o pior dia de todos
G A B R I E L
Meu pai é bandido.
Se você pensou em um cara da favela, com uma arma na mão, n***o, bem, me desculpe, mas você está absolutamente errado (e, hã, você é racista também, sinto muito), porque meu pai é um cara branco, alto, com dinheiro pra c*****o e um sorriso cínico: ele é prefeito da cidade de Ribeirão. Como se não bastasse tudo que já foi listado, minha família inteira é da igreja; acha que acabou por aí? Só que não. Hoje à noite irá se concretizar o que estou chamando de o pior dia da minha vida. Só me restam algumas horas antes do desastre.
- Eu ainda não estou acreditando que você vai realmente fazer isso - Laura me olha, decepcionadíssima.
- Juro que tentei dizer não. Centenas de vezes. Milhares de vezes.
- Zilhões de vezes - nós falamos juntos, depois rimos.
- Fala sério. Não deve ser tão difícil assim falar não pro seu pai. Dentro de casa ele não é o prefeito, é só seu pai.
Errada. O meu pai é o tipo de pessoa que não te deixa esquecer nem por um segundo tudo que ele é/já fez de importante na vida.
- Pai, passa a manteiga, por favor?
- Claro! Qualy para o meu filho querido - meu pai disse ontem, num café da manhã em família, um completo milagre - Sabia que eu estive com um dos donos da marca esses dias? Saiu matéria no jornal e tudo, mas vocês jovens não leem nada além de porcarias no celular - ele sorriu, eu fingi demência - Enfim, privilégio para poucos, é claro.
A grande questão é: eu tentei, realmente tentei, falar sobre não me batizar com meu pai. Mas é impossível conversar com ele. Até cheguei a orar, tipo, pelo amor de Deus, Deus, eu não quero me batizar, mas ele não me ouviu, como sempre. Minha mãe e nada é a mesma coisa, infelizmente, pelo menos se tratando de assuntos religiosos. Depois que meu pai chegou em nosso nível social atual, o status dele dentro da igreja subiu, tipo, 300%, e hoje ele é quase uma segunda esposa do pastor, só que homem (ou seja, com real visibilidade). E é aí que chegamos na parte dele ser bandido. Quer dizer, fala sério, político ganha bem, ok, mas o meu pai ficou rico demais em um espaço muito curto de tempo. Claro que o lance da igreja também deve ajudar, visto que aquele lugar é um ótimo disfarce para lavagem de dinheiro, por exemplo, mas, sinceramente? Eu não faço ideia do jeito como esse homem faz pra roubar tanta grana. Esses dias eu até levei Laura, que é uma típica hacker de ensino médio de seriado americano, lá em casa, para invadirmos o notebook do meu pai, mas não encontramos nada além de um histórico repleto de p*********a. Para quem estava esperando descobrir um super esquema de corrupção, ver um monte de acesso ao xvideos foi tipo "ah, tá".
- Tu que pensa - eu digo balançando a cabeça quando o professor de matemática entrega os nossos testes corrigidos um a um. Como Laura estava uma cadeira a frente da minha, recebe o seu primeiro.
- c*****o, nove vírgula cinco. Eu sou a deusa da matemática.
- Meio ponto a mais do que o último - sorrio, mostrando o meu 2,5 em vermelho para ela.
- Você me envergonha, Gabriel. Não tem motivo para tirar uma nota m***a dessas, até porque você estuda comigo e eu sou uma ótima professora.
- E eu sou o quê? - o professor, Leonardo (o qual chamamos de Leogato), se intromete em nossa conversa, de repente.
- Um ótimo professor, como eu estava dizendo - Laura ri - E que era inadmissível tirar uma nota tão baixa como dois vírgula cinco tendo alguém tão bom em ensinar números como o senhor.
- Olha, Gabriel - o professor sorri, mas fica sério rapidamente - Se você quiser a gente tira um tempo depois para eu te ajudar de forma particular. Se continuar desse jeito, no fim do ano a sua situação vai estar quase irreversível. Fala comigo depois, ok?
Nem preciso dizer que eu morri com essa informação. Agora, faltando apenas uma hora e meia para o meu batismo em plena sexta-feira, estou comentando com Laura sobre como eu vou conseguir respirar tendo aulas particulares com o Leogato, o professor mais gostoso do nosso colégio. "Espero que o batismo funcione mesmo, só assim pra você não ficar de p*u duro enquanto estuda álgebra perto do Leo". "Garota, se toca? Eu sei me controlar, ok? Aliás, a estratégia continuará a mesma de sempre: dia de matemática = dia de usar duas cuecas e a minha blusa do uniforme tamanho G".
Minhas risadas são contidas quando o prefeito bate na porta, dizendo que, se eu não terminar logo, vamos nos atrasar. Bom, é realmente uma m***a esse lance de levar o celular para o banheiro, a gente esquece de se lavar de verdade etc. e só fica se molhando como se a água do mundo fosse infinita.
Meia hora depois, estou pronto. Estou de blusão branco, uma calça qualquer e o cabelo h******l de bagunçado pois não deu tempo de lavar o cabelo decentemente no banho graças a minha irresponsabilidade jovem. Mando foto pra Laura, que responde com Holy Poc + emoji de pombinha, de carinha apaixonada e zilhões de corações. Só ela mesmo pra me fazer rir enquanto me preparo para encarar a via dolorosa tal qual Jesus. E olha que hoje eu estou bem menos dramático que o normal.
- Meu Deus do céu! - minha mãe abraça assim que saio do quarto - O meu filho é o garoto mais lindo do Universo.
- Quem me dera - digo, pensando nos meus dois matches no tinder em três meses.
- Anda, o Renato e o seu pai já estão lá na frente nos esperando.
- Cadê Gabriela? - digo, perguntando pela minha irmã.
-sss a babá no shopping. Seria muito chato pra ela, querido.
"Para mim também", penso. Quando entramos no carro, falo oi pro Renato, o nosso motorista bonito, e ele m*l mexe a boca para me responder. Deve estar de m*l humor, suponho. Hoje é um dia m***a para todo mundo, menos pros meus pais.
Os batismos da igreja do meu pai ocorrem em um local alugado, com uma piscina grande, não muito longe do templo. Acho que ainda não tiveram tempo de roubar dinheiro suficiente para construir uma piscina maior do que a que já existe. De qualquer forma, o local é ótimo. Tem um jardim bonito, bem cuidado, e uma iluminação digna de danceteria.
Outra coisa que esqueci de mencionar, caso você não faço ideia de como funciona esse rito, é que batismo não é um evento exclusivo; várias pessoas vão se batizar hoje, inclusive de outras igrejas que não possuem estrutura para receber esse tipo de evento.
Assim que chegamos, nós, aspirante a batizados, somos direcionados ao vestiário local, onde devemos colocar nossas vestes de fantasma, completamente branca. Nós fomos auxiliados a colocar um short por baixo da calça, para não correr o risco do manto ficar transparente após o mergulho.
Dentro do banheiro masculino, cinco caras: dois feios de trinta e tantos anos, uma criança, um homem bonito de vinte e todos e um outro adolescente, como eu. Eles tiram a calça com a maior naturalidade, e eu tento fingir que não estou nervoso. Quer dizer, é um bando de crente que eu não conheço, então, querendo ou não, é uma situação desconfortável. A minha vida inteira é uma situação desconfortável, aliás.
- Cara, tem alguém te ligando - o adolescente diz. Meu celular, escrito "Laurinha + emoji de coração" bem grande, está no silencioso, em cima da pia, logo ao lado do espelho que o garoto está usando para ajeitar o cabelo (tipo, ajeitando o cabelo para entrar na piscina?).
- Ah, obrigado - digo, mas quando pego o celular e atendo, a ligação cai. Eu murmuro um "d***a" bem baixinho, mas ele ouve.
- É a namorada tentando desejar boa sorte? - ele sorri.
- Garotos, está quase na hora - meu pai aparece na entrada do vestiário rapidamente, nos apressando - O pastor já vai dar início.
Eu nunca poderia imaginar que diria isto logo hoje, mas, obrigado, pai.
Depois de uma breve palavra, o pastor, com o vestido branco por cima de seu terno caro, entrou na piscina para nos receber. Um a um, nós fomos, homens e mulheres. Eu fui o penúltimo, logo depois do adolescente fofoqueiro que só descobri o nome quando finalmente batizou-se.
- Augusto dos Santos, eu te batizo em nome do pai, do filho, e do espírito santo... - e daí ele pede para a "igreja" dizer "amém" com ele.
E logo depois fui eu. Eu entrei, disse meu nome todo, mesmo ele piscando para mim dizendo que já sabia, mas que eu precisava dizer, e, depois, bem, a água. Nos poucos segundos que fiquei submerso, cheguei a pensar se alguma coisa realmente de fato mudaria. Como diz Laura, não existe um gay, um ser qualquer, mais iludido que eu. Mas ser iludido por Jesus? Essa nem eu esperava, acho.
Bem, então é isto. Agora foi. Eu fiz todo o procedimento, fui abençoado, mergulhei, voltei, mas nada mudou. Quer dizer, não que alguém tenha me prometido que o batismo curaria homossexualidade (e eu não quero ser curado, meu Deus, o que eu tô falando? Eu não sou doente), mas... A verdade é que crescer em uma família cristã sendo um garoto gay deixa qualquer um meio perdido.
Nada mudou. Eu continuo sendo o mesmo Gabriel... felizmente?
A U G U S T O
minha mãe está completamente orgulhosa de mim.
o ano é 2019, mas ela teve a capacidade de criar um álbum de fotos estilo orkut no f*******: com o título "batismo do meu filho!!!!!!!!!!" com umas cinquenta fotos exatamente iguais. ela se empolga tanto com esses lances religiosos que não consegue enxergar o quanto eu estão apático, triste ou até mesmo puto da vida. na verdade, eu estou me odiando agora, porque eu literalmente faço qualquer coisa para vê-la feliz, enquanto ela só consegue ser feliz se eu viver da p***a do jeito dela.
- cara, foi m*l mesmo por não ter aparecido ontem. a larissa acabou me chamando pra casa dela à tarde, aí eu acabei perdendo a hora. sabe como é, né. - yan diz meia-hora depois de ter chegado em minha casa, após vinte e cinco minutos de partida no xbox, como se estivesse buscando coragem desde o primeiro start.
- não perdeu nada - respondo, seca.
- como assim? - ele pergunta enquanto explodimos uns caras - batismo é uma coisa importante.
- tá se esquecendo de um pequeno grande detalhe! - comento, e, ao apertar o B, acabo com os inimigos de vez. Passamos de fase.
- não é tu que diz que ser gay é uma parada normal? então, - ele sorri - se você cumprir tudo direitinho, vai pro céu como todo mundo.
yan é um ótimo amigo, mesmo não parecendo. quer dizer, ele fala umas merdas às vezes, mas ele é hétero, então não é uma coisa tão inesperada assim. nós nos conhecemos desde sempre, e a minha mãe é como se fosse dele também, assim como o pai dele é pra mim. nós basicamente pegamos emprestado o que nunca tivemos, mesmo a senhora márcia e o senhor alberto não serem nada além de amigos e vizinhos.
nossos sábados de fim de mês costumam ser assim; sem dinheiro, nós só ficamos em casa jogando vídeo-game, e, no máximo, damos uma volta na praça no começo da noite. como por aqui anda meio perigoso, minha mãe nunca nos deixa voltar muito tarde.
mas hoje ela está trabalhando fora por causa da folga de ontem (ela nunca perderia o momento mais importante da minha vida), então temos a casa só para nós. o senhor alberto, junto ao seu filho mais velho, segundo yan, está na igreja.
- você se incomoda se eu chamar a lari pra cá?
- sua casa tá vazia, ué - digo, revirando os olhos mentalmente.
- ah, é, mas é perigoso. sei lá, ele pode chegar a qualquer momento.
- e daí? teu pai vai te bater porque você estar com uma garota?
- cara, a vida de hétero não é tão fácil como você imagina - ok, eu retiro o que eu disse sobre ele falar m***a "às vezes" - é falta de respeito se pegar com alguém na casa dos pais, você sendo gay ou hétero. ou bi. ou sei lá o quê.
- verdade - digo, sorrindo - chama ela, então. mas vocês não vão t*****r na casa da minha mãe. da nossa mãe. é falta de respeito.
yan sorri, me dá um soco de leve no ombro e pega o celular para mandar mensagem para a namorada.
depois de meia hora tentando escolher um filme no catálogo da netflix, damos play em "dude", porque a atriz principal faz uma série que eu e larissa amamos. nós não somos exatamente amigas, mas ela meio que sabe que eu sou gay, então não é tão insuportável ficar estar ao lado dela.
o filme é uma m***a, então, já na metade, estou com o celular aberto no tinder a fim de distrair a cabeça, passando garotos de um lado para o outro. yan, deitado nas pernas de lari, percebe, mas não fala nada durante um bom tempo.
- dá pra desligar essa m***a? - e ele diz quase vinte minutos depois, levantando-se.
- o filme é uma m***a - constato.
- nem a lucy foi capaz de salvar essa d***a - larissa concorda.
- é só trocar de filme - ele pega meu celular tão rápido que nem percebo.
- tinder? é sério isso? - yan desdenha - e esse branquelo f**o aqui? que m***a, cara.
- dá pra parar de ser homofóbico? - ela toma o celular dele.
Héteros.
- aqui - diz, devolvendo meu celular.
- ai meu deus - digo, porque nesse vai e vem do meu celular alguém esbarrou sem querer e o próximo garoto apareceu, e ele é ninguém mais ninguém menos que: - o garoto que se batizou comigo ontem. ele é um gato.
- pecado ao quadrado - yan diz.
- fala sério - digo, mostrando o celular com a foto "gabriel, 16" para os dois - ele pode até ser branco...
- deixa eu ver - larissa pega da minha mão - ah, ele é uma gracinha mesmo - ela diz, e eu entendo o sentido de seu comentário, mas finjo não me importar.
com o celular novamente em mãos, arrasto a foto dele - de pé, camiseta vermelha, um sorriso tímido e uma praia ao fundo - para a direita, dando um like esperançoso.
- deu match?
- não - digo, meio triste, mesmo sabendo que ele talvez não tenha visto minha foto ainda.
- você devia ter dado um superlike - ela diz, e nós rimos. yan continua sério.
- por que você entende tanto dessa m***a? - ele pergunta.
- diferente de você, não sou preconceituosa e tenho muitos amigos gays - debocha.
o casal começa a discutir, então eu me levanto do sofá e resolvo ligar para minha mãe, que, pelo horário, já devia ter chegado. depois de ela me confirmar que chega em alguns minutos, digo ao casal que é hora de ir embora.
mais tarde, quando coloco minha cabeça no travesseiro, penso na cena do banheiro ontem, quando a "laurinha" ligou e o gabriel ficou extremamente sem graça depois da minha pergunta. foi salvo pelo gongo.
sorrio, e nem sei porquê. gay é uma coisa engraçada.
Y A N
Eu sou gay.
Só não consigo admitir isso de jeito nenhum. É muita pressão. Eu convivo com dois super-machos dentro de casa, e desde que eu saquei o que eu sou, criei um comportamento quase que robótico, como se um outro-eu assumisse o controle da minha vida. Um outro-eu hétero, e******o e meio homofóbico, pra piorar. Bem contraditório.
E como se não bastasse tudo, o meu melhor amigo, praticamente irmão, se assumiu pra mim há alguns meses. Eu já desconfiava, claro, mas nunca imaginei que ele teria coragem de me contar. Parece algo tão surreal na minha cabeça que a minha reação foi simplesmente não ter uma. Falando sério, eu já até tinha imaginado a cena acontecendo algumas vezes, e todos elas envolviam Augusto dizendo que era apaixonado por mim, e, depois disso, nós nos beijávamos. Mas não foi nada assim.
"Você tem certeza de que não quer falar?" sentado na beira de sua cama, perguntei enquanto ele chorava todo encolhido, deitado, com o cobertor cobrindo até a cabeça.
Lembro de minha mão hesitante, vacilante, indo até o seu corpo a fim de tocá-lo, mas desistindo pouco antes de ultrapassar o cobertor. Segundos depois, subitamente, ele saiu debaixo dos panos para respirar e disse: "Estou apaixonado por um garoto, Yan". Até aquele momento eu ainda estava esperançoso. Talvez, ele só não quisesse ser tão logo direto de cara, pensei. Pobre Yan.
"Eu não sei o que você acha sobre isso, mas, por favor, se for pra me criticar como todo mundo, vai embora. Só vai embora."
E eu fui. O que Augusto não sabe até hoje é que saí daquele quarto porque estava de coração partido tanto quanto ele. Eu o amava demais, de todas as formas possíveis.
Não foi fácil. Ficamos sem trocar uma palavra durante quase três meses por causa dessa pequena confusão. Eu sofrendo por ele, ele sofrendo por outro. O meu pai e a mãe dele não entenderam absolutamente nada, então, para desviar das perguntas, eu inventei que era por causa de uma garota.
Eu fiquei com tanta raiva de Augusto que acabei tomando nojo de mim mesmo. Sempre me fiz a promessa de que, se fosse para ser gay, teria de ser com ele, só por Augusto. Como eu não podia tê-lo, nada mais importava. Hoje sei que é aquela velha desculpa do "sou normal, mas você é a exceção". Enfim, essa bola de neve maldita se transformou em um namoro falso com Larissa, uma velha conhecida. Eu estava disposto a dar orgulho pro Pai, pro meu irmão, e, assim, tentar ser como eles. Tudo que eu queria era uma vida menos complicada depois de três anos ver um amor sufocado ser despedaçado em questão de segundos.
Mas, como a vida sempre parece rir da minha cara, Larissa, minha namorada, é uma pessoa super mente aberta. Ela tem vários amigos gays e diversas vezes acabo tendo que andar acompanhado com um deles, e não é uma situação muito agradável. Hoje, por mais que a situação com Augusto esteja normal, até andar com ele junto a ela costuma ser um pouco incômodo, mesmo nem se comparando aos outros amigos gays de Lari, já que eles são assumidos, e Augusto, não.
Ontem, acho que passei dos limites. Essa m***a de fingir ser uma coisa acaba me desorientando certos dias. Acredito que nenhum deles tenha percebido que todo o meu showzinho não passou de uma crise de ciúmes, mas, lá no fundo, eu queria que ele percebesse. Às vezes tudo o que eu mais desejo é que ele me pegue desprevenindo, às vezes tudo que eu quero é que ele me olhe com um tom de desconfiança. Tudo que eu quero, na verdade, é que Augusto me note. Mas ele não faz isso.
"Gente" ele diz, nos mostrando a notificação em seu celular que diz "Novo match: Gabriel" bem rapidamente. É domingo de manhã e estamos na igreja, sentados lado a lado em um largo banco de madeira, ouvindo pastor falar.
"Ai. Meu. Deus" Larissa fala baixinho com a maior animação possível.
"Sortudo" é tudo o que eu consigo dizer, forçando um sorriso.
Respiro fundo. São momentos como esse que me lembram do porquê de eu estar aqui, às nove e meia da manhã, num calor infernal, esperando um cara chato falar por mais de uma hora. Quero dizer, eu definitivamente não sirvo para nenhuma das duas coisas, mas é difícil de admitir isso. O que eu devo ser, afinal?
Depois do culto, depois do almoço, após toda a tarde tediosa de todo domingo, vou até Augusto, já arrumado, para o culto da noite. Passo por Márcia, minha quase mãe, e, quando chego na porta do quarto dele, paro. Ele está sem camisa, terminando de vestir a calça, e fico com medo de entrar e acabar demonstrando algo. Dou um passo à frente, porque, afinal, não é isso mesmo que eu quero? Que ele me note?
"E aí" mas eu só entro depois que ele está vestido. A única coisa nua são seus pés. São grandes.
"Oi" ele diz, sorridente, o que é estranho, já que vamos à igreja, e Augusto nunca está feliz com isso.
"Vamos?"
"Ah, é, então. Não vou pra igreja hoje. Pra nossa igreja" ele faz uma pausa "Sua igreja. Da minha mãe. Enfim"
"Como assim?"
Ele pede para eu fechar eu encostar a porta e me aproximar, e, quando faço, ele diz:
"Combinei com Gabriel de visitar a igreja dele hoje. Gabriel, do Tinder."
"Sei" aceno "Você acha mesmo que é uma boa ideia?" falo baixo, então olho para trás e abaixo ainda mais o tom de voz "Um encontro gay dentro de uma igreja?"
"Relaxa, a gente não vai se pegar dentro do templo" ele ri "Só vamos nos conhecer. Só isso. É tranquilo. É aqui perto. Ali na"
"Eu sei onde é" eu o corto.
Então é isso.
Depois, no meio do culto de nossa velha igreja, vou ao banheiro e demoro vinte minutos, porque estou chorando demais e não consigo fazer as lágrimas pararem de descer.
S A M U E L
Se apaixonar por branco é burrice.
Ana Clara estava certa, como sempre. Em minha defesa, essa m***a de "Colégio Nobre" de riquinho não tem tanto preto quanto branco, e, bom, os que têm, até onde sei, são héteros. No final, o que me resta sou eu comigo mesmo (não vou entrar em detalhes).
clara sapatão:
Deixa de ser uma mula teimosa, seja como qualquer
viado normal e baixa um grindr, um hornet, alguma coisa!!!!
eu não quero conhecer ninguém
por aplicativo! Só tem gay m***a naquela m***a.
clara sapatão:
Só existe gay m***a!!!!!
você não tá ajudando!!!!
Largo o celular e me jogo na cama, frustrado. É triste admitir, mas ainda não superei Gabriel. Não que a gente tenha namorado nem nada, quer dizer, a gente m*l se fala, porque ele é do primeiro ano e eu do segundo, mas, putz, eu só criei uma coisa enorme na minha cabeça e, tipo, ele nunca vai me querer. Mandando a real, ele nem sabia que eu existo, provavelmente. Mesmo com todo esse sofrimento, não quero me tornar mais um e fazer tudo do jeito mais fácil, baixando o tinder ou qualquer outro parecido, por exemplo. Quero conhecer alguém de verdade, sem essa superficialidade toda da internet. É pedir muito?
Pelo que Clara e eu temos observando, dentre todos os garotos da escola, somente sete são ou podem ser gays. Nós criamos uma Lista LGBT.. Metade da lista nós temos certeza de que são gays; dez deles são caras brancos, e o único menino n***o namora com um garoto bissexual, que está na nossa outra metade da lista: quatro bissexuais, seis lésbicas, um garoto trans do terceiro ano (Clara e eu estamos tentando ser amigo desde ano passado), enfim. O meu sonho é poder mover Gabriel da nossa lista de Possíveis-Gays para a lista dos definitivos. Não que eu vá ficar feliz em mudá-lo de posição, já que, levando em consideração tudo que sei sobre a família dele (não é tão difícil de stalkear, o pai dele é só o prefeito), dependendo do jeito que isso vier à tona, pode dar muito r**m pra ele. Eu nem sei porque eu me importo com uma pessoa que nem sabe que eu existo direito, mas, é, esse sou eu.
- Olha quem chegou - Clara diz, e nós olhamos meio que sem querer de forma indiscreta para Gabriel e sua amiga, Laura - Tipo, será que alguém sabe? Será que ele já contou pra alguém daqui? Será que ela sabe?
- É a melhor amiga dele, com certeza deve saber. Mesmo ela sendo hétero.
- Dani diz que ela é legal - ela cita sua prima, que é do primeiro ano, mesma sala de Gabriel e a tal garota - Já stalkeei ela uma vez. Acho ela bem gata, na verdade.
- Acho bom ela ser confiável. Ele ainda não tá preparado pra isso. Definitivamente não.
- Lá vem!
Clara revira os olhos, sorrindo. Ela me acha um completo iludido por simplesmente me preocupar com um outro garoto gay que nem olha pra mim. A verdade é que não é questão de ser bobo, mas sim de ser empático. Não é todo mundo que tem uma família maravilhosa como a minha (aliás, a maioria não têm), então, sim, eu tenho medo com o que possa acontecer com o filho do prefeito. Se algum garoto hétero b****a resolveu fazer alguma gracinha com qualquer v***o dessa escola, eu juro que desço do salto e resolvo as coisas na mão.
Depois de pegarmos os nossos 8.2 e 8.5 do teste de física da semana passada, Clara e eu vamos almoçar no shopping que fica praticamente de frente para a escola. Mesmo sendo segunda-feira, dia de comer comida saudável segundo nosso pacto alimentício, as notas altas em uma matéria de exatas de duas pessoas de humanas merece uma comemoração no BK, com direito a balde de batata e tudo. Dani, prima de Clara e minha amiga de infância, aparece logo depois, mesmo tendo tirado 4,5 em Espanhol.
- Nunca gostei de ouvir Shakira. Anitta morreu pra mim logo depois de Paradinha.
- O Diego não passou, tipo, quase três meses na Argentina ano passado? Que m***a de namorado é esse, Dani? - Clara diz.
- O inútil tirou 3,2 - ela ri.
- Eu vou fazer uma playlist de reggaeton pros dois, pra ontem - digo, e Dani faz careta.
Passamos quase uma hora andando pelo shopping até resolvermos que vamos assistir A cinco passos de você pela terceira vez. Estamos na fila para comprar os ingressos (grande até demais para uma segunda feira, aliás), quando somos surpreendidos por uma pessoa maravilhosa: Tomás.
- Oi - o garoto diz, acenando com a mão direita.
- Cara, a gente sempre quis falar com você desde o primeiro dia de aula - Clara, discreta como sempre, nos deixa sem graça.
- Samuel, Clara e Dani - tento agir naturalmente nos apresentando, apontando para as duas - Mas me chama de Sam, por favor.
- Tomás - ele dá um meio sorriso enquanto se apresenta, mas nós já sabemos mais da vida dele do que nossas próprias vidas.
Depois de alguns segundos de silêncio constrangedor, ele nos salva.
- Vocês viram a m***a daquele twitter novo? Só está com quarenta seguidores por enquanto, mas é questão de tempo pra isso explodir naquela escola.
- Twitter? eu e Clara perguntamos indignadíssimos por estar de fora de uma fofoca.
- Sim - Tomás saca o celular e nos mostra uma conta com a logo do colégio em preto e branco: @fofocasnobres - Já começaram a postar. E, claro, sempre sobra para um de nós.
Ele rola a tela, nos mostrando o primeiro tuíte feito pela conta.
"A primeira bomba que vou revelar nem é tão quente assim, mas acho que tirar um gay do armário nunca vai ficar fora de moda: o filho do prefeito é v***o, senhoras e senhores!"
Clara e eu trocamos olhares perplexos. O que eu temia finalmente aconteceu e isso significa que eu devo cumprir o que prometi a mim mesmo: eu vou dar uma surra em algum filho da p**a do nosso colégio.