estou muito consciente de tais mudanças. - comentei. - Sem problemas. - respondeu ele. - Sr. Marks eu poderia falar com o senhor? - perguntava Nikolai por trás. - Claro Sr. Alves!- disse ele, voltando sua atenção a mim. - Se precisar eu estarei na sala ao lado. - acrescentou, enquanto eu assentia. - Desculpe, mas como se chama senhorita? - perguntava-me Nikolai, lançando-me olhares e sorrisos maliciosos. - Antonella. - respondi seca. - É um prazer revê-la. - comentou ainda me olhando de uma forma inconveniente. E se pôs a sair junto com Tomás que estava com um ar irritado. O engraçado é que a sala de Tomás vivia com homens impacientes indo e vindo, eles sempre estavam com um grafite sob a orelha e seguravam cadernetas pequenas, como se estivessem anotando tudo que vissem. Pelo que se percebia, eles eram os jornalistas mensageiros, viviam procurando notícias e acontecimentos e, quando encontravam, lotavam as salas dos donos, afoitos como pássaros ao encontrar comida para o ninho. Comecei a ler a matéria que Tomás me pediu para revisar. Ela trazia alguns dados passados sobre as internações por varíola que haviam atingido cerca de dois mil casos. Depois, uma breve menção a um senador alagoano que havia proposto ao congresso, em julho, tornar a vacina antivariólica obrigatória. E por fim, o médico entrevistado parecia estar concordando com tal ideia. O que era bastante intrigante era que as informações apontadas pelo jornal não eram tão insinuadoras como em muitos outros que eu já lera. Alguns até conseguiram mudar minha opinião sobre diversos assuntos, o que era muito manipulador, pois de certa forma as informações deveriam vir cruas e deixar com que o público tirasse suas próprias conclusões. No entanto, meu trabalho não era julgar se aquilo estava insinuador ou não, eu deveria apenas corrigir e fazer observações caso houvesse alguma discordância na linguagem e no vocabulário. E assim fiz. Quando estava ainda na metade da segunda tarefa, uma vontade agonizante de urinar me tomou. Minha bexiga parecia a ponto de explodir a qualquer momento. Então, levantei da minha cadeira e tentei relembrar as instruções de Tomás a respeito da casinha. "Eu deveria descer as escadas e virar a direita… não! À esquerda e depois permanecer reto, não! eu deveria virar à direita e depois ir reto" - supunha. Tentei realizar todas as possibilidades que vinham à mente. Porém, nenhuma delas parecia chegar ao meu destino, eu só encontrava salas e mais salas e meu pé latejava de dor conforme triscava o chão. Meu corpo se movimentava como em uma dança espasmódica na tentativa de segurar ao máximo aquela necessidade. Quando eu finalmente encontrei meu maior desejo naquele momento, me deparei com outro problema: existiam duas casinhas sob o gramado. Eu não sabia em qual eu deveria entrar e minha bexiga se contraía cada vez mais em resposta a minha demora em esvaziá-la. Como não havia ninguém ao redor entrei em uma delas sem hesitar. Abri a porta, me sentei no vaso sanitário e liberei meu pavor. Após terminar, puxei a corda da descarga e lavei as mãos com o jarro no chão. Quando abri a porta, meu sangue parecia ter parado de circular após ver Tomás petrificado a minha frente. “Era só o que me faltava!" - Srta. Bella? - perguntou ele espantado ao me ver. "Oh Mio!" - S-Sr. M-Marks? "Que dama encontra com um cavalheiro bem após sair da casinha?" Eu havia perdido toda minha reputação, não havia mais salvação. - Vejo que quis conferir as condições sanitárias das casinhas "MASCULINAS", não?! - disse ele a ponto de ceder à risada a qualquer segundo. - Como? - perguntei tentando entender se eu ouvira corretamente. - Desculpe senhorita. Mas esta é uma casinha masculina, a das damas é a da esquerda. - disse ele falando entrecortado entre os risos disfarçados. - Oh Mio! - exclamei engolindo em seco. “Qual era o meu problema, afinal?” - Não se preocupe! - fez uma pausa e estendeu sua mão - Vamos! Tem que sair antes que alguém a veja além de mim. - M-Me desculpe senhor! Eu não me atentei estava muito… - parei de falar antes que eu acabasse com as migalhas da minha dignidade de uma só vez. - Eu compreendo! - disse ele dessa vez rindo com vigor ao ver meu constrangimento. - O que achou das nossas contribuições sanitárias? - perguntou ele tentando se recompor. - Hã… muito agradáveis! - respondi apenas querendo chegar o mais rápido possível a minha mesa. - A senhorita sabia que o Rio de Janeiro foi o terceiro no mundo a implantar um sistema de esgoto? - perguntou ele, apenas com um sorriso divertido. - Não, na verdade não. - declarei. - Foi uma das reformas que andam ocorrendo aqui. Logo depois de constatarem que a maioria das enfermidades poderia ser evitada com a higiene. O que é complicado de compreender, visto que eles usam termos quase indefiníveis para explicar, tornando-se ainda mais difícil fazer a população entender. - explicou. - Posso lhe fazer uma pergunta? - ele assentia - Por que alguns homens estavam no telhado deste prédio nesta manhã? - Eles são os famosos mata-mosquitos. Ficam avaliando as condições das casas e identificando focos do mosquito da febre amarela. - fez uma pausa para acenar para um dos homens no outro canto da sala e prosseguiu. - Além disso, eles fazem a desinfecção com gases de piretro e enxofre. - concluiu, enquanto chegávamos próximos à mesa. - E o que acontece se identificarem algum foco aqui neste prédio? - perguntei. - Bem… Provavelmente interditariam e depois demoliriam a construção. Só para a senhorita saber, já foram mais de 600 edifícios e casas só para abrir a Avenida Central. - disse ele parecendo estar familiarizado com aquilo. - Minha nossa! E isso foi há meses? - perguntei abismada. - Sim! Pouco mais de nove meses. - fez uma pausa. - Pelo menos o plano de acabar com a febre amarela está funcionando, os números de casos já diminuíram quase em 50%. - e puxou minha cadeira. - Entendo. - murmurei, me sentando. - Obrigada por ter deixado a par dos acontecimentos e também por… - não terminei a frase, pois ele parecia compreender ao quê eu estava me referindo. - Não se preocupe senhorita!- fez uma reverência e prosseguiu. -Tenha uma boa tarde! - disse ele enquanto retornava seus passos para o caminho que parecia dar na casinha. Pelo visto, não era a única que estava apertada ali.
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