La liberté
Março, 1920
Cidade de Girassóis, interior de São Paulo.
- Ah, não acredito que você vai mesmo insistir em perder tempo com isso.- Resmungou Heloísa, apressando os passos para tentar alcançar os de sua amiga, que já estava bem a frente na calçada.
- Para mim arte nunca é perda de tempo. Sabe que desde menina sou apaixonada por quadros. E agora, que justamente inauguraram uma galeria ao lado da companhia telefônica, acha que vou perder?- Respondeu Tessa, ainda acelerada, sem tirar os olhos da entrada da mencionada galeria, assim que conseguiu alcançá-la.
- Você é mesmo impossível. Justo hoje que fomos convidadas para um lanche na casa da Marta Salsa... Sabe o tipo de festa que vamos conseguir frequentar se fizermos amizade com a filha do prefeito? Seu pai era advogado do pai dela, e eu só fui chamada por ser sua amiga, já que meu pai não passa de um reles vendedor de loja de tecidos...-
Gradativamente, a voz de Heloísa foi ficando distante, Tessa estava hipnotizada, quando as portas da galeria se abriram, e ela teve a chance de visualizar o primeiro quadro.
Prendeu o ar ao constatar que conhecia aquela imagem. Praticamente correu para dentro, deixando Heloísa falando sozinha, do lado de fora.
Ela caminhou em linha reta, indo justo para a frente, aonde estava o quadro " La Liberté guidant le peuple" de Eugène Delacroix.
Estava tão fascinada, que não evitou erguer uma das mãos, cogitando tocar a pintura, por mais que estivesse hesitante. Sobressaltou-se ao sentir a presença de alguém em suas costas, voltando-se abruptamente para trás.
Ficou desconcertada e constrangida ao se deparar com um homem, que ela supôs provavelmente estar ali para brigar com ela.
- M-me desculpe. E-eu não ia tocar. Só estou impressionada demais. Pensei que esse quadro só existisse no museu do Louvre, em Paris.- Falou a moça, nitidamente nervosa.
- Vejo que a senhorita é bastante entendida.- Falou o homem, erguendo um sorriso tão largo e radiante, que ao invés de aliviá-la, fez seu coração palpitar forte.
Tessa ainda não sabia quem ele era, mas sabia que tinha o sorriso mais branco e bonito que ela viu na vida. Olhos bem azuis, como os de um anjo, e cabelos loiros e levemente encaracolados nas pontas.
Aquela criatura era o próprio Adônis em pessoa.
- Eu confesso que amo pinturas.- Disse Tessa, após quase um minuto inteiro de silêncio.- Minha avó paterna era dona de um ateliê, e sempre me ensinou uma coisa ou outra. Inclusive, ela sempre dizia que a arte está muito ligada a história de um lugar. Como no caso dessa pintura de “ a liberdade guiando o povo” de Delacroix, ela representa uma rebelião que ocorreu 41 anos após a revolução francesa.-
- As Três Gloriosas.- Disse o rapaz, encantando com a cultura da jovem.-
- É… Ela é a representação perfeita de um pintor romancista.-
- A senhorita também é artista?-
- Não, não, sou apenas uma admiradora. Trabalho aqui perto, então não pude deixar escapar a oportunidade de conhecer a sua galeria, vim até com a minha amiga, a Heloísa.- Ao mencionar a garota da qual já tinha esquecido, Tessa voltou-se para ela, acenando.
Heloísa continuou parada no canto, um pouco desconfortável por estar em um ambiente da qual não era familiarizada.
Pior ainda… Por estar em um ambiente da qual era diferente. Todas as pessoas ali eram brancas, até mesmo os funcionários. Heloísa era uma garota n.e.g.r.a, de origem pobre. A sua sorte foi o seu pai, que conseguiu melhorar de vida, ao trabalhar na loja de tecidos de um francês.
Neta de escravos, sempre que entrava em algum lugar, Heloísa era vista como menos.
Mas além de não perder sua altivez por isso, tinha Tessa, sua melhor amiga, que brigava por ela com unhas e dentes.
- E com o que as senhoritas trabalham?- Perguntou o homem para Tessa, após fazer uma mesura educada para Heloísa.-
- Somos telefonistas. Trabalhamos em uma companhia telefônica aqui do lado.- Informou Tessa.
- Faz todo sentido. Com essa voz tão suave, tão linda… É o trabalho ideal para a senhorita. Além de que, com todo respeito, a sua aparência acompanha sua voz.-
Tessa riu, desconcertada, suas bochechas enrubescendo. Não era a primeira vez que alguém elogiava a sua beleza.
Ela sabia que era linda, e não apenas porque estava cansada de escutar aquilo, mas porque, uma vez, seu irmão mais velho, Mário, quase se meteu em uma briga por um de seus colegas, no banco em que era funcionário público, ter feito uma proposta indecorosa para ela.
Embora as loiras estivessem na moda, Tessa com seus cabelos bem n.e.g.r.o.s chamava mais atenção do que todas elas juntas. Seus olhos eram tão verdes, que nem a grama mais nova e fresca tinha a mesma cor. Seu nariz era perfeitamente arrebitado, seus lábios carnudos na medida certa, e o seu corpo… Ela era esbelta, com todas as curvas em seus devidos lugares. Assim que adentrou a galeria para ir até o quadro do qual ficou hipnotizada, todos os homens do espaço olharam para ela, inclusive o dono, que fez questão de se aproximar para cumprimentá-la.
- Mil perdões, não quis constrangê-la.-
- Não tem problema, não estou constrangida. Apenas desconcertada pelo elogio, do qual fico muito grata.-
- Tenho certeza que está acostumada a ouvi-lo. Mas não se preocupe, senhorita. Estou mais encantado com a sua cultura, com o seu conhecimento.- Ele segurou uma das mãos dela, em seguida, inclinou levemente a coluna para frente, em uma mesura educada.- Bruno Russo, sou pintor, e dono dessa galeria.-
- Tessa Bretonne, telefonista, e admiradora das artes.- Respondeu a garota, abrindo um largo e estonteante sorriso.
- Já que a senhorita é telefonista, vou mostrá-la um quadro que muito tem a ver com a sua profissão. Por favor, venha.- Bruno pousou uma de suas mãos na base das costas da moça, que antes de segui-lo, gesticulou para a amiga, informando que iria logo ali.
Heloísa não gostou muito da ideia de que Tessa fosse sei lá para onde com um desconhecido, mas não tinha muito o que fazer. Ninguém conseguia controlar a cabeça dura da sua amiga.
- Alexsander Graham Bell, em 1876, quando criou o primeiro telefone!- Falou Tessa, entusiasmada, assim que viu o quadro de longe.
- É… A princípio, apenas os homens foram contratados para trabalhar na primeira companhia telefônica, em Connecticut, em 1878, mas… Eles descobriram que seria mais vantajoso colocar mulheres para ocuparem esse lugar.-
- Sim, porque os marmanjos não se interessavam em manter a ligação por muito tempo, quando ouviam uma voz masculina do outro lado.-
- Já com uma voz como a da senhorita… Qualquer marmanjo ficaria pendurado o dia inteiro no telefone.- Bruno desviou o olhar do quadro, ficando-o em Tessa.
A jovem retribuiu o olhar de flerte, experimentando a estranha sensação de sentir um frio na barriga.
- Será que o senhor tem mais para me mostrar?- Perguntou a jovem, com a voz baixinha.
- Quantos a senhorita quiser.- Ofereceu Bruno.
Os dois passaram boas horas olhando outras obras, e debatendo sobre elas. Tessa estava encantada com a cultura e o conhecimento de Bruno, assim como ele com ela.
No final da tarde, quando já não tinha muito o que olhar, Tessa acabou acatando os pedidos de Heloísa, que estava muito ansiosa para irem até a casa de Marta Salsa, a filha do prefeito.
- Não é nada elegante chegar atrasada.- Resmungou Heloísa, assim que cruzaram o casarão da casa da outra moça.
- Ah, amiga… Ele é tão inteligente, tão culto… É o tipo de homem que eu sempre quis.- Comentou Tessa, ainda nas nuvens.
- Não acha que está indo um pouco rápido demais? Acabou de conhecer o sujeito.-
- E acha que isso importa quando se está apaixonada? Heloísa, eu tenho certeza, aquele pintor e eu fomos feitos um para o outro, e nada nesse mundo pode mudar isso.-
Heloísa até pensou em fazer algum comentário, mas as duas já tinham chegado ao jardim, aonde ainda estava sendo servido o lanche.
- Chegou atrasada, Tessa. Já estamos quase no final.- Pontuou Marta Salsa, com o semblante fechado, ficando de pé apenas para cumprimentar a sua convidada.
Ela sequer destinou um único olhar para Heloísa, que continuou ali parada, esperando ser notada.
- Heloísa e eu fomos em uma galeria lá perto da companhia. Inaugurou hoje, e como sou apaixonada, não pude perder.- Tessa voltou-se para a sua amiga mencionada, antes de se acomodar em uma das cadeiras.- Conte a elas, Helô. Conte como a galeria era bonita.-
Ainda desconcertada, Heloísa olhou de uma para a outra, sem coragem de falar. Chegou a abrir a boca e balbuciou algumas palavras, mas eram todas intimidantes demais. Fora a elas duas, haviam em torno de cinco garotas, e nenhuma parecia satisfeita com a ida de Helo para lá.
- Tessa, sabe que tenho uma grande estima por você. Estudamos no mesmo colégio, seu pai era advogado do meu pai… E sabe que sempre vai ser muito bem-vinda aqui, mas quando vier sozinha, sem essa outra.- Disse Marta, olhando de para Heloísa, ao mencioná-la.- Minhas amigas não querem sentar na mesma mesa de uma neta de ex escravos, portanto, você fica, mas a n.e.g.r.i.n.h.a vai embora.-
Heloísa precisou de muito esforço para não chorar. Não daria aquele gostinho para aquelas emproadas. Ela ficou de pé, altiva, já prestes a ir embora, quando Tessa também ficou de pé.
- Se a minha melhor amiga não é bem-vinda, eu também não sou!- Rosnou Tessa, trincando os dentes.
- Não precisa, Tess…- Heloísa sequer chegou a completar a frase, a garota mencionada a interrompeu.
- Nunca mais me convide para nada, porque depois dessa sua desfeita, dessa sua falta de educação, eu não coloco mais os pés aqui. Vem, Helô, vamos embora.- Sem perder tempo, Tessa segurou uma das mãos de sua amiga, conduzindo-a para o outro lado. Com a outra mão, ela segurava a bolsa, que sacolejava sempre que ela apertava o passo.
- Não faço a mínima questão. Tessa já não é mais uma de nós desde a morte do pai. Por sorte, a família herdou aquele casarão, a mãe vive de pensão. O irmão teve que conseguir um cargo público no banco para conseguir terminar a faculdade de direito, enquanto ela, precisou trabalhar de telefonista…- Falou Marta Salsa, as gargalhadas, com suas amigas também rindo e se divertindo.
Tessa e Heloísa, que ainda estavam no jardim, conseguiram escutar tudo. A primeira estagnou repentinamente, fazendo com que sua amiga também parasse.
- Não, Tessa, não responda. Vamos embora daqui de uma vez.-
- Claro que vamos, minha amiga, mas antes preciso fazer algo.- Tessa voltou-se para onde estavam as garotas, pisando duro com o seu salto alto.
Com a coluna empertigada, quase precisando segurar o chapéu para que a ventania não o levasse para longe, com Heloísa em seu encalço. A julgar pela forma com a que as bochechas da moça estavam rosadas, boa coisa não sairia dali. Tessa cuspiria cobras e lagartos em cima das outras.
- O que foi, Tessa? Veio levar alguns doces finos para que sua amiga e você possam comer em casa? Se quiser, mando minhas empregadas preparem alguns…- Marta chegou a levantar o pote de biscoitos amanteigados, mas Tessa, esquecendo de toda a sua educação exemplar de família tradicional, disferiu um tapa certeiro no objeto, fazendo com que todos os biscoitos caíssem no chão, e uma parte, no vestido de seda importada de Marta Salsa.
Tessa estava tão furiosa, que nem se importou por sujar um pouco uma de suas luvas de francesa rendada.
- Vão se f.o.d.e.r!- Exclamou Tessa, olhando para as cinco garotas que continuavam sentadas.- V.a.d.i.a.s!- Concluiu, mostrando o seu dedo do meio para elas.
As garotas ficaram mudas, perplexas, pálidas. Uma delas até sofreu um desmaio. Assim como elas, Heloísa também ficou lívida, sem acreditar no que tinha acabado de presenciar.
- Por Deus, Tessa! Você… Você falou palavrão, como se fosse um homem.- Murmurou Heloísa, ainda chocada, seguindo novamente os passos da amiga.
- Acredite, minha amiga, o meu gesto teria sido bem melhor visto, se não fôssemos obrigadas a usar essas luvas.- Falou Tessa, caindo na gargalhada, de repente.
- O que deu em você?- Heloísa também foi contagiada com a risada.
- La liberté!- Tessa abriu os braços, quando as duas já estavam na calçada.- A liberdade, minha querida. Aquele quadro de Delacroix mexeu com algo aqui dentro, sabe? Eu sou neta de um francês, o sangue revolucionário corre aqui, nas minhas veias. Não é inspirador como os franceses sempre lutam contra os reis absolutistas e suas tiranias? E sempre vencem! Olhe o caso do rei Luís XVI e María Antonieta. E as Três Gloriosas?-
- No Brasil não existe mais monarquia desde 1889, quando deu início à república, um ano depois da princesa Isabel libertar os escravos.- Disse Heloísa.
- Mas ainda existe a tirania. Os elitistas, aristocratas… Assim como os resquícios da escravidão.-
Heloísa suspirou, concordando com o comentário da amiga.
- Pois é… Meus pais já nasceram depois da lei do ventre livre, por isso não foram escravos, mas os meus avós… Sabe que eu sempre contava as marcas das chibatas que o meu avô tem nas costas? Lembra que eu te contava quando minha mãe trabalhava de cozinheira lá na sua casa?-
- E como poderia esquecer? Eu ficava horrorizada.-
- E hoje, Marta Salsa me lembrou que a escravidão ainda está fresca na memória de pessoas como ela.-
- É, mas agora vocês são livres. A escravidão ainda é muito recente, mas algum dia vocês vão dar a volta por cima. E você, minha amiga, cabeça erguida. Só você quem conhece o seu próprio valor. Marta Salsa não passa de uma i.d.i.o.t.a, fútil, cabeça de vento, que algum dia vai morder a própria língua.- Disse Tessa, ainda revoltada com o que escutou.
- Sabe que eu adorei quando você jogou os biscoitos nela? Se sua mãe te visse…-
- E quando eu falei os palavrões e mostrei o dedo do meio? Eu me senti tão aliviada, tão feliz. Sabe? Foi como se eu tivesse tirado um peso dos meus ombros. Estou cansada de ser sempre tão educada. Deveriam normalizar as mulheres também insultarem.-
- Até para as moças do morro isso é muito f.e.i.o. Sabe que a maioria dos parentes do meu pai são de lá, não é? Meu pai que deu sorte na vida. Arranjou um bom emprego de vendedor, foi promovido a gerente… Conseguiu comprar aquela casa em um bom bairro… Meu irmão vai se formar médico… E eu, com sorte, vou fazer um bom casamento.-
- É só isso o que quer para si, minha amiga? Um bom casamento? Digo, você é inteligente, bem estudada, pode ter um bom emprego…-
- Prefiro me dedicar ao lar. Sabe? Não consigo me identificar com as poucas mulheres que trabalham fora, como se fossem homens. Digo, estou de telefonista, mas é temporário, não pretendo continuar quando me casar.-
- Então só me resta torcer que encontre o seu objetivo e seja muito feliz. Temos pensamentos diferentes, mas sempre vou te desejar o que for melhor para você.-
- Eu sei, querida. Que sorte tenho eu, por ter uma amiga como você.- Heloísa segurou uma das mãos de Tessa, que retribuiu o aperto, em solidariedade.
- Eu quero ser independente, viajar o mundo… Mas também quero viver um grande amor. E sabe? Hoje, naquela galeria, ao conhecer o Bruno, tive certeza que encontrei o meu.- Disse Tessa, com entusiasmo.