Capítulo 04: Sepultamento

2591 Words
São Paulo, Terra Quando Elena olhou si mesma no espelho, o vestido preto já não parecia tão maravilhoso quanto no dia que o usou pela primeira vez. Havia sido um presente de Leonard, do dia em que eles completaram o primeiro mês de namoro. Lembrava-se exatamente daquele dia, como se tivesse sido o anterior. Haviam combinado de cozinhar eles mesmos. Fizeram nhoque recheado de queijo – que acabaram ser mais leves do que pareciam e muito deliciosos. Ficaram quase uma hora inteira enrolando a massa, até que finalmente as colocaram para assar no forno com o molho bolonhesa. Estavam na casa dele, o que não era muito comum, já que passavam a maior parte do tempo na dela – já que ela morava muito mais perto de passeios, como o parque do Ibirapuera e a Avenida Paulista. Elena não lembrava-se com toda certeza como ele a tinha convencido a tomar banho – ela nunca fazia isso na casa dele. Quando ela saiu, o vestido estava sobre a cama dele, esperando-a. Ele era preto e coberto de rendinhas na mesma cor, de davam um contraste diferente e apenas aumentavam a beleza dele. Acima dos joelhos e de mangas três-quartos, ele caia perfeitamente eu seu corpo. Mesmo com pouco tempo de namoro, ele sabia exatamente como agradá-la. – Uau. – Ele disse, parado à porta do quarto. – Eu já vi mulheres lindas, mas nenhuma te supera. – Devo descordar. – Ela respondeu, forçando seus lábios a não expressarem o sorriso; m*l sabia ela que se arrependeria. Se ela tivesse expressado mais, se soltado mais, teria sido mais feliz; mas, naquela época, tinham todo o tempo do mundo. – Como sempre. – Retrucou; havia algo de errado em seu tom, mas ela preferiu deixar de lado. – Mas você deve admitir que esse vestido é maravilhoso. Elena virou-se para trás, apenas para encontrar o batente da porta vazio. Seus olhos, que já estavam inchados de tanto chorar, resolveram verter mais água contra sua vontade. Ela não gostava de chorar; não gostava de demonstrar sentimentos no geral. Entretanto, a tristeza daquele momento era grande demais. Cada segundo que seu coração batia sem que o dele fizesse o mesmo era uma tortura. – Está pronta? – Sua mãe perguntou parada à porta, trazendo-a de seu devaneio. Secou as lágrimas com as costas das mãos, o que tirou uma careta de sua mãe. Havia lenços de papel espalhados pela casa inteira. Seguiram para o sedan que os aguardava do lado de fora, com um motorista emprestado de uma família amiga – seu falecido pai era político e cheio de amigos em todos os lugares. Nem Elena – que costumava dirigir – ou sua mãe estavam em condições de ficar atrás de um volante. Larissa imediatamente sentou em sua cadeirinha, que estava entre sua mãe e Elena. Durante toda sua vida, Elena fizera aquele caminho pelo menos quatro vezes por ano. Pegavam a rodovia em direção ao interior, passavam por cidades grandes, médias e pequenas. Até que finalmente deixavam o asfalto e seguiam por uma estrada de terra cercada por árvores. O imenso portão de ferro costumava estar fechado – quase que para exibir as águias nas duas portas; e sobre eles, o nome: Colégio Católico Padre Andersen – porém, a Diretora Zambrano ofereceu que o velório acontecesse ali, e os pais de Leonard não poderiam querer lugar melhor e mais significativo para seu namorado. Elena ficou surpresa com a quantidade de pessoas que compareceram ao velório. Leonard era tão quieto e estava sempre na dele, normalmente sozinho, ele não tinha muitos amigos. Ou pensava ela que não. Mas todos os alunos que se formaram com eles estavam ali. Scott, Alan, Lucian, Avary, Sophie, todos! Até mesmo Aaron Van Helsing, com quem Leonard tinha trocado meia dúzia de palavras, e Ashley estavam ali! Murilo, um grande amigo de Leonard que morava em Foz do Iguaçu, também comparecera. Elena não poderia estar mais lisonjeada. Além deles, estava toda a família dele, que Elena evitou conhecer por quase de um ano. Agora ela se arrependia daquela decisão. Se tivesse ido a todos os almoços de família que ele a havia convidado, eles teriam passado muito mais tempo juntos. Isso deu mais vontade de chorar. Cada momento que ela podia estar com ele, mas não esteve apenas por que ela não queria pesaram. Arrependimento é um sentimento c***l. Não houve qualquer palavra religiosa, pois todos sabiam que Leonard não era esse tipo de pessoa. Todavia, várias pessoas contaram sobre vários momentos que dividiram com ele, muitos dos quais Elena nunca tinha ficado sabendo. Se não conhecesse bem seu namorado, poderia dizer que ele tinha uma vida inteira secreta. Sorriu ao imaginar que Leonard era uma espécie de espião. Esperava que ninguém tivesse notado. Quando foi sua vez de falar, Elena foi até a frente. Do pequeno palanque montado, ela conseguia ver o caixão de cima. Estava fechado, pois sabia que era assim que Leonard iria querer. Nunca foi do tipo de chamar atenção. Procurou as palavras perfeitas, mesmo que não fosse escritora. Sabia que gostaria de contar uma história, apenas não sabia qual. Eles tinham dezenas delas. Foi difícil selecionar uma, mas ela conseguira naquela manhã, antes de colocar o vestido. – Leonard e eu temos incontáveis histórias. – Discursou, lutando para controlar as lágrimas que, mesmo depois de secas, insistiam em sair. – Contudo, nenhuma outra poderia demonstrar quem é... – Hesitou. – Foi Leonard. Uma vez, estávamos no Ibirapuera. Um ciclista se distraiu por um segundo, mas foi o bastante para atingir uma menina que cruzava a pista. Enquanto todos ligavam para emergência ou observavam, Leo sabia que havia uma ambulância próxima. Havíamos passado por uma. Então, ele correu o máximo que suas pernas podiam, alcançou os enfermeiros e os trouxe para socorrer a menina. – Uma lágrima escorreu em seu rosto, seu controle estava se esvaindo, por isso, precisava concluir a história imediatamente. – O que fez desse dia especial não foi o fato de ele buscar ajuda, qualquer um podia ter feito isso. Leo havia torcido o tornozelo algumas horas antes. E mesmo assim, ele não hesitou. Ficou quase uma semana comigo servindo de muleta, mas quando foi preciso, ele colocou outra pessoa a frente de seus próprios interesses e dores. As últimas palavras saíram em meio de gaguejos e lágrimas. De fato, por pouco não ficaram presas em sua garganta. Ela voltou a sentar-se em seu lugar, tomando cuidado em cada passo. Não podia tropeçar e virar motivo de risadas no meio do velório. Aos poucos, as pessoas foram se dispersando, seguiam para seus carros. Dali, iriam enterrar Leonard no Cemitério Parque das Paineiras, na região de Campos do Jordão, onde alguns outros colegas do Colégio Andersen haviam sido enterrados, inclusive ela. Elena odiava pensar no nome dela e, mesmo assim, estava fazendo uma das vontades de Leonard: ser enterrado com ela. Deixou isso de lado, mesmo que o ciúme a corroesse por dentro. Enquanto andava para seu carro, viu as dezenas de mesas no pátio a céu aberto. Uma memória de antes de seu namoro com Leonard veio à mente. Ela já gostava dele, mas ele estava de amizade com uma aluna nova, Caitlin, e isso a deixou com ciúmes. Então, Elena ficou com outro menino para tentar fazer o mesmo com Leonard. Como fora ingênua. Ver o caixão com o corpo dele sendo baixado para dentro daquele buraco quebrou o coração de Elena incontáveis vezes. As lágrimas escorriam pelo seu rosto incansavelmente, mesmo depois de tanto chorar e ela ter certeza de que eles estavam permanentemente inchados; mas prometeu a si própria que seria a última vez. Ela sabia que Leonard não gostaria que ela ficasse chorando daquele jeito. Sentiu falta de seu abraço, ele sempre a abraçava forte quando ela chorava, ainda que não fizesse muitas vezes. Ela abraçou seu corpo com uma das mãos, tentando controlar a tristeza, em vão. Sentiu uma mãozinha minúscula segurar sua mão livre. Era a pequena Larissa, sua irmã mais nova, de quatro anos. Elena sorriu tristemente, vendo a cara frustrada da pequenina por não poder fazer sua irmã mais velha sentir-se melhor. Sua mãe ficou ao seu lado e colocou uma das mãos sobre seus ombros; ela não era a melhor pessoa para dar apoio ou conselhos, mas ela sempre tentava; e isso era o bastante para Elena. Quando o pai de Elena faleceu anos antes, a mãe simplesmente não sabia como agir diante de sua própria tristeza e a da filha. O preletor, um senhor de oitenta e tantos anos, estava dizendo palavras reconfortantes à família; chegou a citar algumas coisas sobre céu ou lugar melhor, mas ela não costumava acreditar nessas coisas. Forçou seu coração a abrir uma exceção por Leonard; não adiantou, a dor era a mesma. A mãe dele chorava muito. O pai estava com a cara triste e inchada, como se estivesse chorando antes, mas agora ele estava firme consolando sua esposa. As irmãs dele também não paravam de chorar. Ela nunca tinha visto tanta dor em apenas um lugar, e olha que ela foi a enterros de amigos que morreram ainda mais precocemente do que Leonard, como Caio Harley e Luke Lucas; o primeiro suicidara-se no primeiro ano do colégio e o segundo morrera de uma maneira brutal e misteriosa, por motivos até hoje desconhecidos. Os coveiros passaram a jogar terra sobre o caixão assim que o caixão chegou ao fim do túmulo. As pessoas se dispersaram aos poucos, apenas os mais próximos assistiam o trabalho dos homens. Apenas os pais dele, as irmãs, os cunhados e Elena ficaram olhando até que a última pá de terra foi jogada e a terra ajeitada. A lápide de pedra foi fincada no chão, nela estava escrito: “Leonard Ross, amado por muitos, ouvido por poucos” Foi Elena que escolheu a frase, e o fez porque meses antes ele havia dito aquilo para ela numa conversa casual e um tano aleatória. Estavam deitados no quintal de um pequeno sítio que o avô materno de Elena mantinha em Araraquara, no interior de São Paulo. Sua família costumava fugir para lá quando o estresse da cidade tornava-se insuportável – mesmo depois da morte de seu pai. Naquele final de semana, porém, tinham ido sozinhos para comemorar a carteira de habilitação que Elena finalmente tinha conseguido tirar. Contavam as estrelas, que na cidade eram invisíveis. – No dia em que eu morrer – ela se lembrava perfeitamente da voz dele, pois estava gravada em sua mente e coração –, quero que esteja escrito na minha lápide: “Leonard Ross, amado por muitos, ouvido por poucos.” Vai ser minha última piada. – Ele disse, enquanto estavam deitados observando as estrelas do teto da casa dele. – Amor, nós dois sabemos que você não tem muitos amigos nem é muito bom com piadas. – Elena zombou. – Você que pensa. Tenho muitos amigos, eu só não sou tão chegado com eles o quanto você é com os seus. E você sempre está rindo das minhas piadas, por mais sem graça que sejam. – Isso é por que estou apaixonada, querido. – Foi sarcástica. – No seu enterro vai ter só sua família, e me refiro apenas a seus pais e irmãs, seus primos não devem nem se lembrar de seu nome. – E você? – Ele estranhou. – Até lá não vou mais estar com você. – Ela falou de modo a deixar suas intenções duvidosas; continha um sorriso. – Nossa. – Ele parecia genuinamente magoado. Elena estava sempre fazendo esse tipo de brincadeira. Piadas sobre deixá-lo ou procurar o príncipe encantado rico, lindo e estudioso que ela sempre sonhara. Eram essas e algumas outras coisas que faziam Leonard duvidar de seu amor por ele. m*l sabia ele que ele era o príncipe encantado dela, tudo bem que ele não era lindo, rico e estudioso; mas tinha o coração mais generoso, era rico em alegria e otimismo... Bem, ele não era estudioso em nenhum aspecto, mas ele não era do tipo que desistia do que queria facilmente. – Tô brincando, amor. – Ela o abraçou apertado, em um raro momento de doçura. – Vamos ficar junto pra sempre. – Ele sorriu. Elena não sabia se ele estava convencido ou não. – Me promete uma coisa? – Ela acrescentou após alguns minutos de silêncio. – O que? – Que vamos envelhecer juntos? – Sim. Prometo. – Leonard não hesitou nem um milissegundo. – Pinky promise? Ela estendeu o dedo mínimo pra ele. O mindinho dele abraçou o dela sem que Leonard parasse para pensar no quão grande e importante era aquela promessa para ela. – Pinky promise. – Ela nunca tinha visto um sorriso tão grande em seus lábios; ele, até mesmo, mostrava os dentes, algo que não era muito comum. Ela levantou sua cabeça de repente, apoiando-se no cotovelo. Beijou-o apaixonadamente; ele retribuiu com a mesma intensidade. Não levou muito tempo para que a mão dele passasse por toda a extensão de seu corpo. Sua mão foi confiantemente para debaixo de sua camiseta e abriu seu sutiã na primeira tentativa – ele ficara muito bom em comparação à primeira vez que tentara. A familiar e estranha sensação de sentir seus dedos apertando com força seus s***s era sempre gostosa, perdendo apenas para a sensação do amor que fizeram a seguir sob as estrelas.   Estava sozinha diante da lápide. Não tinha certeza de quanto tempo havia passado desde que todos haviam ido embora; de fato, nem percebeu quando seus sogros tinham ido. Ou seriam ex-sogros? Ela ajoelhou na terra recém-posta, que agora estava levemente húmida pela garoa suave que caía. Tomou cuidado para não sujar o vestido, mas foi em vão. Ela não se importou, já que o próprio Leonard não se importaria. Roupas sujam-se, roupas lavam-se. Ele sempre dizia isso quando iam a algum parque. – Parece que você estava certo. Você realmente tem muitos amigos, mas odiei a forma como você me mostrou. Porque tinha que morrer agora? – As lágrimas ainda saíram descontroladamente, ela deixou que rolassem se perguntando quando elas teriam fim e quebrando a promessa de minutos antes. – Por que você ficou na minha frente? Não era pra você morrer! Deveríamos envelhecer juntos! – Ela começou a chorar incontrolavelmente e a socar a terra com raiva e tristeza. Ela estava inconsolável. – Você prometeu! VOCÊ PROMETEU! – Ela gritou. Ela chorou por um tempo que pareceu durar horas e mais horas, mas que acabou quando alguém veio apanhá-la. Sua mãe levantou-a gentilmente pelos ombros; assim que estava de pé, deitou a cabeça no ombro de sua mãe e aceitou o abraço apertado que ela ofereceu. Caminharam devagar em direção ao carro preto, na frente do qual o motorista que tinham contratado esperava, todavia ele não estava sozinho e, pior, não parecia se dar conta disso. Um homem estava parado próximo à porta do carro. Era um velho de pele cinzenta que usava um terno preto com riscas verticais brancas; até mesmo a camisa e a gravata eram dessa cor. Elena notou que ele não usava sapatos, mesmo que estivesse pisando em um chão de pedra que, com certeza, deixaria marcas nas solas. O mais estranho de tudo isso eram os óculos escuros, que em nada combinavam. Quando falou, ela teve a sensação que suas palavras estavam em uma lápide, só que uma muito mais sinistra do que a de Leonard. – Senhora, preciso falar com sua filha por alguns instantes, sim? – O estranho sorriu com malícia.  
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