************* Capítulo 1 ************
************** Birlan *************
Havíamos andando muitas léguas, sem nos abater, pois a nossa capacidade de transmutação nos permitia vagar por meses em terras planas sem asfalto, muito menos o tradicional cascalho de cimento jogado pelo homem tínhamos nas quatro patas. Enfim, roçamos nossa dianteira e traseira em poeira e lama, pois também passamos pelas chuvas, tempestades fortes, temporais que devastaram até uma cidade. Contudo, na nossa forma de leões poderosíssimos, conseguimos resgatar todo o vilarejo do lado oeste de Sigal. Uma pequena parada de um dia, eu e meu irmão não nos sentiríamos bem se dessemos as costas para uma tribo tão humilde, que ainda nutria certas tradições. Gostávamos muito da nossa tradição, porém fomos enviados numa missão, uma que valeria nossas vidas.
Precisávamos resgatar uma fêmea humana, não era o ideal, mas era melhor do que viver os próximos séculos sem um par. Na minha época de jovem não tive tempo de desposar ninguém, diferente de Canatre, ele teve sua mulher, como muitos na nossa matilha, mas por causa da grande chacina veio as nossas perdas. Eu perdi irmãs e a nossa mãe. Canatre perdeu tudo, inclusive o filho no ventre da sua parceira. Todavia não gosto de ficar preso nessa linha temporal, isso aconteceu há cem anos atrás.
Estamos na forma de lobos, gostamos dessa roupagem, ficávamos mais atentos e raivosos a qualquer movimento, além de andarmos por lindas montanhas rochosas ou na relva alta.
Houve muitas florestas fechadas em nossa passagem, na qual tínhamos que arrancar cipos, galhos e troncos, na base dos dentes afiados de tigre para continuar a nossa peregrinação. Nosso caminho era árduo. E estava prestes de terminar quando sentimos um cheiro que nos deliciava fortemente, e não foi a panqueca com seis camadas, regada numa calda de mel, morangos em volta, e gotas de chantilly, que nos fez imediatamente se esconder atrás da caçamba de lixo, nos transformando em homens, aparentemente normais.
Respiramos com certa dificuldade, antes de falar resolvi me sentar de qualquer jeito, apoiando a coluna no metal frio e fétido.
- Está fora de forma, falei que era para termos treinando antes de virmos nessa missão.
- Estou bem maninho.
Ele me olhou dos pés a cabeça enquanto se mantinha de cócoras, apoiando as mãos na ponta da caçamba. Depois voltou observar a cafeteria de bera de estrada.
Não podíamos ser vistos assim, seria um atentado ao pudor. Os costumes dessa gente era muito estranho. Nudez era normal para um Shifter.
- Precisamos de um plano. - Consegui restaurar a respiração calma.
Me movi, levantando uma perna, apoiando o braço esticado no joelho.
- Sim, a nossa fêmea se encontra lá e na certa existe muitos machos em volta dela, o cheiro feminino deve ter impregnado uma legião de paus. p***a!
- Se acalme. - O toquei no ombro e ele automaticamente negou com a cabeça olhando o chão desgastado pelo tempo.
- Esperei tantas décadas...
- Sabe que esses homens não setem o cheiro puro que ela tem. Então não se preocupe.
Dei uma boa olhada na frente do estabelecimento, velho, decaído, feito com sobras de madeira barata.
- Como a nossa futura parceira pode viver nessa pocilga!?
Falou raivosamente, se movendo para olhar também. Ambos agora ficamos de tocaia.
- Necessitamos ir lá dentro falar com ela, pedi-la com carinho para ser nossa.
A risada dele veio, mas não me irritou, mesmo sabendo que era da forma dele rir debochadamente de alguém. Meu irmão voltou a sorrir depois de anos após anos vivendo praticamente numa caverna, em sua forma de lobo. Segundo ele queria terminar sua vida assim, na forma como sua falecida havia sido exterminada.
- Seu cabaço te impede de enxergar o óbvio meu irmão, como pode ser tão pra frente do seu tempo e tão inocente em outros aspectos?
- Sei lá, achei que com romantismo a fêmea podia vim de bom grado nos ceder o seu ventre para concepção.
- Birlan...
- Tá bom...
Avistei dois homens de porte gigante, largos, usando jaquetas maneiras com estampa de caveiras. Indo na direção de duas motos.
- Olhe... Nosso bilhete de entrada chegou.
- Boa maninho.
Esperamos eles se sentarem nas suas motocicletas, só assim saímos do nosso esconderijo, pegando os caras desprevenidos. Agarramos pelo pescoço, e com um único movimento fizemos eles dormirem. Arrastamos os corpos para detrás de onde estávamos e rapidamente buscamos tirar as suas roupas.
Agora vestidos na maneira mais radical possível, pegamos, cada um com um dorminhoco, abrimos a tampa da lixeira e repousamos os caras pelados naquela sujeira. Fechamos e fomos na direção do estabelecimento.
Assim que entramos os homens daquele lugar levantaram os olhos em nossa pessoa, pareciam amigos daqueles que mobilizamos. No entanto apenas buscamos uma mesa no canto da janela, esperando a bela formosura chegar para nos atender. O perfume dela ficava cada vez mais forte, contudo outras duas mulheres trabalhavam no local. Uma no caixa e outra limpando o balcão.
- Queridos!
Uma senhora de meia idade nos chamou, mas somente eu atendi, meu irmão estava muito nervoso, precisava se controlar ou viraria um leão aqui mesmo, diante dessas pessoas que não entenderiam que ele só estava ansioso por conhecer sua nova companheira.
- A Beatriz já vai pegar o pedido de vocês rapazotes.
Sorriu ela pra nós, fazendo o grupo de motoqueiros viraram a cara, torcendo seus narizes. Será que sentiam o odor das roupas dos seus amigos? Porque o fedor de suor realmente era insuportável. Estava louco para tomar banho na cachoeira perto da onde nossa matilha se escondia.
- Obrigado pela... gentileza, mas podia pedir a ela se apressar? Sabe como é, estamos famintos.
Um rugido veio da garganta de Canatre, obviamente que assustou as pobres pessoas, contudo, ficaram sem entender da onde veio o som, procurando feito tontos.
Quando olhei meu irmão avistei seus olhos mudando de cor, era uma tonalidade única, chegava ter um cadinho de inveja.
- Olá! Quem aqui precisa ser atendido?
A voz chegou antes da mulher, e só com isso notei meu irmão voltando ao normal. Depois de uns segundos uma deslumbrante ruiva de olhos claros, usando um uniforme que escondia suas curvas femininas, ganhou minha visão. Não pude falar nada e o meu irmão virou o rosto pra ela, contendo a perna que balançava pelo nervosismo.
- Pois não, desculpe a demora, tive que ajudar na cozinha. O patrão está louco sem o seu principal cozinheiro. Então... - Buscou seu caderninho de notas. - Qual é o pedido?
A nossa fêmea nos olhava sorridentemente.
- Você virá conosco.
Respondeu Canatre seriamente, agitando os ânimos de todos naquele ambiente. Menos da nossa Beatriz, que reagiu sorrindo abertamente.
Perfeita...