Consegui dormir um pouco e me levanto por volta das dez. Na sala, encontro papai lendo o jornal no sofá de dois lugares. Inclino-me para beijá-lo no rosto.
— Bom dia. Como foi a festa?
Desvio o olhar e me jogo no outro sofá.
— Foi boa.
Ele franze a testa, desconfiado.
— Hum, esse "foi boa" não me convenceu.
Sorrio para ele, tentando mudar de assunto.
— Mamãe falou com o senhor sobre o Ano Novo?
— Falou. Você tem certeza que vai ficar bem?
Reviro os olhos, rindo.
— Pai, se tem um lugar onde vou estar bem, é na casa da Kayra. Ela segue costumes super rígidos. Para você ter uma ideia, para ela namorar, o rapaz precisa ser aprovado pelo pai e pelo irmão. Então estarei segura com eles.
Meu pai ri, aprovando.
— Eles é que estão certos! Se tivéssemos feito isso, você não teria quebrado a cara com aquele i****a do Henrique.
Minha expressão muda. O nome dele ainda é uma ferida. Ninguém gosta de ser traída, mesmo por um i****a.
— Nem vem com essa conversa! Deus me livre o senhor ter que aprovar o homem que eu escolher.
Ele sorri de canto, mas sua voz é séria.
— Posso não interferir nas suas escolhas, mas eu e sua mãe sempre te daremos conselhos. Como fizemos com aquele i****a. Não foi por falta de aviso. Ele não era homem para você.
— Ralph, chega desse assunto. — Mamãe aparece, repreendendo-o.
Antes que ele possa responder, o telefone toca. Sinto um alívio.
Atendo.
— Emily? Como foi ontem? — Carol pergunta, e ouço Letícia falando algo ao fundo.
— Um minuto. — Coloco o telefone no gancho. — É Carol, vou atender na biblioteca.
Antes de sair, papai me lança um olhar desconfiado.
— Você não está voltando a falar com aquele i****a, está?
— Credo! Claro que não!
Na biblioteca, pego a extensão.
— Oi.
— E então? — Carol já começa. — Como foi?
— Não foi. Eu só dormi com o estranho.
Ela ri, incrédula.
— Não acredito! Para com isso, somos suas melhores amigas. Não vamos contar nada para ninguém. Pode falar.
— Eu só dormiiiiii! — repito, irritada.
— Sei que você está traumatizada por causa de Zoe, mas... ele foi cuidadoso? Vocês marcaram de sair?
Respiro fundo.
— Eu estava bêbada, Carol! Não aconteceu nada. Lembro dele indo tomar banho antes de eu apagar, e depois... nada.
Ela ri de novo, o que me deixa ainda mais irritada.
— Ele te deixou para tomar banho?
Essa pergunta me atinge como um soco. Será que ele não me achou atraente?
— Sim. — Minha voz sai vacilante.
— Não acredito!
— É a verdade. Acordei umas cinco e meia e fugi do quarto.
Omito que estava só de calcinha e sutiã. É muita vergonha para compartilhar. Carol ri alto e conta tudo para Letícia, que pega o telefone.
— Garota, isso é uma piada?
— Não.
— Parece.
— Bem, vou desligar. Boa viagem para vocês.
Letícia suspira.
— Uma pena você não querer acampar com a gente.
— Sou alérgica a insetos.
— Isso é desculpa! Você poderia usar repelente! E no frio? Já viu inseto no frio?
— Pode ser verdade, mas me enfiar no meio do nada não é a minha definição de diversão. Boa viagem. E, por favor, mantenham isso em segredo. Não aconteceu nada.
— Pode deixar. Quer falar com a Carol?
— Não precisa. Só avisa que desejo tudo de bom para vocês nesse Ano Novo.
Ela se despede, e finalmente desligo. Ainda pensativa, vou para o quarto e tranco a porta. Olhando no espelho, encaro minha figura: pele clara, s***s pequenos e firmes, bumbum empinado. Não sou f**a. Na verdade, sou um mulherão.
Mas então por que ele não me tocou? Esse pensamento martela em minha cabeça.
Afasto a dúvida com um suspiro. Que se dane! Vou ligar para Kayra. Dias tranquilos me esperam, e eu mereço.
Depois de alguns toques no celular, Kayra atende animada.
— Não acredito que aceitou meu convite!
— Sim, está tudo certo.
— Ótimo! Amanhã, que horas? Posso mandar o motorista te buscar.
Agradeço com um sorriso.
— Não precisa, vou de carro. Qual é o endereço?
Quando desligo, fico olhando para o papel. Hampstead? Um dos bairros mais ricos de Londres. Fico surpresa. Nunca falamos de nossas diferenças sociais porque nossa amizade sempre foi muito além disso. Mas agora imagino que a casa dela deve ser uma mansão.
Sorrio para mim mesma. Vai ser uma ótima virada de ano. Um recomeço.
Okan
Estou vestido como o executivo que sou: terno preto impecável, camisa branca alva, gravata preta alinhada e sapatos brilhando de tão bem engraxados. Não estou indo ao meu hotel para uma reunião, como seria de se esperar. O destino hoje é outro: a casa da minha futura noiva, acompanhado por meu pai e minha irmã.
Sinto-me desconfortável, como se estivesse caminhando para uma forca. O peso do momento nunca havia me incomodado até aquele encontro inesperado no bar. Sempre considerei as qualidades da minha futura noiva tranquilizadoras: bonita, educada, conhecedora das nossas tradições e costumes. Mas, hoje, tudo parece diferente.
Chegamos à casa dela. Não é tão grande quanto a nossa, mas é elegantemente decorada, revelando bom gosto. Sou apresentado a Sila. Uma mulher bonita, sem dúvida. Cabelos negros e longos, olhos cor de mel e pele clara. No entanto, algo está errado. Quando nossos olhos se encontram, nada acontece. Meu coração permanece inalterado, sem emoção, sem qualquer faísca. Nem seu perfume, por mais suave que seja, mexe comigo.
A imagem dela invade minha mente. Aquela garota. Aquela estranha. E sinto um incômodo imediato por isso. Tento afastar o pensamento, lembrando das palavras do meu pai: "O amor virá devagar. Foi assim com sua mãe."
Os pais dela parecem satisfeitos comigo, o que não é surpresa. Eles sabem que Sila terá uma vida confortável e estável ao meu lado. Digo as palavras que esperam ouvir, prometendo amá-la pelo resto da vida. As palavras soam falsas para mim, mas torço para que um dia se tornem verdadeiras. Em silêncio, clamo a Allah que me ajude a amá-la de verdade.
A cerimônia de noivado segue conforme as tradições. O pai dela coloca a aliança em meu dedo, enquanto meu pai faz o mesmo com a aliança de Sila. A minha está larga, quase escorregando do dedo, o que encaro como um mau presságio. Mulheres gritam de alegria, enquanto beijo a testa da minha noiva, cumprindo o ritual. Por fora, sou a imagem da tradição e do dever. Por dentro, sinto um vazio imenso.
Minha irmã é a primeira a me abraçar.
— Estou tão feliz por você, Okan. Sila será uma ótima esposa.
Ela então abraça Sila, com uma expressão calorosa.
— Você será como uma irmã para mim. Okan não poderia ter feito escolha melhor.
Sila sorri timidamente, e eu forço um sorriso ao ouvir a minha irmã mencionar a festa de Ano Novo que daremos na nossa casa.
— Não poderei ir. Meus tios virão aqui. Mas, se quiserem passar conosco... — Sila sugere com delicadeza.
Pego a sua mão, alisando-a como um gesto automático, sem sentimento.
— Meu pai não tem saído muito. Hoje ele fez um esforço devido ao noivado.
Ela assente compreensiva, voltando o seu sorriso para minha irmã.
O meu pai nos observa, sorrindo orgulhoso.
— Estou muito orgulhoso de você, Okan. Você não poderia ter escolhido melhor. E você, Sila, também. Sei que serão felizes, e nossas tradições, nossa história, estarão protegidas.
Sila abaixa a cabeça em sinal de respeito, e eu confirmo com um leve aceno. Mais uma etapa cumprida.
No caminho de volta, o silêncio no carro é esmagador. Meus pensamentos insistem em vagar para onde não deveriam: aquela garota de cabelos dourados e olhos verdes.
A minha irmã quebra o silêncio, falando em turco:
— O que achou da sua noiva, Okan?
Sinto uma pontada na cabeça com a pergunta. Mantenho o olhar no trânsito e respondo com um leve tom de desdém:
— Güzel (bonita).
Ela sorri, mas meu pai completa com firmeza:
— Mais que bonita. Será uma boa esposa.
Reduzo a velocidade ao avistar a mansão, e minha irmã pergunta:
— Você vai ficar conosco hoje ou voltar ao hotel?
— Tenho compromissos cedo amanhã devido à festa de Ano Novo. Melhor dormir no hotel.
— Você passa mais tempo lá do que aqui.
— Ele está certo, Kayra — intervém meu pai. — Está cuidando dos negócios da família. E quando você terminar a faculdade, vai ajudar na administração.
A minha irmã suspira, resignada, mas não desiste:
— Na véspera de Ano Novo você estará aqui, certo?
— Claro. Aproveite a companhia da sua amiga. Tenho certeza de que vão fofocar bastante.
Ela ri e dá um leve t**a no meu braço.
— Até parece! E vou fofocar sobre o quê?
— Sobre mim, é claro. Amanhã a minha orelha vai até esquentar.
— O mundo não gira ao seu redor, Okan.
Sorrio, mas um peso permanece no meu peito. Olho para meu pai, que caminha com dificuldade até a porta da mansão.
— Ele ficou feliz, não foi? — pergunto em voz baixa.
— Muito. Você deu um passo importante para realizar o sonho dele. Ele estava preocupado com você. Morre de medo de que você se envolva com alguém de fora.
— Sua amiga é "de fora", e você a convidou para passar esses dias aqui.
Minha irmã ri, achando graça.
— Isso é diferente. Eu não vou me casar com ela.
Reviro os olhos, incomodado, mas não respondo.
— İyi geceler (boa noite).
— İyi geceler. E a aliança?
Olho para o dedo anular, onde a aliança deveria estar, mas não sinto falta dela.
— Está larga. Preciso mandar apertar.
— Faça isso, irmãozinho.
Subo no carro e sigo para o hotel. Mas minha mente não está no trabalho, nem nos compromissos de amanhã. Está na garota que não deveria significar nada para mim. E, ainda assim, significa tudo.