Nasci numa pequena localidade próxima ao lago Chade, na cidade de Baga, na Nigéria. Quando era pequena tinha aspirações simples, crescer próxima a natureza fazia-me enxergar o mundo de uma maneira diferente a qual vejo hoje.
Quando saía para brincar com as minhas primas próximo ao lago víamos quase todo tipo de animais, sempre fui muito curiosa com tudo que não compreendia, e por ser uma criatura encantada (dizia a minha mãe) era ambiciosa, e tão focada (algo que mantenho até os dias actuais), estava sempre entre os alunos com as melhores notas na nossa pequena escola, embora não soubesse certamente o que me propunha a atingir eu sabia que queria leccionar, estudar tudo que tivesse haver com a natureza e passar o conhecimento às crianças da minha vila.
Vivíamos eu, meus pais meu irmão mais novo Daren, e a nossa mana mais velha Abidemi, numa casa pequena, tinha cinco divisões, uma cozinha, sala (de estar e de jantar), um banheiro e dois quartos sendo um deles quase um cubículo. Abidemi e eu dormiamos num beliche no nosso quarto minúsculo, o Daren dormia na sala e os meus pais dormiam no maior quarto da casa, as nossas roupas ficavam em pequenas caixas no quarto dos meus pais pois em nenhuma outra divisão havia espaço para as colocar.
Apesar de todas as limitações que tínhamos, a nossa vila era das mais alegres, prosperava ao seu ritmo e era fértil. Viviamos sobretudo da agricultura e da pesca.
Meu nome é Anaya Kamil, tenho vinte e sete anos, sou Nigeriana com cidadania Americana. Cheguei aos Estados Unidos da América como refugiada num programa da ONU, após um ataque terrorista de um grupo extremista à nossa Cidade. Na época tinha 16 anos.
Eram 05h20, num sábado de Junho de 2010, estavamos todos a terminar de nos arrumar para o culto, alguns habitantes da nossa vila já haviam saído para rezar quando ouvimos os primeiros disparos.
O primeiro ataque começou um pouco antes do amanhecer. Enquanto guerreiros do grupo extremista invadiaram a parte norte de Baga, a nossa vila que ficava mais a oeste parecia estar fora de perigo, mas as coisas se descontrolaram e nem mesmo quando um grupo de homens determinados dentre os quais o meu pai e alguns tios decidiu pegar em facas, catanas (machetes), em tudo que era objecto cortante para defender a cidade obteve sucesso. Na verdade, esse acto heróico acabou gerando mais ódio e comoção por parte do grupo extremista.
A essa altura, estavamos escondidos eu minha mãe e os meus irmãos. Eu e o Daren ficamos num buraco que o meu pai havia feito que servia para armazenar alimentos. Como era pequeno, só cabiam duas crianças, o Daren tinha 13 anos e eu 16 (era alta mas extremamente magra), a Abidemi e a minha mãe tiveram de esconder-se entre as caixas no quarto dos meus pais.
A dada altura quando já não se ouvia barulho de tiros a serem disparados, o Daren quis sair para ajudar o meu pai, este que ninguém sabia onde estava já haviam se passado várias horas desde que saira de casa. A minha mãe começou a chorar, lamentando em Ibo (nossa língua materna) que se ia perder o marido ao menos tinha de ter um homem em casa, essas palavras o demoveram da idéia absurda de se ir juntar ao meu pai.
Ouvimos barulho na entrada de casa, a minha mãe foi nos avisar que ainda não era seguro nós sairmos de onde estavamos, que as pessoas que chegaram era o meu pai e o meu tio Dahiru. Ela voltou a fechar a portinha e colocou o tapete por cima, mas ainda conseguíamos ouvir tudo o que falavam visto que o compartimento ficava proxima a entrada do quarto depois da sala.
- "Nós os fizemos recuar com os nossos soldados, eles foram até a floresta" - dizia o meu pai.
- " Cunhada devias ter visto! Nós todos fomos atacar em massa. Eles são desorganizados e usavam uniformes de diversos tipos, só os conseguimos identificar porque utilizavam turbantes e cobriam o rosto!" - responde o meu tio.
- "Moses, vocês não deviam ter vindo pra'qui! se vocês foram seguidos só estarão a colocar a vida dos meus filhos em perigo! Por isso que não queria que saísses, o Daren quis vos seguir" - reclama a minha mãe para o meu pai.
Àquela, foi a última vez que ouvi a voz dos meus pais e do meu tio. Depois da retirada dos militantes, houve uma calmaria e algum alívio, mas não durou muito.
Alguns minutos depois voltaram a atacar a nossa vila. Foram obter reforços e avançaram com uma coluna de picapes e motorizadas. Saíram da floresta com mais de 30 veículos.
De onde estavamos não conseguíamos ver, mas ouvimos tudo. Eles abriram fogo e atiraram em tudo que se movia. Quando chegaram na nossa casa não deram tempo sequer de o meu pai e o meu tio se defenderem. Foi então que começamos a ouvir os gritos da Abidemi. Meu irmão Daren quis sair de onde estávamos, eu tinha o rosto banhado de lágrimas, me agarrei à ele como se a minha vida dependesse dele naquele exato momento. Quis gritar, afinal era a minha irmã mais velha que estava a ser levada, àquela que era a minha melhor amiga. Com ela aprendi os melhores valores que tenho, ela era como uma segunda mãe pra mim. Protegia-me e protegeu até ao fim. Eles a levaram e até hoje nem eu nem ninguém sabe para onde ela foi levada, ou se está viva... Não chegamos a ver o corpo dela, mas os corpos dos meus pais, o Daren não deixou-me ver, porque quando um dos militantes reconheceu o meu pai, mesmo depois de o já terem morto, ficaram profanando o corpo dele dizendo " Homem valente, porque você não luta connosco agora?". Tenho quase certeza que foi esquartejado.
Eles conseguiram criar o caos, havia pessoas gritando e correndo por todos os lados, senti-me covarde pois, depois de ouvir tudo sem poder fazer nada não conseguia sequer definir o que sentia naquele momento. Quis morrer com os meus pais.
As oito da noite o ataque se transformou em caçada, na medida que os militantes começaram a perseguir pessoas nas ruas, eles atiravam e depois atropelavam as pessoas.
Havia corpos demais para serem contados, mulheres, crianças, jovens, idosos, metade da cidade espalhada no chão, varias casas foram incendiadas. Principalmente aquelas que apresentavam uma estrutura melhor que a nossa (as mais modernas e que os donos já tinham algum estatuto na sociedade).
Ficamos dois dias sem emitir som algum, até que sentimos que era seguro sair. As ruas cheiravam a potrificação, até hoje o número de mortos mantem-se desconhecido, ouvimos falar em três mil e quinhentas pessoas mas estás eram as que foram encontradas, pois ainda há aquelas meninas e jovens senhoras que foram levadas as quais tenho certeza que uma delas era a minha irmã, cujo o número até a data também mantem-se desconhecido.
O desepero leva o ser humano a fazer coisas inimagináveis! Havia mijado várias vezes nas minhas roupas, não consigo afirmar se o mesmo aconteceu com o meu irmão porque logo após sairmos de casa em busca de abrigo, ele não voltou a falar.
Encontramos um grupo a caminho da Ilha Ngoubouha que ficava há alguns quilómetros, juntamo-nos a eles para solicitar ajuda humanitária. O meu irmão continuava sem dirigir alguma palavra. Não encontramos nenhum dos nossos familiares.
Quando chegamos a Ilha, vimos que as agências de ajuda humanitária haviam erguido enormes tendas para receção de refugiados, não havia muito a ser feito se não aceitarmos a ajuda que nos era dada, mas levamos uma vida difícil. Durante duas semanas dormiamos no chão de areia passando frios às noites. Até que chegou uma equipa de médicos estrangeiros intitulados de Médicos sem fronteiras. Nunca havia visto tantos homens diferentes de nós juntos, era uma situação nova pra mim.
Nem eu, nem o meu irmão sofreu algum arranhão durante o ataque, mas como ele permanecia sem falar eu precisava fazer alguma coisa. As equipes médicas tinham prioridades e como o caso do Daren não era urgente ficamos durante vários dias tentando ser atendidos e sem sucesso. Naquela altura, eu só queria ouvir uma voz familiar, sentia falta de ouvir a voz melódica do meu irmãozinho. Eu faria qualquer coisa por ele.
Estavamos há mais de quinze dias na tentativa. Voltavamos da enorme fila de atendimento depois de mais uma tentativa fracassada quando fomos abordados por um médico mais jovem que os outros.
- Hei! Tudo bem? - Pergunta o Dr.
- Sim, sim - Respondo pegando na mão do meu irmão para sairmos daquele lugar.
Tinha medo dos homens de jaleco branco, no acampamento ouvia história que alguns desses médicos quando encontrassem moças mais novas e sem famílias, eles as estupravam e ainda ameaçavam para que não contassem nada a ninguém.
- Tenho visto você e o seu irmão todos os dias a espera de serem atendidos, no entanto acabam sempre voltando sem ninguém os ver... Talvez os possa ajudar. - ele fala dando um trago no cigarro que tinha na mão.
- Muito obrigada senhor! Mas nós não precisamos da sua ajuda. - falo temeraria. Comecei a caminhar mais rápido arrastando o meu irmão.
- Eu nunca a faria mal... - Ele fala alto, chamando atenção de outras pessoas. Parei de andar e ele nos alcançou. - Eu sei dos médicos que fazem m*l há algumas refugiadas...
- O Senhor sabe mas não faz nada! Nós não precisamos da sua ajuda! - o meu irmão da-me um beliscão em repreensão. E o Dr. Solta um pigarreio.
- Não sou tão importante assim, sou voluntário como a maioria dos médicos aqui. Mas já fiz vários relatórios a reportar tudo o que tenho visto, e por conta disso é que não estou lá! - fala apontando para os centros médico temporários.
Pela primeira vez, tive curiosidade de ver quem ele realmente era, me voltei para o ficar encarando. Era tão jovem, não tinha barba e a sua pele era tão alva que não parecia estar na Nigéria debaixo de temperaturas tão altas. Os olhos dele eram verdes quase da cor de mel e era alto (eu era alta, aos 16 anos já era mais alta que o meu pai) mas ele era mesmo muito alto.