PRÓLOGO

3135 Words
Magia, poderes, encantamentos e feitiços... Certo, mas essas coisas existem apenas em Àlfhennia, ou é o que os cidadãos de Mythibury gostam de acreditar. O poder sabe muito bem como se esconder, afinal, onde melhor do que as lendas? E o pequeno reino escondido por cinco vulcões em uma das ilhas de Hymiarith sabe muito bem como cria-las. Algumas começam assim... Há muitos, muitos anos vivia um príncipe no Palácio Chaud, porém, diferente de todos seus irmãos, o príncipe não herdou os poderes da água. Ah, não, ele herdou o completo oposto disso, os poderes do fogo. Suas mãozinhas eram capazes de criar incêndios com apenas um leve toque, eram capazes de trazer o núcleo da Terra queimando para a superfície somente com a força de vontade. E trouxeram, o príncipe, ainda jovem e tomado por um acesso de raiva fugiu para os vales que cercavam Chaud e libertou toda aquela frustração, aquela tristeza por ser o único de sua linhagem que carregava aquela maldição vinda da família paterna. Seus sentimentos submergiram na terra, seguindo e seguindo pela ilha tal o sangue de seu pobre coração negligenciado. Foi então que começaram os tremores, como se estivesse tomando um espaço que não lhe pertencia, mas o príncipe não se mexeu, continuou ali, agarrando a grama com tanta força que as mãos chegavam a doer e desejando que o mundo levasse seu fogo, talvez até que pudesse transforma-lo em água, límpida e cristalina como a manipulada pela sua mãe. Mas essa não era a intenção, o fogo não queria ceder. Ele tomou o solo, cortando a superfície e crescendo e crescendo em roxas enormes... O pobre príncipe ficou assustadíssimo ao notar todo o horizonte que seus olhos alcançavam tomado por aquelas pedras escuras, as pedras escuras dele, feitas for ele. O príncipe correu de volta para o palácio, berrando desesperos de uma criança e deixando vazar por seus olhos a única manipulação de água que conseguia fazer. Porém não foram calorosos ou preocupados quando ele retornou, não fora nem perto disso. Seus irmãos o escorraçaram com direito à dedos no rosto, gritos e até empurrões, e sua mãe não foi melhor, só era mais criativa em seus sermões. Ela pegou o príncipe pelos cotovelos e o jogou dentro do espelho d’água, obrigando-o a ficar sentado o mais submerso que conseguisse até ela terminar de falar. A conversa não foi nada boa. — É isso que você faz! – berrava ela — Destrói tudo o que toca! Mas esses gritos ainda eram os bons, os que o príncipe já estava acostumado, o pior foi sua mãe o puxar para fora da água e o arrastar de volta para o palácio enquanto gritava pelas criadas da ala infantil e as fazia montar uma fila em frente aos dois. O príncipe congelou de medo, sem conseguir olhar para além dos pés das criadas. — Olhe! – mandou sua mãe, ele não se mexeu — Olhe, covarde! Veja o que você faz! – ele ainda não se mexeu, ela o agarrou pelo queixo e o obrigou a olhar para aquela fileira de mulheres. Todas as 12 usavam luvas até os cotovelos e vestidos tão fechados que até o príncipe se sentia preso, uma delas tinha uma queimadura leve no rosto, em forma de um pequenino polegar, o polegar de um bebê. O príncipe olhou para as próprias mãos que jaziam inerentes ao lado do corpo. — Sim – disse sua mãe — Você é o responsável por isso. Ainda bebê, sabia? – ela fez um sinal para a criada se aproximar — Tire as luvas. – a mulher o fez, queimaduras horríveis vinham de seus dedos por todo seu braço, o príncipe arquejou e sentiu seus olhos ficarem turvos. — Não adianta querer chorar, seu monstrinho. É isso o que você é. Um incêndio ambulante, um monstro que fez surgir da terra essas coisas horríveis que cercam esse reino! Foi sua culpa e sabe por que? – ela o olhou nos olhos. Se o fogo do príncipe queimava por suas mãos, o de sua mãe queimava pelos olhos — Porque você é um monstro, jamais vai conseguir ser outra coisa que não isso. Nasceu amaldiçoado pelos inúteis Eldur e vai passar o resto de seus dias assim. Já deveria ter morrido há anos pelo que causou a essas mulheres, mas não posso mandar executarem meu próprio filho, se é que você pode ser considerado algo passível de uma família, mas isso? – apontou os vulcões que cercavam o reino graças a ele — Isso é além do limite da bondade concedida à uma besta como você! O príncipe não discutiu, não disse uma palavra sequer enquanto sua mãe destruía tudo o que ele achou que tinha o direito de chamar de humano, ele até parara de chorar enquanto ela falava porque cansou de acreditar que aquelas lágrimas fariam aquela mulher ver algo real em si que não fosse um monstro. Mas era isso que ele era, 10 anos de uma existência amaldiçoada na pele de um monstro e infinitos outros anos que viriam sendo exatamente a mesma coisa... — Vou exilá-lo, você jamais pisará neste palácio outra vez. – disse sua mãe — E se um dia ousar fazê-lo pagará o preço que selvagens merecem. Um monstro que um dia fora um príncipe não tentou dissuadir a rainha. Ele baixou a cabeça e deixou o fogo do último resquício de emoção sair de si, esse fogo chorou pelos vulcões ao redor de Mythibury por semanas até o monstro estar contido em sua jaula, pelo infinito que seu coração ousasse bater. A história do príncipe-monstro correu pelo reino por anos e a cada 12 meses ela se tornava ainda pior, até que se tornou mortal... Jaulas são os lugares perfeitos para monstros, mas isso se aplica para os brinquedinhos deles? Provavelmente não. Pessoas diziam que viram carruagens flamejantes levar entes queridos para além do vulcão mais alto e jamais retornarem, essas mesmas pessoas contavam que sentiam cheiro de fumaça ao passarem por lá, e não qualquer fumaça... Fumaça de corpos, o cheiro da carne humana queimando os acompanhava para sempre. Então os períodos de desaparecimento e quantidade se tornaram menores um século depois até se estabilizarem em a cada três anos uma pessoa... 36 meses e uma vida para alimentar um monstro, o monstro mais temido de todo o reino. Gobin Speir ouviu essa história a vida inteira, desde muito jovem para que não fizesse bagunça demais ou fosse muito levado até se tornar um adulto que temia contar 1095 dias e descobrir uma carta dourada em suas coisas. Mas jamais aconteceu, nem com ele e nem com alguém próximo. Afinal, a carne dos nobres costuma ser muito melhor para os monstros do que a dos plebeus do subúrbio. O príncipe-monstro parecia concordar muito com isso. E Gobin estava muito feliz por um aprendiz de ferreiro jamais ter passado pela Escolha. — Está devaneando de novo. – disse sua noiva, sentada ao seu lado na praça do Subúrbio. — Você está me analisando de novo, Rora. – ele sorriu, voltando-se do vulcão que encarava para a garota ao seu lado que lhe deu um sorriso sabichão. — No que está pensando? — 36... – respondeu ele, sem pensar. Em dois segundos Aurora fez a ligação entre os devaneios do noivo e o número que ele usara para justifica-los. Haviam se passado 36 meses, os meses mais rápidos e mais felizes da vida dela que logo seriam manchados pela tristeza coletiva da Escolha. Ela suspirou, mas tentou dar o melhor sorriso para Gobin. — Nada mudará desta vez. – garantiu, segurando a mão do garoto — Nunca muda, Bin... Nós estamos bem, estamos seguros. — Eu sei, é só que... Foi no segundo em que Gobin despejaria toda sua angustia estranha que sempre tinha a cada Escolha que Maeve apareceu sorrindo para os dois e sentando no meio deles como sempre fazia. — Olá, belo casal. – saudou ela, balançando alguns papeis enquanto passava o braço livre pelos ombros de Aurora. — São as cartas da nossa casa. – falou para Gobin. — Quer ver como mais uma vez somos sortudos? Aurora sorriu para o noivo, afastando uma das tranças que se soltaram do rabo-de-cavalo e olhando ansiosa para as cartas na mão da amiga. — Vá em frente, Eve. – disse Gobin, meio nervoso. Maeve piscou os olhinhos castanhos escuros para ambos, afastou os curtos cabelos do rosto e estralou os dedos duas vezes antes de começar a passar as cartas. — Uma carta para sua mãe, deve ser alguma cliente ansiosa por outro vestido – ela começou a falar e passar os envelopes — Uma carta do seu trabalho, outra carta para sua mãe, ainda com uma observação “isso é uma emergência de moda!”, uma carta do meu trabalho... – ela passou o envelope e um papel dourado reluziu como última correspondência, o nome escrito nele em vermelho era Gobin Speir. Três arquejos diferentes foram dados, Maeve deixou a carta cair, Aurora começou a chorar e Gobin simplesmente desligou, ele não conseguia sequer respirar, apenas encarava seu nome em vermelho, seu destino, sua carta da morte, encarando-o, debochando de sua inocência. — Bin... – chamou Maeve, se virando para ele que não respondeu — Gobin, por favor... Ele a olhou, mas não disse nada, passou os olhos direto para Aurora, que apenas mirava aqueles olhos rosa-chá cheios de lágrimas para ele. — Gobin. – tentou Maeve, outra vez, piscando freneticamente para evitar chorar. — Não. – foi o único sussurro que ela recebeu em resposta. Gobin pegou a carta dourada do chão e saiu, simplesmente saiu, sem sequer olhar para trás. Maeve ficou encarando a silhueta do amigo se afastar mais e mais, então parou de piscar e deixou o chão acolher suas lágrimas. — Eve... – murmurou Aurora — Eve, por favor me diz que isso... que isso não é real. — É real... – respondeu a outra, no mesmo tom — Eu segurei a maldita carta dourada com o nome do meu melhor amigo... Isso é tão... – ela engasgou as palavras e as molhou com mais lágrimas. — Vou atrás dele, Rora. Pode vir se quiser. Ela não respondeu. Maeve se levantou, simplesmente jogou as outras cartas no chão e começou a correr para onde julgava que Gobin pudesse estar. Ela dobrou a esquina da padaria, contornou o quarteirão da forja em que ele trabalhava e desceu por cinco minutos até o Lago dos Desejos. Ele estava lá, sentado na margem com os pés submersos e a carta na mão. Devagar, Maeve se aproximou e se sentou ao lado do amigo, tentando ser o mais silenciosa possível. — Não finja que não está aqui, Eve. – resmungou ele. — Estou tentando te dar espaço. — Bem, você está sentada do meu lado. Isso não me dá espaço nenhum. – continuou resmungando. — Por que veio? — Fique bravo o quanto quiser, Gobin Speir, mas não vou sair do seu lado. E a Aurora também não, mas você a deixou completamente atônita quando saiu simplesmente dizendo não. Ele pendeu a cabeça para frente e suspirou, Maeve continuou o encarando. — Queria que eu ficasse lá olhando para cara da minha noiva sabendo que eu ou simplesmente entrar numa carruagem para morrer, Maeve? – ele a encarou, fazendo-a engolir o castanho choroso de seus olhos. — Eu não quero que ela me veja assim, droga. Não quero que você me veja assim. — Não pode decidir isso. Somos sua família. — Eu vou morrer, Eve. Em 24 horas eu vou morrer, não acha injusto pelo inferno que as últimas lembranças que vou levar para a Passagem são minhas duas garotas favoritas se debulhando em lágrimas?! – indagou ele, desesperado. Maeve inspirou e expirou, balançando as mãos para se acalmar. Não era mesmo justo que essas fossem as últimas memorias de Gobin, mas era mais injusto ainda que a carta estivesse endereçada a ele, não quando tinham pessoas horríveis que mereciam morrer de verdade. Gobin não era uma dessas pessoas, ele era um homem bom, esforçado, carinhoso, amigável, e o amor da vida da melhor amiga dela. Ele não merecia aquela porcaria de carta, e pronto. — Não... – suspirou ela — Eu só... Eu... Gobin, essa merda... Isso... – lágrimas vazaram por seus olhos sem que ela pudesse evitar. Gobin fez que sim e a puxou para um abraço, apertando-a com toda a força contra o peito. — Eu sei, Eve... Eu sei. – afastou-se o suficiente para olhar ela nos olhos — Me promete que vai se cuidar, que vai cuidar da Rora, você sabe o quanto eu amo aquela garota, precisa mantê-la inteira depois que eu morrer, precisa se manter inteira. Ela chorou, simplesmente não respondeu e chorou. — Isso é tão injusto... É injusto demais! — Sei disso... – ele encarou a carta — Vou atrás da Rora, joga essa porcaria fora, por favor. – jogou o papel dourado para ela e se levantou — Vejo você em casa, Eve. Ela não conseguiu responder. Sr. Gobin Speir, O senhor está irascivelmente convocado para comparecer à Framedon com o objetivo de conhecer o príncipe Eldur. Até Breve. Eles escreveram aquilo com tanta naturalidade e indiferença que Maeve chegou a ficar nauseada por apenas uma frase. Era horrível demais que seu melhor amigo tivesse recebido aquela carta, mas conseguiu ficar ainda pior quando ela o viu sendo levado pela carruagem, sendo posto em uma sala escura sozinho até que o calor do espaço revelasse uma sombra vermelha, sombra essa que o encarava, como se o conhecesse, como se... como se... como se fosse ele. Maeve vomitou no lago, odiando mais uma vez aquelas porcarias de visões. Então se levantou e rumou para casa, queria chorar a morte eminente do amigo enquanto pudesse ao menos se lembrar do rosto dele. Aurora parou de chorar enquanto caminhava de volta para casa, não queria entrar pela porta sabendo que a avó instantaneamente veria quão abalada estava, mas talvez não conseguisse evitar, assim como não conseguia evitar ficar girando aquele anel de ferro forjado por Gobin que o tinha dado a ela quando a pediu em casamento. Ela continuou andando, inspirando e expirando, puxando o ar, soltando o ar, tentando controlar aquele ataque de pânico horrível que não queria desaparecer, mas era em vão... Era em vão tentar fingir que o amor de sua vida não estava marcado para morrer, era inevitável fingir que não vestiria um luto eterno por isso, era inevitável fingir que não odiava com mais afinco ainda as malditas lendas, a maldita família Eldur, quem quer que fossem, e, principalmente, tentar fingir que não odiava aquele monstro canibal sádico. Porque, por Deus, ela odiava, e odiava tanto que parecia sentir o fogo reprimido do príncipe que forjou os vulcões que cercavam o reino. — Rora! – chamou uma voz, aquela voz... Os sentidos de Aurora voltaram ao normal e até lágrimas voltaram a cegar seus olhos. Ela parou e deixou Gobin a alcançar — Ah, Rora... Eu... Eu sinto muito. — Você sentiu... Sentiu que a carta era para você, não sentiu? – indagou ela. — Rora, não. Não faz isso. Ela segurou ambas as mãos dele, deixando o tom escuro como as noites de verão e chocolate dela se misturar com o tom mais claro da pele dele, então levantou os olhos para o universo castanho de Gobin. — Não tente esconder isso de mim, não me trate como frágil que não merece saber o que passa na sua cabeça. Já aguentei infernos, Bin... Por favor... Ele entrelaçou os dedos nos dela e liberou uma mão para tocar-lhe o rosto, então suspirou e fez uma afirmativa com a cabeça. — Não sei quais são os critérios desse monstro, mas eu senti sim, amor... Não sei como, nem porquê... Queria que eu estivesse errado. – ele uniu a testa na dela — Queria poder te dar a vida que sempre planejamos. Mas... – deu um riso sem humor — O “para sempre” as vezes é curto como um suspiro. Aurora caiu em lágrimas, agarrando Gobin pelos ombros com tanta força que seus braços tremeram. Seu corpo todo, na verdade, o choro era como um choque por ela toda e a dor era lacerante quanto múltiplas facadas. Gobin a abraçou com força também, tentando acalmar a ela e a si mesmo, mas sem sucesso. — Te amo... Te amo, Gobin. Vou amá-lo pelo resto da minha vida. – ela se afastou para olha-lo nos olhos — Espere por mim... — Sempre. – ele desfez o penteado dela, deixando as inúmeras tranças caírem como uma cascata castanha — Eu amo você Aurora Kalua. Então Gobin se afastou, devagar desentrelaçando os dedos dos dela, Aurora não disse uma palavra sequer enquanto o noivo dava um passo para trás, tocava seu rosto uma última vez e repetia sem emitir som algum que a amava. Ela não disse nada até que a figura simplesmente dele se tornasse um pontinho distante, então simplesmente deixou os joelhos irem ao chão, bem em cima de uma poça e apertou as saias do vestido enquanto chorava. Há anos, Mythibury não ficava mais tão comovida pelos Escolhidos... Até que alguém recebesse a carta dourada o reino era tomado pela tensão e pelo medo, mas assim que Framedon escolhia sua vítima da vez era como se o manto se dissolvesse sobre eles, que celebravam com sorrisos aliviados e recatados, mas isso não poderia valer para todos, jamais o faria. A pessoa que recebia a carta jogava o manto do luto sobre sua família e amigos e daquela vez Aurora o vestia. A espessa e terrível capa preta descansava em seus ombros, cobrindo seu coração, porém não somente de dor e tristeza, mas de raiva também. As lágrimas que cortavam seu rosto e o coração que sangrava em seu peito estavam tomados de raiva, por Gobin, por Mythibury e pelo bando de covardes que viviam naquele reino que apenas aceitavam aquela sina dos infernos sem fazer um movimento que fosse para muda-la. Ela secou as lágrimas e se levantou. Se ninguém se dignava a parar aquele evento horrível, ela o faria, não se importaria de ser aquela a atravessar o caminho até Framedon, não seria mais covarde como os outros. E estava mais do que disposta a trazer a cabeça do príncipe-monstro como troféu da vitória. Água barrosa pingou de seu vestido enquanto caminhava de volta para casa, o céu límpido fechou-se com nuvens escuras que choraram as lágrimas que ela não choraria mais. Aurora ergueu os olhos e deu um dos piores sorrisos de sua vida, decidia a fazer pior do que criar vulcões se não trouxesse Gobin e desse um fim na Escolha.

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