Se eu encarar bem todas as lembranças do meu passado, o Dom sempre estava ali: em um canto, olhando-me fixamente de longe. Se eu pensar direito, eu também estava de longe o encarando também. Caso eu procure nas empoeiradas caixas, fotografias antigas, tem registros de nossos olhares cruzando-se desde sempre, tem muito mais verdades por detrás daqueles olhares ingênuos do que em muitas declarações que vemos e ouvimos hoje, mas ele era o Dom, e naquela época, quando eu o conheci, eu tinha apenas oito anos, ele era quase um bebezinho.
A nossa diferença de idade foi, por anos, uma coisa irrelevante: quando ele era pequeno, logo que mudamos, eu era a mais velha, responsável por cuidar que ele não se afogasse na piscininha, que jogava bola com ele e o ensinava cantigas, era quem o ajudava na lição de casa e cuidava dele quando a Sra. Delaney precisava dar uma saída rápida e, conforme o tempo foi passando, ele foi se tornando o meu cúmplice, meu pequeno parceiro de aventuras e travessuras, nós dois éramos uma dupla imbatível: a Mel e o Dom e todos nos conheciam na rua, no bairro, na escola e nos acampamentos de férias.
Eu sempre vivi nos subúrbios: quintais com gramas bem aparadas, cachorros que se perdem dos donos, meninos entregando jornais, o típico sonho americano que todos conhecem nos filmes, mas eu não sou americana, eu apenas cai de paraquedas por aqui. Mudamos para os EUA em 1998, e sim, eu tinha oito anos na época. Meu pai acabara de ser promovido e ganhara um cargo na matriz da empresa em Chicago. Imaginem: em plenos anos 90 eu estava indo viver o sonho americano! Minha mãe acreditou que a mudança seria a melhor coisa do mundo e eu, criança, comprei aquela ideia, e não foi r**m, só não foi assim tão bom quando imaginávamos, ao menos não no começo.
Papai comprou uma casa grande em Naperville, um subúrbio perto de Chicago: ele podia usar o metrô diariamente e ir para o seu trabalho, mamãe e eu tínhamos mais tempo em casa e logo que minhas aulas começaram, eu percebi que as coisas não seriam tão fáceis: eu era brasileira, estrangeira, esquisita... Logo os meus hábitos tornaram-se uma boa piada e com o tempo eu, que sempre fora tão espontânea e sorridente, tornei-me uma criança tímida e reclusa, exceto quando eu estava em casa e quando eu estava com Dom.
Com o tempo, nos tornamos inseparáveis, e digo isso com propriedade: todos os aniversários, halloweens, fins de semana, feriados e férias, sempre tínhamos um plano, uma ideia e principalmente: uma desculpa para passarmos o nosso tempo juntos, mas as coisas mudaram um pouco conforme eu crescia, as brincadeiras foram perdendo a graça, e Dom e eu mudamos os nossos passatempos: videogames, filmes... E em um determinado momento, acho que eu tinha uns treze anos e ele oito, simplesmente nossos interesses ficaram distantes demais e acabamos nos afastando.
Eu não posso dizer que eu não sentia falta dos nossos momentos juntos, mas Dom, ele ainda era um menino, eu estava ficando uma mocinha... Dom estava sempre por perto, sempre disposto, e quando eu tinha quatorze anos, tivemos uma briga f**a: ele estava me perturbando com suas brincadeiras bobas, eu estava cansada de sua bolsa de basquete batendo na garagem. Eu disse para ele se manter afastado, e fui para o meu quarto chorar, naquele momento, eu sabia que eu tinha crescido, e o Dom ainda não, eu estava totalmente focada em coisas de meninas crescidas, sonhando com o meu primeiro beijo, com meu primeiro namorado, e uma parte de mim, sempre queria que esses momentos fossem com ele, mas ali, eu quatorze anos e ele, nove, ele era uma criança, e essa constatação c***l doeu, aquilo doeu em mim muito mais do que deveria doer.
Quando eu fiz quinze anos, meu pai já estava doente, e pediu que fizéssemos a minha festa de debutantes, como as meninas faziam no Brasil, porque ele queria aproveitar um dos meus momentos mais importantes. Meu pai dançou comigo a primeira valsa, e o Dom, um menino magrelo, franzino e desajeitado, mas que tinha quase minha altura mesmo com meus saltos, dançou a segunda, e disse-me que sempre havia sonhado com aquele momento, o que soou estranho e fez meu estômago revirar, eu queria beijar aquele menino, naquele momento, no meio da minha festa de quinze anos, mas cai na realidade logo depois:
Meu namoradinho quase bateu nele por isso: eu era a namorada do Gregor McAvoy, quer dizer, eu era “a garota do Gregor” porque ele não namorava... Enfim, Gregor foi o meu primeiro namoradinho, ficamos juntos por três meses e meio, e tudo eram rosas, até ele conseguir o que ele queria: s**o.
Acho que se eu fechar meus olhos agora, eu consigo pensar no exato momento em que eu desci do ônibus escolar: todos estavam comentando o fato de que eu tinha transado com Gregor McAvoy, e eu precisei de muito, muito auto controle para não chorar dentro do escolar, mas quando eu desci daquele ridículo ônibus amarelo e me senti segura, em casa, foi Dom que saiu correndo dos degraus da varanda da minha casa, para me abraçar e dizer que tudo ficaria bem...
Ele comprou flores e chocolates, ele fez brigadeiro e passou a tarde toda comigo, assim como os dias que seguiram. Minha mãe havia encontrado diversas desculpas para nunca estar em casa, a forma dela “superar” a doença do papai era andar por aí, e fingir que ela nunca existira, então, Dom foi novamente o meu melhor amigo, e eu chorei tanto, mas tanto, que no dia seguinte estava exausta demais para ir para a escola.
Tudo quase ficou bem: Dom, apesar de ser um menino grande para a idade, era magrinho... Ele foi tirar satisfações com o Gregor e bem, terminou com o um olho roxo e um corte no supercílio. Adivinhem quem foi cuidar do Dom? Eu mesma!
O Dom nunca me perguntou se o que estavam falando era verdade ou não, ele tinha dez anos, acho que aquilo não era importante para ele, mas ele sabia o que tinha acontecido, e mesmo assim ele segurou minha mão e ficou ao meu lado, todo o tempo. Depois do Gregor, eu dei um tempo com essa coisa de namorados, até porque, o meu pai estava cada vez pior, o câncer dele avançava quase descontroladamente e o tratamento não parecia fazer o efeito necessário: no início de 2006 eu perdi o meu pai.
Acho que foi o dia mais triste da minha vida. Meu pai era o meu melhor amigo – depois de Dom, é claro – e pensar que eu nunca mais o veria, nunca mais o teria ao meu lado partia meu coração. Dom estava comigo o tempo todo, foi ele quem ficou comigo em casa à noite, quando minha mão não voltou do hospital, ele que preparou chá, ele que me abraçou e me fez carinho até eu dormir.
Quando eu estava terminando a escola, logo depois de perder o meu pai, eu acabei me tornando ainda mais esquisita do que eu era: eu não tinha pai, se não tinha pai trabalhando nos EUA, deveria voltar para o Brasil, de onde eu nunca deveria ter saído. Dom brigou por minha causa tantas vezes quantas eu consigo me lembrar, na escola, na vizinhança e em todos os lugares possíveis. Uma crise econômica iniciava-se e os ânimos estavam bem alterados.
E então, mesmo com todo esse cenário eu consegui, fui chamada para estudar na Loyola University, e com isso, acabei me afastando mais ainda. Eu decidi cursar Gestão Empresarial e minha mãe, acabou voltando para o Brasil e deixando a nossa casa Napperville, e eu, prometi que quando eu terminasse meus estudos, decidiria o que fazer – com minha vida e com a casa. A verdade é que minha relação com minha mãe nunca foi fácil, e com a ausência do meu pai, ficou ainda mais difícil, por isso eu decidi ficar.
Eu voltava a Napperville quase todos os finais de semana, Dom estava crescendo, quase não nos víamos e se nos víamos, era estranho... Estranho porque havíamos perdido muito do que tínhamos, porque eu morria de vontade de sentar com ele nos degraus da varanda e saber como estavam as coisas, como ele estava enfrentando toda a vida dele... Depois de dois anos de faculdade, eu comecei a namorar um cara, e bem, costumávamos passar o fim de semana juntos em Napperville, o que afastou ainda mais o Dom, principalmente depois de uma noite de Natal, quando Steven e eu brigamos e ele gritou comigo, gritou alto o suficiente para o Dom ouvir, e ele invadiu a casa pela porta da cozinha e os dois trocaram socos e insultos, acabamos com a polícia em casa e Steven terminou comigo. Dom tentou se explicar e eu não quis ouvir, eu passei quase dois anos sem falar com ele.
Coloquei a casa à venda às vésperas da minha formatura. Eu não queria voltar para Napperville, eu queria apenas um grande apartamento na cidade, queria viver tudo o que fosse possível, mas a casa não foi vendida, ela apenas ficou lá, e como estava paga, eu a deixei... Lembro de passar por lá para encaixotar os meus pertences – eu imaginava que a venderia rapidamente...
- Mel – ouvi do sótão alguém chamando na porta da cozinha.
- Dom? – gritei em tom de pergunta.
- Onde você tá? – ele pergunta já abrindo a porta.
- Aqui em cima – respondo e logo apareço no topo da escada – tá fazendo o que aqui?
- Pergunto o mesmo – ele ri.
- Vim colocar a casa a venda – respondo.
- Certo – ele dá ombros – quer ajuda com alguma coisa?
- Estou bem, obrigada – respondo.
Eu queria afasta-lo, uma parte de mim ainda o culpava – e com razão – pelo fim do meu relacionamento com Steven, mas outra queria correr e abraça-lo. Na dúvida do que fazer, eu simplesmente desci as escadas e o encarei nos olhos:
- Sabe que é um i****a, não sabe, DomDel? – eu tinha os olhos marejados.
- Eu sei – e ele me abraça apertado – eu sinto muito, Mel, sinto tanto...
E aí ele me beijou, e por um momento, tudo fez sentido em minha mente: eu podia beijá-lo para sempre. A nossa diferença de idade agora importava pouco: no ano seguinte ele estaria na faculdade, eu iniciando minha carreira, não precisaríamos mais nos preocupar, não vivíamos mais nos anos 50, mas ele afastou-se e disse “eu sinto muito” e saiu pela porta, deixando-me como uma i****a encarando o vazio.