Amorielle X Messina
A manhã tinha uma luz pálida que atravessava as pesadas cortinas do quarto, banhando o ambiente em um tom dourado e quase etéreo. O silêncio era quebrado apenas pelo som ritmado dos sinos da Cattedrale di Sant’Agata, que ecoavam distantes, mas fortes o suficiente para fazer Ellis estremecer. Ela estava sentada em uma poltrona de veludo bordado, com Marco nos braços. Ele sugava com voracidade, completamente alheio ao mundo ao seu redor, envolto no calor e na segurança do corpo da mãe.
Ellis sentia o peso do momento em cada fibra de seu ser, mas escolheu ignorá-lo. Olhou para Marco, tão pequeno e vulnerável, e um sentimento de proteção tomou conta dela. Afagou os poucos fios castanhos do bebê e, com a voz baixa, quase como uma prece, murmurou:
— Meu menino... enquanto eu viver, prometo a você que nunca deixarei que seja infeliz. Eu moverei céus e terras pela sua felicidade.
Ela inclinou-se e depositou um beijo suave na testa dele, sentindo o cheiro inconfundível de bebê. Foi então que a porta se abriu.
Vittorio entrou no quarto, a presença dele sempre dominadora, preenchendo todo o espaço. Ele carregava Jason, o irmão gêmeo de Marco, nos braços com a mesma naturalidade de alguém que maneja uma arma: firme, seguro, mas com um toque de cuidado que poucos conseguiriam enxergar.
— Já fiz Jason arrotar — anunciou Vittorio com um meio sorriso, como se estivesse cumprindo uma missão crucial.
Ellis não tirou os olhos de Marco. Continuou embalando-o com movimentos lentos e ritmados, mas uma lágrima silenciosa escapou e deslizou por seu rosto.
— Marco já está terminando — respondeu, a voz carregada de algo que Vittorio não conseguiu ignorar.
Ele caminhou até ela, com Jason agora dormindo profundamente em seu colo, e abaixou-se para ficar ao nível dela.
— Não fique assim, Ellis. Não estamos sacrificando Marco. É só um batizado.
Finalmente, ela ergueu os olhos para encará-lo. Havia dor e indignação em seu olhar, algo que Vittorio reconhecia, mas preferia evitar.
— Um batizado que sela o casamento arranjado entre nosso filho e a filha de Matthew Jones.
A atmosfera na sala mudou. A expressão de Vittorio ficou séria, mas ele manteve o tom controlado.
— Você fala como se fosse algo r**m.
Ellis estreitou os olhos, incrédula.
— E não é? Nosso filho não poderá escolher a quem amar, a quem dividir a vida. Ele será forçado a casar com alguém que nunca teve a oportunidade de conhecer, que ele nem sabe se é a pessoa certa para ele. Isso é c***l, Vittorio.
Ele suspirou, colocando Jason cuidadosamente no berço próximo antes de voltar sua atenção total para ela.
— Ellis, nós também não tivemos escolha. Ou melhor, você não teve. Eu comprei você. Nosso casamento foi um acordo em troca da dívida do seu irmão. E veja onde estamos agora: casados, com quatro filhos lindos e um amor que, pelo menos para mim, é eterno. Ou será que você não pensa assim?
Ellis piscou lentamente, sentindo o peso das palavras dele.
— Eu sei disso, Vittorio. Sei melhor do que ninguém. Mas nós somos a exceção, e você sabe disso. Para que isso acontecesse, muito sangue foi derramado, muitas vidas foram destruídas.
O silêncio que se seguiu foi cortante. Vittorio aproximou-se mais, sua voz agora carregada de um tom grave e definitivo.
— Você precisa entender que não temos escolha. Ou Marco se casa com Margareth quando ambos completarem dezoito anos, ou essa faida continuará até que todos pereçam. E quando digo todos, incluo nossos filhos: Donna, Jake, Jason e Marco. É isso que você quer?
Marco começou a chorar, como se sentisse a tensão que pairava entre os pais. Ellis voltou sua atenção para ele, tentando acalmá-lo enquanto as lágrimas voltavam a inundar seus próprios olhos.
— Eu sei... — murmurou, a voz embargada.
Vittorio observou-a por um momento, seu rosto duro suavizando-se ligeiramente.
— Então só nos resta aceitar. Um sacrifício pela vida de todos. Além disso, Marco não vai morrer, Ellis. Ele será líder em outra família, o que é uma vantagem para nós.
Ellis ergueu os olhos novamente, com um brilho de desafio.
— E o coração do nosso filho? Qual é a vantagem nisso?
Vittorio abriu a boca para responder, mas foi interrompido pela entrada repentina de Jake e Donna. Os dois correram para dentro do quarto, rindo e falando alto, seguidos por Sofia, prima de Vittorio, que parecia exasperada.
— Eu tentei impedi-los, mas eles estão ansiosos demais — disse Sofia, forçando um sorriso enquanto ajeitava o vestido. — Além disso, o carro já está esperando para nos levar à catedral.
Ellis suspirou, entregando Marco aos braços de Sofia por um momento. Ela se levantou, alisando o vestido preto que usava, o tecido pesado caindo perfeitamente sobre suas curvas.
— Já estamos indo — respondeu com uma calma forçada.
Com movimentos precisos, ela pegou o véu preto e colocou-o sobre a cabeça, ajustando-o com cuidado. Em seguida, tomou Marco de volta nos braços, segurando-o com a mesma ternura de antes.
Enquanto saíam do quarto, a família toda em um cortejo silencioso, Ellis sentiu o peso do destino sobre seus ombros. Aquele dia marcaria o início de um caminho sem volta para Marco. Mas, em seu íntimo, ela sabia que lutaria até o último suspiro para garantir que, de alguma forma, ele tivesse a chance de ser feliz.
Ao lado dela, Vittorio caminhava com uma expressão séria, o rei implacável que ela conhecia bem. E ainda assim, em algum lugar profundo de seus olhos negros, Ellis viu um vislumbre de algo que parecia arrependimento.
Os sinos da Cattedrale di Sant’Agata continuavam a soar ao longe, como uma lembrança constante de que, naquele mundo, até mesmo os inocentes pagavam o preço de manter a paz.
***
Mia Conway Jones Messina ajeitava o véu n***o com dedos firmes, mas os olhos não se desviavam de seu reflexo no espelho. O vestido preto justo abraçava suas curvas de forma impecável, contrastando com a luz suave que entrava pelas janelas. O tecido, uma escolha deliberada, irradiava força e luto. A renda fina do véu caía parcialmente sobre seu rosto, dando-lhe um ar de mistério e uma intensidade que era quase sufocante.
Ela ajustava a peça com paciência quando a porta se abriu. Matthew entrou no quarto carregando Margareth, a pequena filha deles. A bebê, tão inocente, tão alheia às complexidades do mundo ao seu redor, vestia um longo vestido branco de batizado, com uma delicada faixa de pérolas sobre os cabelos cor de mel. Sua pureza era quase dolorosa de se olhar naquele momento.
Matthew parou na entrada e seus olhos imediatamente captaram o vestido da esposa. A surpresa em seu rosto logo se transformou em algo próximo de indignação.
— Você só pode estar brincando, Mia — ele disse, sua voz grave, mas controlada. — Vestido preto? No batizado da nossa filha?
Mia deu um último toque no véu antes de se virar, seus olhos verdes cravando-se nos dele como punhais.
— E por que não? — ela perguntou com frieza, cruzando os braços.
Matthew balançou a cabeça, visivelmente frustrado. Ele segurou Margareth com mais cuidado, como se quisesse protegê-la do tom tenso que começava a dominar o ambiente.
— Porque não é um velório, Mia. É o batizado da nossa filha.
Mia avançou dois passos e, com um gesto delicado, tomou Margareth dos braços do marido. O contato com a filha suavizou seu semblante por um breve instante, mas a dureza voltou tão rápido quanto havia sumido.
— Para mim, é um funeral, Matthew. O funeral da vida que eu sonhei para minha filha.
A resposta pegou Matthew de surpresa. Ele parecia lutar para processar aquelas palavras, os músculos do maxilar ficando mais tensos.
— Não fale isso — ele rebateu, o tom beirando o desespero. — Não diga isso sobre o futuro da nossa filha, Mia.
Mia segurou Margareth contra o peito, balançando-a levemente para acalmá-la, mesmo que a bebê já estivesse tranquila.
— E como não dizer? — ela retrucou, seus olhos brilhando com raiva. — Porque é exatamente isso que está acontecendo. E a culpa é sua.
Matthew deu um passo à frente, seu rosto agora a centímetros do dela.
— Eu tive que fazer isso para proteger a nossa família, Mia.
Mia balançou a cabeça, seu rosto uma máscara de fúria contida.
— Proteger a nossa família? Entregar o nosso bem mais precioso aos Amorielle é proteger? — Sua voz estava repleta de desespero e raiva.
— Já expliquei isso centenas de vezes, Mia. Ellis matou Ângelo Messina, Grigory e Sergei, os líderes da Kurganskaya Bratva. Ellis não deixaria ninguém vivo que pudesse ameaçar a família dela novamente. Ainda mais se for de sangue Messina. — Matthew tentou manter a calma, mas a frustração transparecia.
Mia continuava balançando Margareth, mas seus olhos não deixaram os de Matthew.
— Ellis é norte-americana como eu. Não é da nossa cultura resolver as coisas assim.
Matthew soltou uma risada sem humor, balançando a cabeça.
— Ellis é casada com Don Vittorio, Mia. Por ele, ela se tornou a chefe da família Amorielle, passou por um ritual na Nigéria que deixou um homem praticamente morto, e fez de Tommaso Grecco pedaços jogados no mar por ter matado o irmão dela sem querer. E você acha que ela não faria o mesmo com a gente? Acha que ela não nos eliminaria quando soubesse que o irmão dela foi morto por minha culpa? Por que eu pedi para que matassem ele? — Matthew segurou o rosto de Mia com as mãos, obrigando-a a olhar para ele. — Ellis é capaz qualquer coisa para proteger a família dela.
A menção a Ellis fez Mia engolir seco. Ela sabia que a mulher era formidável, mas não queria acreditar que chegaria tão longe. Antes que pudesse responder, seus pais, Lilly e James Conway, entraram no quarto. Lilly se aproximou da filha, notando a tensão no ar.
— Está tudo bem, Mia? — perguntou Lilly, sua voz suave e preocupada.
Mia forçou um sorriso e entregou Margareth para a mãe.
— Está tudo ótimo, mãe. Leve Margareth para o outro cômodo, por favor. — Mia ajeitou o vestido, tentando parecer calma. — Eu e Matthew ainda temos alguns ajustes a fazer.
James olhou desconfiado para o casal.
— O carro já chegou com os padrinhos de Margareth. — informou James.
— Nós já vamos. — respondeu Mia, evitando o olhar de seu pai.
James guiou Lilly e Margareth para fora do quarto, deixando Matthew e Mia sozinhos novamente. Mia fechou os olhos por um momento, respirando fundo antes de se virar para Matthew.
— Eu entendo o que você está dizendo, Matthew, mas isso não muda o fato de que você tomou a decisão sem me consultar. — Mia abriu os olhos, sua expressão mostrando a dor que ela sentia.
Matthew segurou a mão de Mia, apertando-a gentilmente.
— Confie em mim, Mia. Eu fiz isso pelo o bem da nossa família. Tudo vai dar certo no final. — Sua voz estava cheia de determinação.
Mia soltou a mão de Matthew e ajeitou o véu mais uma vez.
— Para o seu bem, é melhor que essa história tenha um final feliz. — disse Mia, sua voz fria e distante.
Ela saiu do quarto, deixando Matthew para trás. Matthew olhou para o espelho por um momento, torcendo para que suas decisões estivessem corretas. Ele se virou e seguiu Mia, deixando as incertezas para trás.
***
O som dos sinos ecoava pela Cattedrale di Sant’Agata, misturando-se ao murmúrio baixo das coroinhas e pajens enquanto o Arcebispo Lorenzo Caracciolo ajustava os últimos detalhes no altar. Ele era um homem de meia-idade, com a postura ereta e os olhos cansados, mas atentos, refletindo décadas de experiência na mediação de conflitos não apenas espirituais, mas também entre aqueles que viviam na sombra da lei. Naquele dia, porém, ele sentia um peso maior sobre os ombros. Apesar de ter realizado batizados por quase meio século, o que ele estava prestes a conduzir naquela manhã era singularmente importante. Não se tratava apenas de um batizado, mas de um evento que entrelaçaria duas vidas em um casamento destinado a selar a paz entre as famílias e pôr fim à Faida. A Cattedrale di Sant’Agata, com sua história e majestade, era o terreno neutro ideal para esse evento.
Ele terminou de posicionar o cálice dourado no centro do altar, olhando ao redor para se certificar de que tudo estava perfeito. A catedral estava impecável. Os vitrais que contavam histórias dos santos brilhavam com a luz do sol matinal, e o cheiro suave de incenso impregnava o ar. Ele fez uma última oração silenciosa, pedindo por paz, enquanto os sinos da igreja anunciavam a chegada dos convidados.
Lá fora, o ronco grave dos motores começou a se aproximar. O primeiro carro parou lentamente, e homens de preto desceram em formação, imediatamente tomando posições estratégicas ao redor do veículo que seguia. O som das portas sendo abertas ecoava na praça em frente à catedral. Do segundo carro, Vittorio Amorielle desceu, estendendo a mão para sua esposa, Ellis, que saiu graciosamente, trajando um vestido preto que combinava com seus olhos frios e calculistas. Atrás deles vieram seus filhos, Donna e Jake, ambos impecáveis, com a seriedade no rosto que pelo pouco de convivência com a máfia haviam lhes imposto.
Outros carros pararam, e a comitiva Amorielle saiu, exibindo uma unidade que intimidava até os observadores mais neutros. Sofia Amorielle desceu segurando Jason nos braços, acompanhada por Alessandro, o padrinho do batismo. Mirela Cordopatri segurava Marco, enquanto Massimo permanecia em alerta. A presença de Vittorio e seus primos, Alessandro Lucas, Carlo, Marco e Giovanni, com suas esposas, era um lembrete visual de que a família estava ali em peso, pronta para defender sua posição, caso fosse necessário.
Quando todos estavam reunidos, Vittorio ergueu o olhar para os céus por um momento e depois voltou-se para o grupo:
— Entrem. Não vamos perder tempo aqui fora.
Mas antes que pudessem se mover, o som de motores em alta velocidade ecoou pela praça, atraindo olhares atentos e despertando tensão entre os homens de Vittorio. Três carros pretos chegaram abruptamente, freando de forma dramática, e em instantes, homens armados saíram dos veículos.
— State indietro! — ordenou um dos capangas de Vittorio, levantando sua pistola.
O ambiente congelou. As armas foram sacadas quase como um reflexo, apontadas em todas as direções. O próprio Vittorio puxou sua pistola dourada, apontando-a para o grupo recém-chegado.
A tensão atingiu o ápice quando Matthew Messina desceu do segundo carro com as mãos erguidas, tentando dissipar o caos.
— Calma, calma! Não viemos para começar uma guerra.
Vittorio estreitou os olhos, furioso, mantendo a mira firme.
— Messina, você enlouqueceu ao chegar assim?! — gritou Vittorio, furioso, com sua pistola dourada firmemente apontada.
— Foi um m*l-entendido. — Matthew respondeu, em tom firme. — Peço desculpas, Don Vittorio. Estávamos com medo de chegar atrasados, por isso viemos correndo. Peça aos seus homens para abaixar as armas.
Vittorio não cedeu, sua arma ainda apontada com firmeza.
— Só abaixarei as dos meus quando seus homens abaixarem as deles. Vocês chegaram afoitos demais para quem vem a um batizado.
Matthew suspirou e balançou a cabeça.
— Eles só apontaram porque os seus apontaram primeiro. Não se deve apontar uma arma sem a intenção de atirar.
Vittorio riu, um som frio e vazio.
— Exatamente. Não se aponta uma arma sem intenção de usá-la. Então me diga, Messina, pretende usá-las?
Matthew deu um passo à frente, suas mãos ainda erguidas.
— Não viemos para brigar, Don Vittorio. Estamos aqui para o batismo de minha filha. Não vamos transformar isso em um campo de batalha.
Vittorio engatilhou a pistola, seus olhos faiscando de raiva.
— Vou contar até três, e se não abaixarem as armas, vamos atirar.
Nesse momento, Mia desceu do veículo, visivelmente nervosa.
— Matthew, o que está acontecendo? — perguntou ela, olhando ao redor.
— Nada, só uma conversa — respondeu Matthew, tentando tranquilizá-la.
Antes que a situação pudesse escalar ainda mais, uma nova voz irrompeu.
— Per l’amore di Dio! — gritou o Arcebispo Lorenzo Caracciolo, saindo apressado da igreja.
O sacerdote ergueu as mãos como se estivesse tentando separar dois cães prestes a se atacarem.
— Esta é a casa de Deus! Abaixem suas armas ou o batizado está cancelado!
Houve um silêncio tenso. Os homens de cada lado trocaram olhares, esperando as ordens de seus líderes. Lentamente, Matthew fez um sinal para que seus homens abaixassem as armas. Relutantes, eles obedeceram. Do lado oposto, Vittorio ainda hesitou, mas após um longo momento, abaixou sua pistola dourada, mantendo os olhos fixos em Matthew como se quisesse gravar cada detalhe de seu rosto.
Matthew respirou fundo e se virou para os carros restantes.
— Podem descer — disse ele.
Lilly e James Conway desceram, carregando a pequena Margareth nos braços. No terceiro carro, os padrinhos escolhidos por Matthew, Catarina Piromalli e Dante Mancuso, desceram também. Vittorio observou os recém-chegados com interesse.
— Interessante escolha de padrinhos, Messina. Não esperava menos de você.
Matthew manteve o olhar firme.
— Também achei interessante você trazer a família toda, Amorielle. Não sabia que este era um evento para a galeria.
Vittorio riu baixinho, seu tom carregado de desdém.
— Pelo menos eu ainda tenho uma família completa.
O arcebispo, desejando pôr fim àquela tensão, interveio novamente.
— Agora, se todos terminaram de medir forças, podemos entrar na catedral e realizarmos as cerimônias? — o Arcebispo disse, cruzando os braços.