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"as luzes mais intensas são aquelas que produzem as sombras mais fortes.
Dizem que a escuridão teme a luz, foge dela, desaparece na sua presença, mas talvez a verdade dos fatos seja justamente o contrário. E se a escuridão for quem faça a luz se extinguir? Desejando possuí-la, tê-la para si, envolvê-la por completo?
Chama e sombra; luz e escuridão. Completos opostos, antíteses, essências contrárias, paradoxos disformes... mas uma é insignificante sem à outra para realça-la, e talvez a única coisa de que a sombra mais escura e fria que exista só precise do seu próprio feixe de luz para torna-la algo puro"
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A DOCE E QUENTE LUZ:
Tobias Hamlet não achava que era um deus da moda ou algo assim, até porque metade das suas roupas eram velhas e de segunda mão, mas ele definitivamente achava que aquele seu uniforme de trabalho era um atentado para os olhos humanos, e talvez fosse por isso que a maioria das pessoas que frequentassem aquela pequena cafeteria fossem idosos ou pessoas dos subúrbios, exatamente como ele, que não queriam gastar um centavo à mais indo no shopping ou em alguma lanchonete, preferindo optar por aquela velha cafeteria de esquina, completamente esquecida entre os bares e lojinhas de quinquilharias. A roupa consistia numa calça jeans (da sua escolha, e como o rapaz não tinha muitas opções, sempre era uma calça surrada), mas a parte de cima precisaria ser necessariamente aquela maldita camisa quadriculada, com listras vermelhas e azuis cruzadas, como se ele estivesse prestes à participar de uma festa junina ou de uma tourada, além de que se isso não fosse o suficiente, havia também um avental preso à sua cintura.
A "cafeteria Hansons" tinha apenas um funcionário, o próprio Tobby, que tinha que cuidar da limpeza, dos pedidos e do caixa, mas pelo menos seus dias de trabalho eram apenas de segunda a quinta, além de que o serviço não era muito pesado (o seu único trabalho era de limpar, pois ter clientes frequentes eram um milagre divino, e sem clientes para atender, ele também não precisaria ir para o caixa). Tobby achava seriamente que aquela cafeteria fazia parte de um esquema de lavagem de dinheiro ou algo assim, porque o dinheiro que eles conseguiam por mês sequer dava para pagar os setecentos dólares que ele recebia mensalmente, mas mesmo assim continuavam abertos sem problema algum.
A cafeteria não tinha mais do que uns dez metros quadrados, sem cozinha (o café era feito logo ali atrás do balcão, para que o cliente conseguisse ver. Além de que os pães e bolos eram comprados numa padaria alí perto e revendidos por um preço um pouquinho mais caro). O lugar era baseado em uma típica cafeteira do século passado, com mesinhas circulares de madeira que tinham jarros bonitos e delicados com flores em cima; cadeiras acolchoadas; o papel de parede era florido e de tons pastéis amarelados, combinando com todo o resto do lugar, que tinha uma paleta que variavava entre tons claros e escuros de marrom). O balcão de madeira escura e polida ficava na parede da direita, e logo atrás dele, onde Tobias ficava a maior parte do tempo, ficava também uma série de prateleiras, com vários tipos de grãos distintos, tubos de chantilly, açúcares e adoçantes diferentes, além de era onde ficavam as xícaras e copos de vidro e porcelana também. durante o inverno os aquecedores ligavam automaticamente, mas durante todo o resto do ano o clima era bastante aconchegante por si próprio.
Tobby estava digitando de forma tranquila no seu velho e todo trincado celular quando uma senhorinha que parecia ter uns setenta anos entrou na cafeteria, fazendo aquele pequeno sino que havia preso na parte de cima da porta tintilar levemente. Ela era uma cliente fixa do lugar e ia até a cafeteria quase todo dia. A senhorinha tinha uma pele pálida marcada pela idade, olhos escuros, cabelo grisalho e óculos engraçados com aquelas correntinhas presas nas armações.
— Boa tarde, dona Margô. — Disse o rapaz, tentando soar animado, enquanto enfiava o celular de volta no bolso do seu jeans surrado.
— Boa tarde, meu jovem. — Respondeu ela (Tobias desconfiava de que apesar de sempre falar o seu nome para ela, dona Margô sempre esquecia), enquanto encarava o cardápio que havia preso em cima das prateleiras atrás de Tobby. Ele não passava de uma enorme placa de madeira, com o cardápio escrito com a elefante e delicada letra de Tobias, que precisava colocar uma escada e subir para mudar os componentes do cardápio sempre que alguns ingredientes estava em falta e isso impedia o preparo de determinados ítens (ou seja: Tobias precisava subir para reescrever a placa quase todo dia, porquê sempre, sempre, sempre estava faltando alguma coisa na cafeteria Hansons).
— Um expresso duplo com nozes e bastante leite para mim, meu rapaz. Ah! Eu também queria uma fatia daquele bolo de cenoura. — Ela disse, depois algum tempinho. Tobby girou o pescoço rapidamente e encarou o cardápio escrito na placa para saber se tinha alguma coisa escrita errada, porque um expresso duplo com nozes não deveria estar alí (até porquê seria impossível fazer um duplo com nozes SEM as nozes), mas aquele tipo de café específico não estava mesmo no cardápio.
— Infelizmente não há esse tipo de expresso hoje, dona Margô. Estamos esperando o fornecedor trazer as nozes. Provavelmente até o fim da semana o expresso com nozes já vai voltar para o cardápio. — Mentiu ele, sabendo muito bem que quando alguma coisa acabava daquela forma, só um milagre divino faria os produtos serem reabastecidos novamente de forma rápida.
— Sério? Aquele é meu favorito. — respondeu dona Margô, soltando um suspiro triste e voltando a encarar o cardápio. Tobias foi pegar a fatia de bolo enquanto a senhorinha escolhia qual bebida queria, colocando uma fatia média em um dos belos pratinhos redondos de porcelana (que felizmente ele não precisaria levar um por um depois, pois havia uma lava-louças logo debaixo do balcão, onde ele colocava todos os pratos, colheres e xícaras sujas para serem lavadas poucos minutos antes da cafeteria fechar.
— Vou querer um capuccino com chocolate e bastante leite, então. — Ela disse por fim, enquanto Tobby colocava o bolo na frente dela e já ia começar a fazer o capuccino.
O jovem sabia fazer todo tipo de café possível, com ou sem leite, requintados e fáceis, desde os simples e puros aos que tinham qualquer coisa menos café de verdade. Capuccinos, expressos... Ele sabia fazer tudo de cor, graças a boa e velha internet, onde pesquisava as receitas e as reproduzia alí na cafeteria, descartando aqueles que não eram tão boas assim e deixando somente as melhores. John, o seu velho amigo de infância, sempre dizia que Tobby era o deus do café.
Para fazer o capuccino bastava mexer o café, junto com o leite e o achocolatado até a mistura ficar o mais cremoso possível, adicionando um pouco de chantilly e canela apenas para realçar o sabor. Tobby transferiu a bebida (que ele gostava de fazer em um copo maior para misturar com mais agilidade) para uma xícara de porcelana que fazia parte do mesmo conjunto que o pratinho do bolo. O jovem disse a si mesmo que eram os pequenos detalhes que fariam os clientes aparecer ali mais vezes, e por isso ele sempre era extremamente gentil e educado, mesmo que por dentro só quisesse retirar aquele bendito avental e sair correndo dalí.
— A senhora quer que eu leve até a mesa para a senhora? — Perguntou ele, já dando a volta no balcão, mas dona Margô o parou com um simples aceno de mão.
— Não precisa, querido. Eu sou velha, mas não tão velha. — Ela riu da própria piada, pegando a xícara com o expresso com uma das mãos e o pratinho de porcelana com o bolo com a outra, já começando a caminhar em direção à uma das mesas circulares a menos de dois metros de distância.
Tobias voltou para o seu lugar atrás do balcão, apoiando os cotovelos nele e checando as horas de vez em quando no relógio redondo que havia na parede, embora faltasse longas duas horas para ele poder ir para casa, já que o seu horário de trabalho terminaria por volta das 5:50 da tarde, e ainda não era sequer quatro horas.
Aquele dia em específico estava sendo bastante agitado, com mais clientes do que o normal (geralmente Tobias fechava o caixa com pouco mais de quinze clientes por dia, mas naquele dia haviam sido bem mais que isso), a porta era aberta praticamente de vinte em vinte minutos, embora a maioria das pessoas comprassem o café e pedissem para que fosse preparado para a viagem (isso deixava Tobby um pouquinho triste, porque além do sabor, o que tornava aquele momento ainda mais interessante era sentar e tomar o café ali mesmo naquele lugar que parecia estar parado no tempo desde a década de sessenta, usando a louçaria delicada do lugar e absorvendo a beleza retrô do ambiente sem pressa alguma).
Não demorou mais do que alguns minutos para dona Margô terminar de comer e tomar o seu capuccino, deixando o dinheiro em cima da mesa e se despedindo de Tobby com um aceno rápido e um sorriso. O jovem deu a volta no balcão para pegar o dinheiro e ir até o caixa, enfiando as notas que eram sua gorjeta nos bolsos da velha e surrada calça. Ele colocou o dinheiro na gaveta do caixa e voltou para o balcão, retirando o celular do bolso e mexendo em aplicativos aleatórios para tentar fazer o tempo passar mais rapidamente.
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A SOMBRA:
Os nós dos dedos do homem estavam feridos de tanto socar a cara de um dos guardas que o haviam encurralado na rua. Fugir não era do seu feitio, mas completamente desarmado e com duas armas apontadas para a sua cabeça, o homem não teve escolha a não ser dar no pé e sumir entre as ruelas feito fumaça. Ele precisou se conter para não rir quando viu os dois homens se separando, pois seria bem mais fácil cuidar deles daquela forma.
O primeiro policial acabou com o braço quebrado, já o segundo com alguns dentes fora da boca e o nariz quebrado também. Matar tiras não era uma boa ideia para alguém que queria continuar vivendo sorrateiramente pelas cidades, sendo invisível, sem rosto, sem identidade.
O homem estava andando por algumas ruas pouco movimentadas da cidade, que já estava começando a escurecer lentamente. O seu moletom preto estava com o capuz erguido, como sempre, além de que ele costumava andar com o rosto abaixado, não mostrando mais do que o seu queixo e os lábios, enquanto o resto do seu rosto ficava completando escondido sob o grosso capuz.
O desconhecido enfiou as mãos dentro dos bolsos do moletom, sentindo o peso do seu velho canivete suíço e das chaves do carro que ele havia comprado com uma identidade falsa, que por sinal, estava estacionado não muito longe dali, numa rua estreita e escura. Os seus planos eram de entrar naquele velho AUDI RS4, pegar a interestadual mais próxima e ser levado para outra cidade aleatória, em qualquer outro estado, mas o homem parou bruscamente ao ver uma cafeteria do outro lado da rua, ou melhor: ver o rapaz que estava fechando a cafeteria e trancando as portas de vidro. Ele vestia roupas simples e surradas, a camisa quadriculada e extremamente chamativa fez o homem querer rir baixinho, mas quando aquele rapaz que parecia ter uns vinte anos virou a cabeça levemente para o lado, a boca do homem simplesmente secou. O jovem tinha a pele de um tom claro de marrom, além de um cabelo crespo curiosamente castanho claro, combinando perfeitamente com sua pele, que era semelhante a cor de café com uma pitada de leite.
O desconhecido já havia visto inúmeras pessoas bonitas na sua vida, e fodido com muitas também, mas aquele rapaz... Aquele rapaz logo ali do outro lado da rua era a pessoa mais deslumbrante que ele já havia visto em toda a sua vida. Olha-lo fez o corpo inteiro do homem formigar em resposta, mesmo que ele tivesse preferência por mulheres (e não precisasse fazer nada além de estalar os dedos para centenas das mais gostosas caírem de joelhos para ele), aquele rapaz simplesmente... Despertou coisas inimagináveis nele, um sentimento quente, forte, obscuro.
O homem não acreditava em amor à primeira vista, mas acreditava sim em desejo à primeira vista, um desejo cru, possessivo. E querer saber tudo sobre aquele rapaz deslumbrante talvez o fizesse ficar mais um tempinho alí naquela pacata cidade. Ele não era obsessivo o suficiente para atacar o rapaz ou algo do tipo, e apesar de todas as circunstâncias, o homem se considerava alguém bastante empático.
Não haveria problemas em observar a nova razão da sua existência de longe, não é? Desde que se mantivesse escondido e longe o suficiente, ele jamais seria notado, e poderia ir embora dali um tempo, quando saciasse a sua curiosidade.