Capítulo 02

2419 Words
— Tammy... — Chamou Luciana, me acordando do transe acerca dos dois clientes bonitões. — Laura está te chamando. Laura. A nossa terrível e péssima fiscal de caixa do turno da noite. Era uma mulher amargurada e que estava sempre de cara fechada, cujo rosto parecia sempre franzido numa expressão de asco e repugnância. Me impressionava que fosse casada com um policial bastante conhecido na cidade por seu bom humor e bondade, virtudes que sua c***l esposa não tinha ideia do que seria. Era de conhecimento geral de que eles estavam casados há mais de vinte anos, e que nunca tiveram um filho. Ninguém ainda sabia se Laura não podia, ou não queria, mas na opinião de outros — e eu me incluo nessa —, deveria ser um livramento não ter uma mãe daquele tipo. Laura sempre dizia que considerava a sua equipe de operadores de caixa como os seus filhos, e a experiência era traumática demais para pensar numa criança sendo submetida a aquilo. Ninguém sabia muito bem porque ela era daquela forma. Os poucos puxa-sacos que conseguiam subir na estima da mulher eram também tão raivosos e desnecessários quanto ela própria, e quase nunca citavam o nome de Laura para que ela não escutasse e pensasse que era alguma ofensa. Havia uma funcionária em particular da qual ninguém suportava. Seu nome era Elisa. Ela tinha pelo menos uns quarenta anos nas costas, casada com um dos funcionários do açougue, e vivia pelos cantos fofocando com Laura sobre as meninas mais jovens do supermercado. Ela sempre parecia muito ofendida ao ver que alguma delas tinha cortado o cabelo ou feito as unhas, e fazia de tudo para que Laura encontrasse um motivo para repreender as garotas. Todos os anos, em épocas comemorativas, ela se despedia de cada uma dessas garotas das quais vivia falando m*l, pedindo desculpas por qualquer coisa e desejando que elas tivessem boas festas. Graças a rapidez com que as fofocas corriam pelo supermercado, estas mesmas meninas sempre sabiam da falsidade de Elisa e retribuíam as felicitações, fechando a cara assim que ela se afastava. No momento em que eu me encaminhava para a recepção do supermercado, que nada mais era do que um balcão diante do guarda volumes e de frente para o setor de eletrodomésticos básicos do estabelecimento, era Elisa quem estava se esticando no balcão para fofocar com Laura. Ela estava olhando para os lados, afim de se certificar de que ninguém estava ouvindo, mas não notou que eu estava chegando, e levou um susto quando eu simplesmente me materializei ao seu lado. — Ah, Tamara! — gritou ela com exasperação. — Que susto, menina. Ah, saí da frente, vai. Preciso cuidar das minhas plantas. Elisa sempre foi operadora de caixa, mas ter contato direto e pessoal com Laura lhe deu alguns privilégios, e um deles era simplesmente não ficar no caixa. Ela passava as suas sete horas de trabalho cuidando das flores vendidas no hortifruti, porque todo mundo dizia que não havia ninguém mais cuidadosa e responsável do que ela para ficar com aquela função. O que, na verdade, todo mundo concordava era de que ela sempre foi insuportável e tê-la como colega de trabalho era algo que todo mundo evitava. Então, por mais nítido que fosse a sua vida privilegiada dentro do supermercado, ninguém ousava reclamar. Até porque ninguém queria que Elisa estivesse fungando em seu cangote todos os dias. E a vida como operador de caixa já era complicada e motivo de terapia, ninguém precisava pagar por mais remédios de ansiedade por ter Elisa falando o dia todo em nossa cabeça. Ela alegremente passou pelos caixas com seu borrifador de água, testando a paciência de cada colega em seu caminho, e se dirigiu para o palete que se erguia com pequenos vasos de flores chamativas. — Me chamou, Laura? — perguntei obedientemente. Quando me aproximei do balcão da recepção, os três funcionários que se mantinham ali dentro — a fiscal de caixa, a recepcionista, e o ajudante de fiscal — pararam de rir de alguma piadinha interna que com certeza foi dita por Elisa antes que ela saísse, no que desconfiei que fosse de algum operador de caixa. Eu não me surpreenderia se estivessem falando de mim, porque apesar de não ser mais uma novata no emprego, algumas pessoas se fechavam em grupinhos e sempre menosprezavam aqueles que não se encaixavam. Eu nunca me encaixei, nunca quis ser o padrão de amizade para eles, e me recusava todas as vezes em que pudesse evitar sair para confraternizar com aquelas pessoas. Naquele momento em que eles notaram que eu estava muito próxima, a conversa mudou bruscamente de assunto, e Laura me olhou dos pés à cabeça, com cara de nojo. Não foi uma reação que demorou muito, porém, eu sabia que ela tinha visto desde as minhas unhas com esmalte descascando, até os fios de cabelos que se soltavam em minha nuca. — Chamei — ela disse num tom de falsa simpatia. — O gerente quer falar com você. Eu engoli em seco. Muito dificilmente eu era chamada na sala do gerente, na verdade, eu sequer fui chamada alguma vez se não fosse para uma reunião em grupo. Sozinha, aquela era a primeira vez, e não pude deixar de me sentir tensa conforme Laura me guiou para a pequena sala abafada, que ficava ao lado da sala de entregas, onde me sentei numa cadeira diante da mesa do corpulento homem. O gerente estava falando no celular quando chegamos, e desligou rapidamente, apressando-se para guardar o aparelho no bolsinho da sua camisa social. Ele tinha cabelos grisalhos e olhos claros que só faziam julgar, e naquele momento se demorou bastante em apenas me olhar e mandar Laura fechar a porta. Eu comecei a sentir uma onda de alerta se espalhando pelo meu corpo, no que a sensação estranha permaneceu em meu estômago, como se eu tivesse comido algo estrago. O gerente perdurou com aquele olhar sobre mim, analisando-me, querendo saber quem eu era apenas com aquela vistoria indiscreta. Laura se sentou na cadeira ao meu lado, e assim como o gerente, ela desceu e subiu o seu olhar em minha direção, num silêncio carregado de acusações não ditas. Então eu compreendi que estava ali para ser acuada. O motivo ainda não sabia. — Eu vou falar sem rodeios, Tamara — disse o gerente, tirando os óculos para limpá-los na camisa social cinza. Ele se recostou na cadeira giratória, e o encosto estalou contra o seu peso. — Você é uma das melhores funcionárias que temos aqui. Desde a sua integração já sabíamos que não teríamos problemas. E sempre vamos valorizar pessoas assim, que querem crescer. Mas também já deve estar sabendo o que aconteceu no domingo dessa semana, durante o expediente. Eu anuí com a cabeça, sem ousar demonstrar que estava com medo. — Encontraram notas falsas entre as retiradas de dinheiro — murmurei. Arnaldo, o gerente, concordou. Ele lançou um olhar na direção de Laura, e eu também olhei para ela, notando uma conversa que os dois estavam tendo apenas com gestos. O gerente pigarreou, e minha atenção retornou para ele, que já tinha terminado de limpar seus óculos e agora me observava com a visão ampliada. — Sim, encontramos notas falsas num valor bem alto, e você sabe que não podemos deixar este caso chegar até a diretoria e que temos que resolvê-lo internamente. — Como? — Alguém tem que pagar esse dinheiro. E não serei eu, porque eu não estava no caixa. Não vai ser a Laura, porque ela não estava no caixa. Sabe quem estava? — Eu — respondi seca. — Você — ele repetiu, cruzando as mãos no colo. — É uma situação complicada, Tamara. O seu caixa foi o último a ser fechado... Veja bem, se tivesse ocorrido ontem, na sua folga, não teríamos motivo algum para culpá-la, mas não tivemos nenhum acontecimento parecido na noite passada, e, coincidentemente, era a noite em que você não estava ali. Além do mais, você não tem tanta experiência assim... É fácil se confundir naquela ansiedade para ir embora, entende? Entendo que você é um grande filho de uma p**a, quis gritar, mas simplesmente concordei com a cabeça, sabendo que todo o teatro já estava armado desde que cheguei para trabalhar naquela tarde. Eles precisavam de um i****a para levar a culpa pelos próprios erros, e a escolhida fui eu. Porque eu sempre era a i****a escolhida no jogo dos palitinhos para se ferrar. A minha vida inteira foi assim, e ali não teria de ser diferente. — Você pode ter dois anos trabalhando conosco — começou Laura, forçando uma voz amigável, mas o nojo em sua cara não podia ser escondido. Ela até mesmo estava evitando me olhar nos olhos, porque mentir olhando nos olhos não era uma coisa que qualquer um sabia fazer. Tinha de ser muito frio para conseguir manipular alguém sem a quebra do contato visual. Havia apenas uma única pessoa naquela sala que poderia fazer aquilo, e não era Laura e nem Arnaldo. — Mas é fácil acabar cometendo erros. Eu também sempre faço algo errado e tenho que arcar com as consequências. Mais uma vez eu estava vendo a injustiça sendo feita, e não podia falar nada. Não havia ninguém naquela sala para me ajudar, e estava entre duas pessoas que poderiam assinar a minha demissão, e mais uma vez, não podia pisar em falso diante de uma pandemia e uma crise tão grande. Enquanto eu não pudesse ter outro meio seguro de ganhar dinheiro, eu não podia deixar que as pessoas conhecessem o meu pior lado. Eu não podia fazer mais do que abaixar a cabeça e aguentar. Eu era uma refém das minhas próprias necessidades financeiras, e quis gritar de ódio a cada segundo que aqueles dois seres humanos malditos tentavam me persuadir. — E você também sabe que só entrou nessa empresa por conta da nossa cota racial — disse Arnaldo com tanta calma que nem parecia estar me ofendendo. — Não quero ofender, mas, com a sua cor... Deve ser difícil arranjar qualquer emprego. Mas ele estava me ofendendo entrelinhas, evitando com excelência que eu percebesse o racismo em suas palavras odiosas. Ele poderia ter me chamado de suja, e não teria me ofendido tanto. Porque eu sempre senti que era tratada de maneira diferente por parte do alto escalão da empresa. E por um bom tempo eu achei que fosse por ser a garota nova. Mas eu já estava ali há dois anos. Muitos entraram depois de mim, e nenhum deles passou por metade do que eu passei. Ninguém recebeu metade dos olhares de nojo e desdém que recebi. Estava dizendo que a cor da minha pele garantiu o meu emprego, e não o meu esforço de levantar cedo e chegar tarde em casa, de dar o meu melhor e ser o meu máximo em qualquer circunstância, de receber um salário que m*l pagava minhas contas e não me dava luxo algum. Isso me deu ódio, mas eu fui obrigada a reprimir, engolir, e ficar em silêncio conforme Laura estendeu para mim uma folha onde se dizia que trezentos reais foram dados de falta no meu caixa, porque legalmente eles não podiam descontar do meu salário por pegar uma nota falsa, mas dizer que fui burra o suficiente para perder trezentos reais era mais fácil. — Você não é obrigada a assinar que o erro foi seu, mas isso pode ter consequências no futuro — ela disse, me entregando uma caneta. — Pense no quanto deve estar sendo difícil para as famílias que não encontram um emprego nessa pandemia. Você não quer fazer parte das estatísticas, quer, Tamara? Não quer fazer parte da lista dos desempregados por uma consequência tão boba quanto se enganar. Consequência esta que seria a minha demissão. Não era a primeira vez que eles arranjavam motivos para mandar alguém embora ou fazê-lo pedir suas contas. E mesmo que eles tenham me chamado até ali para fazer aquele discurso ridículo de estavam me dando uma escolha, eu sabia que não sairia dali sem trezentos reais descontados do salário ou a demissão assinada. Eu não tive escolha alguma, me peguei assinando o papel, e do mesmo modo que entrei calada, eu saí muda. Voltei para o meu caixa e fiquei quieta, por mais que Jordana insistisse em saber porque eu estava pálida e gelada, eu não falei. Ela sabia mais do que ninguém o quanto ser chamado na sala do gerente não significava boa coisa, principalmente quando um boato de que uma grande quantia de dinheiro em falta seria jogada nas costas de alguém. Tinham tentado fazer isso com ela alguns meses atrás, mas ela realmente teve culpa, e mesmo assim se recusou a pagar. Ela foi suspensa por três dias, e havia muitos boatos de que era a próxima na lista de demissão. Jordana não se importava com nada. Tinha vindo de um lugar muito longe e não via a hora de voltar. Tinha uma família bem estruturada e que a apoiavam em qualquer decisão. Ao contrário de mim, que não tinha ninguém e não estava muito satisfeita com a ideia de depender apenas do estágio no escritório. Fiquei talvez uns cinco minutos em choque, interpretando o racismo e a falta de humanidade daqueles dois, e no fundo, desejei por uma coragem insana que me faria jogar tudo pelos ares. Eu sabia que havia muito ódio em mim, que aquilo era como uma granada, e um dia explodiria..., Mas ainda não era suficiente. Ali, eu ainda era uma nova mulher tentando viver a vida sem muitas pretensões, querendo esquecer o passado e suas limitações. Eu ainda tinha sonhos e corria atrás deles da maneira mais honesta possível. Eu ainda não tinha sido corrompida por toda a maldade que havia em meu coração, por mais que ela sempre estivesse ali, me cutucando para agir depressa. E, mesmo com a cabeça pesada pela chateação daquele dia, e as humilhações que nunca pareciam chegar ao fim, eu consegui recuperar um pouco da minha dignidade e tornei a reclamar com os meus colegas, evitando ao máximo falar sobre o ocorrido na sala da gerência. O pior do que eu poderia me tornar ainda estava por vir, e eu não sabia disso quando me distrai daquela chantagem emocional, e me peguei pensando no último cliente que atendi, achando que por pior e mais difícil que a minha vida fosse, ainda havia pequenos prazeres que me motivavam a continuar.
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