CAPÍTULO 01
A floresta estava gélida, como acontecia praticamente todo maldito dia nos últimos meses, desde que o outono acabara, deixando para trás as folhas avermelhadas e murchas, a brisa seca e o céu azul, dando lugar às nuvens cinzentas que cobriam cada centímetro do céu, seja dia ou noite, que deixavam o clima assustadoramente frio e calmo, como se o pequeno reino estivesse — literalmente — parado no tempo.
Enquanto Amon Uphir caminhava pela trilha estreita que cortava a densa floresta de árvores retorcidas, cujo os galhos entrelaçados protegiam o chão de boa parte dos flocos de neve, que se acumularam sobre eles, era possível ouvir o leve som dos seus passos cortando o silêncio sobrenatural, mesmo que o rapaz fosse silencioso como um gato. A única luz que iluminava a trilha vinha da vela quase totalmente apagada do lampião que o rapaz segurava, não que isso não fosse proposital, pois o jovem já havia percorrido aquela trilha tantas vezes durante as madrugadas que podia fazer isso quase que com os olhos fechados. O bruxo só precisava de luz o suficiente para conseguir ver os galhos e raízes traiçoeiras que surgiam vez ou outra pelo caminho, ao mesmo tempo que precisava manter-se escondido de qualquer outra pessoa — ou coisa — que também estaria rondando o bosque uma hora daquelas.
Wychwood era uma parte bastante conhecida do reino, embora não passasse de um monte de florestas com árvores retorcidas e clareiras sem vida (que durante o inverno não passavam de uma zona morta). O que verdadeiramente deixava a floresta de Wychwood conhecida era o grande número de acontecimentos sobrenaturais que rondava a região. Moradores de vilarejos próximos diziam ouvir lobisomens uivando durante a lua cheia; espectros sugavam a força vital de todos os humanos que ousassem se aventurar muito à fundo na floresta; gnomos matavam e usavam os ossos de suas vítimas como colares e troféus; Leanansidhes que diminuam a sua espectativa de vida pela metade com um simples olhar...
Os boatos eram incontáveis, de todos os modos possíveis, e muitos, sabia Amon, não passavam de pura bobagem inventada para manter criancinhas longe do limite das aldeias. Mas o bruxo podia afirmar que pelo menos uma coisa relacionada aos boatos estava certa: o lugar realmente tinha uma energia sobrenatural pesada, e atraia de forma quase que involuntária todas as criaturas 'não humanas' das redondezas. Isso acontecia devido à um cruzamento extremamente poderoso de linhas de ley no centro da floresta, lugar para onde Amon estava indo.
— Merda! — Ele praguejou ao tropeçar numa raiz, quase perdendo totalmente o equilíbrio e caindo de cara no chão. Para um bruxo tão habilidoso, mesmo aos vinte anos, o rapaz conseguia ser incrivelmente desastrado de vez em quando. Amon soltou um grunhido e puxou o capuz puído que cobria a sua cabeça, revelando mechas castanho escuros e extremamente sedosas, embora a cor não passasse de um disfarce, proporcionado por um feitiço simples, já que o tom original poderia ser o suficiente para que o garoto fosse acusado de bruxaria, e não levantar suspeitas por onde quer que andasse era uma das primeiras regras impostas à si mesmo por Amon.
A pele do rapaz era de um tom perolado e claro, e apesar de ter uma beleza um tanto comum, os olhos esverdeados com certeza eram bastante chamativos, principalmente se combinados com a cor falsa do cabelo do rapaz. Ele não era muito alto, mas também não era baixo o suficiente para ser franzino. Amon não gostava muito do seu nariz, mas não arriscaria mexer em nada do seu corpo permanentemente, além do cabelo, claro.
A magia era algo muito volátil, principalmente relacionado à aparência permanente, morte e ressurreição, amplificação e magia das trevas, já que nada vem do nada. É impossível produzir magia sem dar algo à Deusa de três rostos em troca. Bruxos eram a única classe que podiam manipular a magia em seu estado mais puro, apesar de outros seres mágicos também possuíssem magia em si, de certa forma. Para o rapaz, usar magia era como um contrato. Você idealiza o que quer na sua mente e faz uma proposta sobre o que daria em troca daquilo ou não, e caso o preço cobrado for muito alto, você tenta de outra forma até conseguir — Ou simplesmente desiste e tenta conseguir o que quer sem magia.
Para conseguir deixar o seu cabelo escuro, por exemplo, Amon deu em troca a cor original dos fios. As vezes aquilo que o destino quer em troca do feitiço é justamente aquilo do que você quer se livrar, tornando o acordo místico mais fácil. Mas as vezes, o contrato pode ser MUITO desvantajoso,e na maioria dos casos geralmente para o bruxo, que abre mão de algo importante para conseguir o que quer. Memórias, feições físicas, sentidos e habilidades, geralmente são as moedas de troca mais usadas, mas cuidado sempre é pouco quando se trata de algo tão volátil como magia, pois ao entregar certas coisas para a Deusa de três rostos, o bruxo jamais será o mesmo. Sua personalidade fica distorcida, as ações imprevisíveis, os poderes ampliados... Um bruxo descontrolado vira uma bomba relógio que pode ser detonada à qualquer momento.
Enquanto andava pela trilha, com a luz do lampião já apagada à alguns minutos, Amon sentiu o exato momento em que o ar a sua volta mudou drasticamente, ficando mais denso e... Claramente sobrenatural. Os pêlos da sua nuca se eriçaram e o ar que saia pela sua boca se condensou com ainda mais intensidade, apesar da temperatura ter permanecido exatamente à mesma de algum tempo atrás. O rapaz voltou a colocar o capuz sobre a cabeça, tentando inutilmente evitar aquela sensação esquisita e os calafrios que percorriam o seu corpo, mas ele sabia muito bem que as sensações não eram resultado do frio. A brisa sobrenatural se infiltrava através do grosso, porém puído, casaco de linho que ele vestia, ultrapassando o tecido como se fossem garras frias e intangíveis, que penetraram a sua pele, iam através dos músculos e se agarravam ao seus ossos.
O jovem agradeceu internamente por chegar ao local que estava buscando nas últimas horas, o lugar exato do cruzamento das linhas de ley e o melhor lugar para fazer feitiços numa área de milhares de quilômetros. Amon sempre achou engraçado o fato de algo tão importante para o mundo mágico ser tão banal fisicamente. Quando tentou achar o cruzamento pela primeira vez, anos atrás, imaginava que seria uma grandiosa clareia, repleta com árvores de sangue — Um tipo raro e místico que cresce em lugares mágicos — e repleto de flores jamais vistas antes, mas o ponto mágico onde agora ele se encontra não passava de uma área como qualquer outra da floresta. Na verdade, Amon tinha quase certeza de que o cruzamento era ainda mais sem graça do que todo o resto da floresta.
Qualquer pessoa poderia passar exatamente por ali e jamais notar a preciosidade mágica que estava logo abaixo dos seus pés, mas com o bruxo foi diferente. O formigamento que o lugar causa e o cheiro levemente adocicado foram o suficiente para demarcar o lugar na mente do rapaz, que provavelmente apenas conseguiu encontra-lo devido à sua ancestralidade.
Agora, Amon deixa a velha bolsa de couro que estava carregando no chão e cai de joelhos de frente para um frondoso e secular salgueiro que há na sua frente. As folhas longas e verticais da árvore estão se movendo para lá e para cá, mesmo que não haja vento algum para movimenta-las. A cena seria um pouquinho bizarra se Amon não fosse tão familiarizado com tais coisas.
— veni ad me daemon. veni ad me, veni ad me... — Amon entoou o cântico do feitiço com a voz baixa, não passando de um leve sussurro, enquanto desenhava um detalhado pentagrama na areia fofa e levemente úmida de frente para o salgueiro, cuja as folhas balançavam com ainda mais intensidade à medida que o bruxo falava, tomando cuidado para não pronunciar nenhum palavra errada.
Feitiços de invocação eram complicados, mas pelo menos não exigiam do invocador algo em troca. O "preço" pela invocação geralmente era cobrado da entidade invocada, como uma pequena parcela da sua força vital ou algo do tipo, que geralmente deixava o invocado com bastante ódio por ter sido chamado, mas o pentagrama (desde que o desenho não seja desfeito), segurava a entidade presa dentro dele até ser libertada. Pra falar a verdade, Amon não entendia muito a matemática do assunto, e pouco se importava com isso, para ele, o único ponto importante é que ele não teria que pagar pela invocação, e mesmo não gostando particularmente de quem estava prestes à invocar, era sempre a quem recorria quando precisava de ajuda.
O feitiço demora longos minutos enquanto o bruxo repete a canção exatas trinta e três vezes, com a voz calma e firme. A temperatura ao seu redor parece despencar a cada palavra, mas ele ignora tudo ao seu redor e continua entoando as palavras em latim, contando mentalmente as vezes que já repetiu e observando uma fumaça com um cheiro agridoce fluir através da terra úmida por onde passa o pentagrama, como se estivesse vindo das profundezas do inferno (o que na verdade, se levar em conta quem Amon está invocando, não estaria muito errado).
Aquele leve, mas já bastante familiar tremor que assola o corpo do bruxo assim que trigésima terceira repetição do cântico está prestes a acabar, o faz tremer levemente e fechar os punhos contra a terra. Agora, o vento sobrenatural que balança as folhas do Salgueiro se estendeu até ele e faz o mesmo com as mechas compridas do seu cabelo, e apesar de não sentir o vento em si, Amon sente o cabelo balançando.
— ...nunc invocamus te!! — O feitiço termina de forma abrupta, enquanto o rapaz engole em seco, umedecendo os lábios e a garganta com saliva.
A princípio, absolutamente nada acontece, mas o bruxo sabe muito bem que essa calmaria sobrenatural sempre está presente antes das piores tempestades, e além disso, ele já fez isso vezes o suficiente para saber o que esperar. Os segundos se passam enquanto os pequenos filetes de fumaça que saem do pentagrama vão diminuindo gradativamente até sumir, como se a linha mágica que o bruxo tentou estabelecer com o invocado tivesse falhado miseravelmente, mas um segundo após a fumaça desaparecer totalmente, chamas assustadoramente azuis surgem sobre as linhas que formam o pentagrama, crescendo na mesma velocidade que a névoa n***a presa dentro do círculo de fogo também cresce.
Amon observa aquilo com uma expressão assustada e impressionada ao mesmo tempo, resistindo ao impulso de levantar e se afastar do que está acontecendo à menos de um metro de distância dele. Todos os seus instintos gritam para correr dali sem sequer olhar para trás — na primeira vez que fez isso, Amon vomitou até quase colocar as tripas para fora, enquanto o invocado gargalhada e o saudava com palavras divertidas, surpreso por finalmente ver o bruxo entrando em contato.
A névoa densa crescia de forma exponencial dentro do pentagrama, não escura quanto pixe, embora o cheiro continuasse sendo levemente adocicado e metálico, como se fosse um cheiro de rosas e sangue. Amon observou a sombra tomar uma forma assustadoramente horripilante, com garras e asas encouraçadas, antes de finalmente regredir até uma forma minimamente humana, embora aquilo fosse a coisa mais diferente de um humano que poderia existir na terra, sobre ou abaixo dela.
Olhos verdes encaravam se volta com intensidade à medida que o bruxo analisava a figura, engolindo em seco novamente e soltando um suspiro ao perceber que continuava de joelhos na frente do homem. Ou melhor: do demônio. Com não mais se um metro os separando, além do círculo de fogo azul.
— Ao que devo o prazer da sua companhia, meu pequeno bruxo. Precisando usar meu poder para alguma coisa? — Uma voz inumana ecoou pela floresta fria, rouca e grave como lascas de gelo sendo esfregadas uma contra a outra. Os pêlos do braço de Amon se eriçaram, mas ele se forçou a ficar calmo e revirou os olhos, antes de saudar o demônio invocado:
— Oi, pai.