Aniversario
Acordo sobressaltada, sinto o mesmo suor frio e o meu corpo arrepiado como a maioria das noites nestes últimos 7anos... por mais tempo que passe não consigo esquecer o que me aconteceu, posso dizer que aprendi a lidar com a dor, com o nojo e com a culpa... é estranho.
Levanto-me e vou até a cozinha beber água, bem … moro num open space, por isso nem ando muito, sala e quarto no mesmo sítio, kitchenette logo ali a mão e um wc ... é o suficiente para mim, e neste momento é o onde me sinto bem.
Estamos em Setembro, faço 20 anos depois de amanhã... está tudo calmo a esta hora da noite, como moro em Aveiro, nesta altura do ano vê-se turistas por toda a parte.
A chamada Veneza Portuguesa é um charme, está próxima do Porto e de Coimbra e ainda mais perto do mar. Tem praias, construções que só se vê aqui, ótimos restaurantes de frutos do mar e passeios bastante agradáveis. A maioria vem fotografar as casas da Costa Nova, aquelas casinhas as riscas que mais parecem sair dum cartão postal. Andar de moliceiro pelos canais de Aveiro, visitar as salinas, curtir as praias, a zona histórica da cidade e provar as nossas iguarias típicas.
Vim para aqui morar aos 18anos, apenas sai de casa e fugi... não consigo esquecer o meu passado, escolhi simplesmente apaga-lo, costuma-se dizer que olhos que não vêm, coração que não sente... Mas não é bem assim, é tudo engano...
Volto a deitar-me, as recordações daquela noite são pesarosas, não dá para apagar... ainda sinto o cheiro amendoado no meu corpo, um bafo alcoolizado, umas mãos frias e a brutidão com que fui violada, era apenas uma criança, como pode alguém fazer aquilo a uma menina de 13 anos, com tantos sonhos e medos, uma menina que ainda era virgem e nem sonhava com os homens dessa forma?!
Não entendi durante muito tempo, aliás, achei que a culpa tinha sido minha mesmo sem encontrar o motivo, talvez me tenha rido demais naquela noite, talvez a roupa fosse muito curta, talvez parecesse mais velha, talvez tenha feito algo de m*l???
Com o tempo e com os tratamentos e ajuda do psicólogo compreendi que não... afinal nem toda a mulher que usa roupas curtas ou provocantes é prostituta, nem todo o homem musculoso é ignorante, nem todos os que usam óculos são inteligentes, nem todos que usam gravatas são doutores, nem todos que têm tatuagens ou piercings são drogados, mas nesta sociedade todos que julgam pela aparência não têm o mínimo de caracter.
Mas mesmo assim o pior é que, eu simplesmente estava numa festa de final de ano na casa dos meus pais, com um vestido simples e as riscas, nem curto nem comprido, apenas uma criança a divertir-se... quando ficou tarde, os adultos ficaram a festejar e eu … eu simplesmente fui dormir... não consegui dormir... apenas entrei e segundos depois alguém apareceu por trás, agarrou-me, foi rápido, violento, não consegui gritar, tive medo, senti dor, queria a minha mãe... eu só queria a minha mãe.... chorei e tentei soltar-me, mas aquela mão tapava-me a boca de tal forma que pensei que ia morrer. O medo, o nojo, a dor... fechei os olhos milhares de vezes para acordar, mas não era UM pesadelo, e quando senti algo forte a rasgar-me chorei, gritei, mas ninguém me ouviu...
Cresci a ouvir que iam estar sempre ao pé de mim, que nunca me iam deixar nada de m*l acontecer, até no parque não saiam de ao pé de mim, mas naquele momento senti que era tudo mentira, os meus pais não estavam ali, e alguém que eles deixaram entrar, me estava a fazer m*l, me estava a agarrar com tanta força que me fez querer morrer...
Senti-o a lamber-me a cara quando um líquido saiu pelas pernas, fiquei ali de costas deitada na cama a ouvi-lo a apertar as calças, não olhei para trás, fiquei ali até a porta fechar-se. Quis levantar-me, mas tremia tanto que não conseguia sair do mesmo lugar... a dor que sentia era gritante, o medo incessante e o nojo … aquele nojo que sentia em mim era inexplicável.
Fecho os olhos, respiro fundo para afastar aquelas lembranças... não sei quem foi, nunca soube, mas aquilo que senti é que passado uns tempos sentia a dúvida na cara dos meus pais... nenhum amigo ou familiar que aí estava teria sido capaz... será que tinha sido um empregado???
A preocupação era que, não podia ser ninguém que eles conheciam, o que eu fiz para provocar alguém assim? Estaria bêbado??? Pois é... agora eu sei que não fiz nada, mas posso dizer com toda a certeza que aquele dia destruiu todos os meus sonhos e mudou toda a minha vida.
A Mia que sonhava em ser advogada e ir para a faculdade, que acreditava que ia conhecer o seu príncipe encantado, que adorava ler romances e historias de princesas morreu naquele dia, quando entrou no hospital e tiveram de me mexer, tirar fotos as nodoas negras de ele tanto me forçar a abrir as pernas, que se sentou em frente a dois policias e o mais velho não quis saber, era tudo como se fosse normal o que estava ali a acontecer, enquanto o mais novo me olhava com pena... é verdade que ainda tentou ajudar, mas não valia de nada... a minha alma já tinha fugido naquela noite...
É difícil olhar para mim como aquela menina ingénua, que tinha medo de tudo e só cumpria regras, agora, sete anos depois, eu sou a MIA, mas uma guerreira, que luta por si mesma sem esperar que ninguém a acuda. Não... não sou advogada, não estou a estudar, apenas trabalho num bar a noite, quinta, sextas, sábados e domingos... canto e sirvo as mesas quando tem de ser, não recebo muito, 1000euros para mim é o suficiente até porque esta casa e o meu carro comprei com o fundo que os meus pais tinham para mim e levantei aos 18anos... nem tiveram a audácia de me perguntar o porquê de estar a sair de casa...
Enfrento todos os dias os meus medos quando encaro aqueles homens ao final da noite meio alcoolizados, não ando por caminhos fáceis, as vezes divirto-me demasiado, entre álcool e algumas drogas as vezes esqueço-me do meu passado...
Acordo as 15h, esqueci-me que tenho de ir comprar as bebidas para amanhã, que nervos, coloco umas calças rasgadas um moletom, prendo os meus cabelos pretos e lisos com um elástico, passo um lápis pretos nos meus olhos bem escuros, lavo os dentes e ajeito a cama e estou pronta.
Entro no elevador porque moro no 6 andar, sinceramente gosto de correr, mas tenho maioritariamente preguiça... alguém grita para segurar o elevador e assim o faço.... quando vejo a entrar olho automaticamente para a sua cara... o meu coração bate fortemente, tento esconder o rosto, mas da mesma forma que o conheci ele provavelmente irá conhecer-me.
Não me lembrava dele assim, alto, moreno, olhos cor de mel, corpo definido... naquela altura era bem mais magro e nem barba tinha... era uma miúda, a vergonha que sentia era enorme, como me iria lembrar bem dele se não fosse a minha memória fotográfica excelente... Mas o seu olhar, aquele seu olhar de pena ficou sempre gravado na minha memória. Como é que ele se chamava????
-Obrigado.... Sou o Miguel... já nos conhecemos???
Não disse nada, apenas fiquei quieta no meu canto, não queria se quer que travássemos conhecimentos ou que se tornasse meu amigo...o que estaria ali a fazer??
-Desculpe -sentia-o a tentar olhar-me nos olhos enquanto me desviava sem sucesso- tenho mesmo a sensação que já nos cruzamos...
Para quê fugir de algo quando esse algo acaba sempre por me encontrar durante a noite ..
-Sou a Mia, acho que nos cruzamos uma vez a 7anos atrás...
-Mia??? A menina....
Bolas porque é que em tanto sítio possível tinha-me de cruzar logo com um dos policias que recebeu a queixa naquele maldito dia....
-Estás diferente... crescida... Uau, cheia de piercings e tatuagens... mudei-me para o 6-C....
Olhei-o com uma cara enjoada, falava como se estivesse engasgado, estava realmente atrapalhado, sério que iria ter de aturar isto? Ainda por cima foi mesmo morar para o apartamento ao lado do meu... será que não entende pelo meu silêncio que não quero falar???
Finalmente o elevador para e eu saio, saio o mais rápido possível, colocando os meus fones nos ouvidos, quando a porta do prédio abre e sinto que ele está atrás de mim, apresso o passo para atravessar imediatamente a estrada e entrar no meu carro, mas a pressa muitas das vezes é inimiga da perfeição e não reparei no carro que vinha na minha direção até sentir o meu braço a ser puxado com imensa rapidez e ficar colada e face a face com Miguel...
Abraçou-me com força conforme bati com o meu corpo no seu, fixamos o nosso olhar, uma sensação estranha percorreu a minha pele, ele abanou a cabeça como se estivesse baralhado, afastou-se imediatamente de mim...
-Se calhar devias de ter mais cuidado, que idade tens tu que nem sabes olhar para a estrada e ver se vem algum carro??
-Eu? Eu vi bem o que estava a fazer e se não me tivesses puxado eu conseguia passar... tenho 20 anos e sei bem cuidar de mim... SR guarda...
-Não sou guarda... e isso é uma péssima forma de agradecer a alguém que acabou de te salvar...
-Salvar???? Para a próxima mete-te na tua vida que aqui não há nenhuma donzela em risco...
Os meus olhos estavam cheios de raiva e nem percebia bem o porquê, eu não preciso dele para nada, não preciso de ninguém, as pessoas não são o que parecem apenas fingem preocupar-se e quando precisamos abandonam-nos....
o que se está a passar comigo, ele tinha-me salvo a vida e eu em vez de agradecer estava ali a gritar com ele...
-Sua…. gnomia mimada....
-Seu…. abelhudo enjoado...
Viramos as costas um ao outro e seguimos em frente, ambos irritados, cálculo, quando percebi que estava a ir na direção errada virei-me novamente e vi-o a fazer o mesmo, passamos lado a lado, ignorei aquele seu olhar altivo e atravessei a estrada, depois de olhar, e entrei no meu carro.
Mas quem é que ele pensa que é GNOMIA???? O que isso significa afinal????
Estou irritada desde que tive aquele encontro infeliz, quando chego a casa e não o encontro pelo caminho fico, de certa forma, aliviada.
Tento preparar tudo, afinal faço anos amanha e convidei umas amigas para jantar e festejarmos a partir da meia noite, amanhã já sei que vou ouvir dos vizinhos que é quarta feira e dia da semana por isso não devíamos ter feito barulho... mas como amanha vou trabalhar tem de ser hoje.
Não comprei muita comida, mas álcool não falta! 20ANOSSSS... quem diria. Tomo um banho, visto um vestido preto, manga cava colado e acima do joelho...solto o cabelo, passo um lápis nos olhos apenas, não uso maquiagem nos dias que não trabalho...
Por volta das 20h chegam todas juntas, um abraço incrível, Amy, Sara, Kathy, todas elas tão diferentes, mas os meus pilares. Conheci-as quando me mudei para cá, elas já se conheciam e um dia quando peguei no meu skate e resolvi ir curtir um pouco, esbarrei com uma delas a tentar subir num... Claro que me ofereci para a ensinar, até que descobri que era para impressionar um rapaz. Rapidamente começamos a sair e Amy além de aprender a andar de skate começou a namorar com o Peter... ganhei três amigas incríveis e nunca mais nos largamos.... Kathy a minha menina ruiva que tal como eu adora cantar, com aqueles cabelos de fogo é das miúdas mais sexy da cidade, Amy a loira destemida que quer ser medica e tem sido das melhores na faculdade, Sara a menina de cabelos castanhos e ondulados, trabalha numa empresa como administrativa e finalmente assumiu-se como lésbica perante todo o mundo... e eu... Mia... a menina dos segredos improváveis, tatuagens e piercings, trabalho no bar e rebelde .. pelo menos é o que todos pensam.
Jantamos enquanto nos rimos e bebemos imenso, adoro estas três, fazem sentir-me parte de algo, parte dum mundo diferente do qual não acredito que existe. SHOTS, perdemo-nos nos shots a partir das 23h e levantamos a música o mais alto que conseguimos, a meia noite gritam tão alto que até acordaram todos os demónios no inferno.
YEAAAHHHH 20 ANOSSSSSS....
Vendam-me os olhos, tocam a campainha, ouço as gargalhadas delas as três, tiro a venda dos olhos mesmo deixando-as chateadas, abro a porta e nem acredito quando vejo quem está a minha frente....
Abro a porta e quando vejo um homem parado, com cara emburrada... com umas calças de pano largas, uma t-shirt que estava colada ao seu corpo duma maneira extremamente sensual... olhei-o de alto a baixo, estava tão bêbeda que nem pensei no que estava a fazer. Kathy apenas o puxa, para dentro fazendo-o ir contra mim, os nossos olhos vidrados um no outro, o seu corpo colado ao meu e as suas mãos na cintura fazendo com que nenhum dos dois caísse. Kathy pulava e gritava.
-O stripper chegouuuuuuuuuuu … quem teve esta bela ideia....
As meninas entusiasmadas giravam a sua volta, querendo que ele dançasse para mim, pela primeira vez vi um sorriso gozão na sua cara.
-NÃO, NÃO, NAO.... ele não é... ou és???-Olhei para ele a espera duma resposta- Tu és o striper???
-NÃO...
As minhas meninas desiludidas acalmaram-se, afastaram-se com aquelas Caras de parvas como se estivessem a passar despercebidas, sorri ao imaginar a vergonha que estava a passar, caminhei para fora de casa, ficámos no corredor...
-Miguel... no que posso ajudar...
Encostei-me a parede, um pouco por estar zonza, mas para poder aprecia-lo de todas as formas... ele era bonito, mesmo muito bonito...
-Vim pedir se dá para baixar a música, as paredes até tremem e eu estou a desesperar ..
-Hummm... não gostas de música é isso?
Sinceramente não me estava a apetecer aturar queixas dos vizinhos, tinha conseguido perder todo o interesse nele naquele momento...
-Não é isso, mas estamos a meio da semana e sinceramente há quem goste de dormir...
-Claro... lamento... mas... eu só faço aniversario uma vez por ano...
-Ahhhh claro... Não sabia... parabéns... mas...
-OK... Já entendi... E também acabaste de estragar o ambiente... Vai dormir que vou acabar com a festa...
-Não Mia... Não foi por mal.… eu não sabia...
Entrei dentro de casa e fechei a porta na sua cara, fiz questão de falar alto...
-Meninas acabou a festa que o meu vizinho polícia precisa de dormir... -Baixei a música e ficamos as três a rir- De tantos jeitosos que poderiam vir para cá viver, tinha de vir logo o mais chato de TODOS...
Nem 3 segundos e ouvimos a porta da sua casa a bater, sabia que o tinha irritado e isso para mim era o suficiente.
Não demorou muito para que o som da música desligada fosse substituído pelos nossos risos, abrimos mais uma garrafa e só paramos quando o motorista de Amy chegou para as levar a casa, 4 doidas, mas não irresponsáveis... Desço com elas, despeço-me e mesmo meio tonta sigo no elevador... e quando chego a entrada da minha porta lembro-me “ MERDAAA as chaves”, irrito-me facilmente e entre socos e pontapés na porta, nada a abre, desisto e caio no chão com as costas apoiadas...
Só faço porcaria e isso deixa-me doida, acordo todos os dias a pensar que amanhã vou ser melhor, mas nunca consigo. Não choro, não o faço a muitos anos e não vai ser hoje que o vou fazer. Ouço a porta do lado da minha a abrir e vejo uma cabeça de lado a olhar... tento ignorar.. Mas Miguel apenas sai e encara-me. Ficamos assim alguns segundos.
-EH.. A praga que me lançaste fez efeito... esqueci-me da chave lá dentro.
-Não perco tempo com isso... Espera que vou-te abrir a porta.
Fiquei quieta, tratei-o tão m*l e mesmo assim ele estava disposto a ajudar-me, não merecia, não queria ter de admitir que no fundo não presto e não mereço a sua ajuda, eu devia conseguir resolver sozinha, mas bebi demais para isso...
Miguel sai de casa, estica-me a mão e ajuda-me a levantar, sem se dirigir a mim e deixando-me ao seu lado, fico imóvel a vê-lo a tentar abrir a porta, com todo o cuidado do mundo, sem sequer me aperceber estava fixa nas suas costas, no seu corpo delicioso, na sua postura, era um homem bem sensual, não poderia dizer que o mais lindo do mundo, mas sei lá, algo nele mexia comigo... as suas mãos grossas, as suas costas trabalhadas, a sua voz rouca e aquela segurança tremenda que transmitia deixavam-me nervosa.
Senti o seu olhar no meu exatamente na mesma altura que ouvi o estalinho da porta a abrir ...
Entrei incomodada, ficamos os dois frente a frente com um silencio absurdo..
-Obrigada pela ajuda...
-De nada... - deu de costas para ir para sua casa- tem mais atenção para a próxima.
-Miguel? - Olhou para mim e deu dois passos na minha direção ficando bem perto, nem sei porque o tinha chamado, apenas me ocorreu...- O que raio significa Gnomia????
O seu sorriso ecoou no corredor silencioso, quis rir, mas não queria mostrar o quão frágil poderia ser, apenas ergui a sobrancelha e fiquei seria...
-Gnomia... bem... és bem pequena, por isso... sei lá.... pareces uma gnomia...
-Não sou assim tão pequena tá?!
-Ao meu lado és... até manhã Gnomia.... e feliz aniversario....
Porque raio tinha a sensação que acabara de encontrar alguém o suficientemente desafiador e que não me vai deixar sossegada? Por norma sou eu que causo problemas, mas neste caso, é como se ele tivesse destampado na cara um belo sinal de perigo...
-Obrigada.... SERIO...
-De nada Gnomia... de nada...