Bruno acordou no meio da noite, passou a mão pelo rosto para clarear a mente e voltar para a própria realidade. Olhou em volta do quarto, os meninos estavam em silêncio, a não ser por alguns roncos. Sentindo o coração bater acelerado, tentou lembrar do pesadelo, mas a mente dele parecia estar em branco.
Ele só tinha certeza de ter tido um pesadelo por causa do estado que se encontrava. Assustado e angustiado, com as mãos trêmulas.
Vira e mexe, Bruno tinha sonhos com a morte dos pais e acordava aos prantos, mas com o passar do tempo, tais pesadelos estavam se tornando cada vez mais escassos. Definitivamente, a dor de perder os pais estava seguindo seu curso natural, dando lugar apenas para a saudade. No entanto, outro tipo de pesadelo estava invadindo suas noites de sono.
O pesadelo que acabara de ter, que lhe havia causado tamanho desarranjo emocional, parecia real. Ele viu sua antiga casa e dentro dela Antônio em forma de lobo encarando Júlia com os dentes arreganhados e lambendo os beiços. Ele podia jurar que estava sentindo cheiro de cachorro molhado ao acordar, além da dor de mordidas pelo corpo.
Por mais que se esforçasse, ele não conseguia se livrar do pavor que sentiu com o malfadado sonho.
Ciente de que não conseguiria voltar a dormir, Bruno decidiu escrever mais uma carta para sua querida irmã, de quem sentia tanta saudade...
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Baixinha
Na última carta você me chamou de cabeça de abóbora e eu me lembrei de quando brigávamos e você ficava com as bochechas vermelhas de raiva e me chamava assim. A lembrança me fez sorrir sem que eu percebesse, mas aí ouvi um grito e me assustei.
Alguns meninos correram na direção do grito e eu quis saber o que era. Coloquei a carta no bolso e corri também. Cristóvão e dois amigos dele estavam batendo no menino novo e ele estava deitado no chão do banheiro com o rosto vermelho e os olhos arregalados.
Mana, foi assustador, ele não conseguia respirar. Lembrei-me de você e do que escreveu sobre ele e separei a briga.
O menino novo estava machucado e tinha sangue na testa dele. Cristóvão ficou furioso por eu ter me metido na briga e veio me bater, então bati nele até sangrar o nariz dele de novo. Os amigos dele tentaram se meter, mas eu bati neles também e eles correram de mim. O menino novo respirava ruidosamente e com dificuldade, eu achei que ele ia morrer ali mesmo, mas aí ele pegou uma coisa no bolso da camisa e colocou na boca, apertando desesperado com os olhos arregalados. Depois de alguns minutos, ele conseguiu respirar direito.
Ninguém veio ajudar, nenhum adulto. Os inspetores ficaram olhando e alguns até riram dele. Como podem?
Odeio esse lugar, odeio ainda mais os inspetores!
Eu acho que agora os amigos do Cristóvão tem mesmo medo de mim, pois deviam sempre que me aproximo. Sabe, acho que gosto disso, é bom que tenham medo mesmo, assim me deixam em paz.
O nome do menino novo é Gustavo, ele é o único que também está acordado aqui no quarto enquanto escrevo. Como sempre, ele está deitado lendo um livro com a ajuda de uma lamparina e os outros garotos caçoam dele por isso.
Um dos inspetores que viram a briga, o senhor Batista, contou tudo para o diretor. Cristóvão e os amigos dele ficaram de castigo, mas ninguém fez nada comigo. Ontem descobri o porquê. O diretor me inscreveu no boxe, sem me perguntar se eu queria. Eu estava pronto para dizer que não, mesmo que me batessem, não gosto deles e não quero fazer nada por eles, mas ele disse que eu posso ficar rico lutando.
Ele pensa que eu não sei que ele só quer se aproveitar de mim. Ele pensa que eu sou burro, mas eu não me importo com o que ele pensa. Vou aprender a lutar e assim posso conseguir sair daqui...
E descontar minha raiva em quem tentar me vencer.
Fala para o Ti que eu não quero os meninos da rua de baixo perto de você. Você faz bem em não gostar deles.
Te amo minha irmã,
Bruno
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Sorrindo satisfeito, Bruno colocou a carta debaixo do travesseiro. De lá retirou a foto que Júlia havia enviado e a abraçou, rezando para que ela, mesmo de longe, pudesse sentir o amor que sentia por ela.
Finalmente conseguiu dormir, insciente do que acontecia na casa onde nasceu...
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Júlia acordou no meu da noite assustada. Os gritos de tia Lúcia ecoavam pela humilde casa, somados aos de Antônio, que sempre lhe pareceram mais assustadores. A menina não fazia ideia da hora, nem mesmo de que estavam no meio da madrugada. Ela esfregou os olhos cansados com suas pequenas e encardidas mãozinhas. Não tendo ninguém para zelar por ela ou por sua higiene, Júlia passava dias sem tomar banho ou trocar de roupas.
Lúcia notava o estado da menina, mas não se incomodava. O aspecto digno de pena de Júlia apenas acrescentava mais desprezo ao que Lúcia sentia pela menina.
" Eu não quero saber dessa criança, como posso ter certeza que eu sou o pai?"
" Seu desgraçado! E quem seria o pai, huh?"
" Como é que eu vou saber? Não sei o que você faz o dia inteiro enquanto estou na rua trabalhando feito uma mula para te sustentar!"
" Eu sustento a casa com o dinheiro que minha irmã deixou para a menina, você não trabalha! Pensa que eu não sei o que VOCÊ faz? O dia inteiro na casa de madame ou atrás de rabos de saia!"
Barulho de algo quebrando se seguiu, além de gritos apavorados de Lúcia. Júlia colocou as mãos sobre os ouvidos, tentando abafar tais gritos. Ela estava tão assustada que correu na direção do quarto do irmão e tentou mais uma vez abrir a porta, em vão.
Júlia se abaixou lentamente, as costas contra a porta fechada, deslizando como se sentindo derreter. Ela, que já era tão pequena, miúda até mesmo para a idade, sentia-se ainda menor. Lágrimas rolavam pelo rosto, deixando estradas de tristeza desenhadas em meio a sujeira das bochechas da jovem menina.
Apertando as mãozinhas contra as orelhas, na tentativa de abafar mais o barulho vindo da cozinha, ela balançava para frente e para trás, com os olhos fechados.
" Cadê você, irmão? Você prometeu... você prometeu..."
— O que você está fazendo acordada a essa hora, no meio do corredor, menininha? Espiando os adultos?
Júlia abriu os olhos, assustada, se deparando com algo, ou melhor, alguém mais assustador do que qualquer bicho papão.
— Não, eu acordei com os gritos e-
— E correu atrás do irmãozinho delinquente? — Ele respondeu em tom de pergunta, com ar de deboche. O cheiro forte e desagradável de álcool invadiu as narinas da menina.
— Meu irmão não é delinquente! — Respondeu Júlia bravamente, embora sua voz não passasse de um sussurro rebelde e amedrontado.
— Ora, ora... quem diria, tão abusada e intragável quanto a tia! Não sabe que não deve responder m*l aos mais velhos?
— Eu... eu...
— Não vou aturar duas vadias debaixo do meu teto, me desrespeitando. Eu sou o homem dessa casa e vocês vão me respeitar! Sua tia querida recebeu a paga dela e quanto a você... Já está na hora de alguém te colocar no seu lugar, huh? Vai ser um imenso prazer para mim te punir, garotinha!