O dia amanheceu mais uma vez, e eu nem sequer tinha conseguido pregar o olho, como aconteceu nas duas noites anteriores a essa.
Eu tenho plena consciência de que preciso levantar e ir para a escola, mesmo com os olhos inchados e com o cansaço pesando em meus ombros.
Conseguia ouvir a movimentação na cozinha, minha mãe preparando o café da manhã para meu padrasto, José, ir trabalhar.
Todo dia era a mesma rotina naquela casa, eu sempre adorei a rotina, ela me confortava e me deixava segura. E quem não quer se sentir seguro?
Meu irmão, Rafael, por outro lado, odiava rotina.
Ele nunca tomava café em casa, e muito menos cumprimentava qualquer um quando saia, já estávamos acostumados.
Ele aceitou o fato da nossa mãe ter se casado de novo depois do sumiço do meu pai.
Pura infantilidade em minha opinião! Sempre acreditei que o mais velho deveria ser o mais compreensivo, mas com Rafael nada era normal.
Rafael não passava de um jovem problemático e revoltado, não se importava em chamar a atenção negativamente, e muito menos se importava com os sentimentos de nossa mãe.
Estávamos os dois, na mesma turma, terceiro ano do ensino médio, Ele havia repetido duas vezes por faltar demais, e eu estava cansada de ver minha mãe sofrer por isso, querendo vê-lo formado e arrumando um emprego decente, consequentemente formando uma família.
Eu já não tinha esperanças por ele.
Terminei de me arrumar e peguei minha mochila, havia passado uma maquiagem leve para esconder as olheiras, fui em direção á cozinha tomar o café da manhã antes de ir para a escola.
- Bom dia. - Falei baixo, com nem tanta empolgação como gostaria, mas foi o suficiente para ver o sorriso da minha mãe ao olhar para mim.
- Bom dia meu amor. - Ela respondeu e veio até mim me dar um beijo na bochecha, como ela fazia todos os dias. - Com fome?
- Um pouco. - Dei de ombros, olhando os pães na mesa, torrados com manteiga, do jeito que eu mais gostava. Fiz meu café com leite e comi meu pão torrado com requeijão, era a combinação perfeita para começar um dia turbulento.
- Marcos está precisando de atendente na loja de ferragens dele, se quiser posso te indicar. - Ouvi a voz de José, enquanto ele nem tirava os olhos do seu celular.
Nós não nos falávamos muito, apenas o básico, o que me deixava desconfortável por um lado, fazia seis anos que eles estavam casados e eu nem sequer conseguia ter i********e o suficiente com ele para conversas banais.
Já Rafael não trocava uma palavra sequer, era como se José fosse um intruso, alguém que não deveria estar ali.
- Pode ser, vou precisar juntar dinheiro pra faculdade. - Respondi, tentando ser aberta e lhe enviando um sorrindo doce, mesmo que eu tivesse certeza que ele não estava olhando pra mim.
- Já decidiu o que vai fazer? - Minha mãe se sentou ao meu lado, me observando terminar o café.
- Ainda estou em dúvidas. - Falei por cima, enquanto dava o último gole de café e olhava o relógio na parede. Precisava correr. - Preciso ir.
- Tudo bem, te amo querida. - Disse com um sorriso doce no rosto e eu lhe dei m beijo na testa e murmurei um "eu também" antes de correr.
Eu não estava atrasada nem nada, eu só queria ficar sozinha. Eles me enchiam de perguntas o tempo inteiro e por mais que eu amasse minha mãe incondicionalmente não tinha saco para ouvir suas lamentações.
Coloquei o fone de ouvido e coloquei uma música qualquer enquanto eu andava para a escola descendo as ruas do morro de Paraisópolis, observei as crianças brincando na rua enquanto caminhava. Não via a hora de terminar o colégio e começar uma faculdade, sair de São Paulo, conhecer novos rostos, viver novas experiências. Estava cansada daquele lugar e da reputação terrível que tínhamos ali..
Eu já não tinha nada que me prendesse ali, sabia que minha mãe estava feliz em seu casamento, meu irmão não era responsabilidade minha, ele era maior e precisava tomar rumo na vida, não tinha amigos, alguns colegas, mas nada que realmente me fizesse fazer outros planos de ficar ali, tudo que eu mais queria era ir embora.
Com meu irmão nos meus pensamentos eu cheguei à esquina da escola, vários alunos já estavam por ali aguardando o portão abrir para começar as aulas.
Foi quando eu vi meu irmão de longe conversando com um grupinho da escola nada agradável, eu sabia quem eram eles e saber que ele estava ali não era um bom sinal.
No mesmo instante eu semicerrei os olhos para saber se eu não estava vendo coisas demais, mas não tinha dúvidas, um moleque magricela, com um e setenta de altura e os cabelos mais pretos que carvão, não tinha como confundir.
Era ele.
Observei por um tempo e até tentei saber o que eles conversavam, mas era impossível, meu irmão falava rápido e eu não conseguia acompanhar o ritmo de seus lábios. Eu era péssima nisso.
Mas quando eu vi Rafael pegando um pacote da mão do rapaz que ele conversava foi quando meu sangue ferveu.
Ele tinha realmente enlouquecido?
- Ei! - Chamei enquanto andava na direção dele, alto demais para meu gosto, mas eu não me importava com aquilo. Seus olhos logo se encontraram com os meus e sua expressão de alegre foi para desconfiado no mesmo segundo. Ele se despediu dos caras que me encaravam com um sorriso nojento e eu apenas revirei os olhos para a situação. Observei Rafael andar em minha direção e eu não pude segurar a língua quando ele chegou mais perto. - Você enlouqueceu?
- O que você quer pirralha? - Seu tom ríspido, enquanto ele olhava ao redor preocupada com os olhares que os alunos em volta tinham. - Me deixa em paz, cuida da sua vida.
- Bom, você é meu irmão, e você está fazendo uma burrada que afeta a minha vida. - Falei, grossa e rude, apontando para sua mochila. - O que é? tá achando que isso vai te levar onde?
- Eu sou o irmão mais velho, não te devo satisfação. - Segurou meu braço com força, me puxando para a parede para se esconder para que ninguém falasse da situação que estava acontecendo ali. Os alunos já se dissipavam por que o portão havia sido aberto mas eu não estava me importando com aquilo. - Eu espero que não conte isso pra ninguém se não..
- Se não o quê?! - Incentivei ele a continuar sua ameaça. Ele estava achando que era quem? Ele não passava de um moleque mimado que não sabia aceitar o fato de que nosso pai não se importava com nossas vidas e tinha outra família. Não era para menos, olha o tipo de pessoa que ele havia se tornado, um belo exemplo de filho para se orgulhar, não era?
Quando ele iria crescer e perceber que a vida não gira em torno da sua cabeça e que ele precisava seguir sua vida? Precisava amadurecer e virar um homem de verdade que honra sua família e não trás desgosto como ele estava fazendo.
- Se não isso pode virar um problema. - Seus olhos se encontraram com os meus e eu não podia acreditar no que eu estava vendo, seus olhos vermelhos e pequenos de tanto fumar maconha. Além de vender, ele estava usando drogas para tornar aquele pesadelo em algo ainda pior do que estava.
- A que ponto chegamos, Rafael. - Falei com desgosto, tirando meu braço das suas mãos, arrumando a mochila nas costas. Olhava em seus olhos para que ele notasse a gravidade da situação mas era em vão, então eu apenas dei alguns passos para longe do mesmo para entrar e assistir a aula. - Que decepção..