Linda mansão, imensa, digna de um artista de cinema. As paredes com partes forradas de pedras grandes, em outras pintadas de branco. Telhas vermelhas novas que quando o sol incidia mostravam sua cor mais viva. Caramanchões de primaveras, uma de cada cor, espalhadas em cada lado da varanda da casa.
Os jardins gramados viçosos, com vegetação exuberante. A mansão era em frente ao mar de águas azuis-esverdeadas que se misturavam com uma praia de areia quase branca.
Renata estava na grande sala, andando de um lado para o outro. A ansiedade remexia seu estômago. Lorenzo não voltara para casa. Já passava das três horas da manhã. Se fossem uma família “normal”, ela não estaria preocupada, mas não era o caso dos Bertizzollo...
1990, Miami Beach
Renata Willians Bertizzollo
Silêncio constrangedor encheu a sala quando eu olhei para o soldado Enrico e depois para Enzo. Ambos sustentaram o meu olhar.
— Lorenzo está morto, não está? — perguntei para eles.
Eles me olharam por um tempo. Enzo, mostrando toda a sua raiva, me disse:
— Sim.
Engoli em seco, levantando automaticamente minha mão até a garganta acima do decote do meu roupão. Era madrugada, eu já me preparava para dormir.
— Como... como isso aconteceu?
— Os Sebastians fizeram uma tocaia e o mataram.
— Uma tocaia? Uma tocaia onde?
— Não temos muita informação. Com certeza, a polícia irá te procurar. Mera formalidade.
Mais essa!
Eu afastei meus olhos, precisava quebrar o contato. Eu estava triste por mais uma alma ir para o inferno. Sim, pois esse era o destino de homens como meu marido. Passei a mão no meu braço dolorido, me lembrando da nossa recente briga. O temor estava dentro de mim. Gelando meus ossos.
Com meu marido morto, eu seria morta também. Era questão de tempo. Não pelos nossos inimigos, mas pela nossa “própria gente”, pensei, irônica. Se eles fossem bons, poderiam resolver me trancafiar em uma gaiola dourada pelo resto da minha vida. Residia neles o receio de que eu futuramente me envolvesse com um dos nossos inimigos, ou que eu me aliasse à polícia e contasse tudo que eu sabia.
E eu sabia demais. Todo esse mundo podre. Sempre participei das festas ao lado de Lorenzo. Sabia o nome dos homens que faziam a distribuição das drogas, onde elas eram guardadas, os contatos. Conhecia os locais das jogatinas ilegais.
O que eu era para eles?
Com a morte do meu marido, deixei de ser da família. Não tínhamos filhos e eu não tinha o sangue azul deles. Era apenas a esposa de um dos Capos.
Além de tudo isso, tinha Vitor. Estremeci quando me lembrei dele.
Ivan, meu mordomo, entrou nessa hora. Deve ter se perguntado o que estava acontecendo, mas não disse nada e se afastou com sua diplomacia clássica, agindo naturalmente, como se receber homens na madrugada fosse algo comum.
Pensei novamente na minha condição.
Eu precisava falar com o Consigliere!
— Preciso falar com Antony. Por favor — supliquei.
Enzo, o rapaz de quase dois metros de altura, de compleição robusta, se aproximou de mim dizendo:
— Você está louca? Não é o momento agora! Don acabou de perder um filho! Vamos enterrá-lo, e depois cuidaremos de você!
Cuidarão de mim? Sei exatamente como!
Enrico, um pouco mais baixo e mais sagaz, disse, calmo:
— Logo, você falará com ele. Logo, logo. Espere!
Eu conhecia uma mentira de longe. Eu me tornei mestra delas. Elas se infiltram na verdade, conquistam.
Eu assenti para ele, como se acreditasse.
— Está certo.
— Resolveremos tudo em relação ao enterro e viremos te pegar.
Assenti para eles, séria. Quando eles foram embora, eu envolvi meus braços em volta de mim, em um abraço apertado.
Com certeza Don Henrico Salvatore Bertizzollo estava enfiado no seu escritório em sua casa em Long Beach, sentindo-se sem chão. Perder um dos filhos não era fácil, mesmo sabendo que viviam num mundo cão e que isso poderia acontecer uma hora ou outra. Pois esse era o destino de uma vida bandida.
Com a morte do caçula Lorenzo, com vinte dois anos, haviam sobrado mais três filhos. O mais velho, Vincent. Trinta anos. O único que eu não conheci. Ele morava em Las Vegas. Cuidava de um grande cassino. Pelo pouco que ouvi dele, ele era admirado por seus irmãos mais jovens. O único que recusara ficar sob a direção de Don Henrico. Segundo Lúcia, uma das primas por parte de mãe da família Carbonário, ele talvez viesse a ser o novo Don. Escolhido para dirigir o negócio da família, quando chegasse o momento propício. Ele possuía a força tranquila e inteligência do seu grande pai, o instinto inato para agir de tal maneira, de modo que os homens não tinham outro jeito senão respeitá-lo.
Lucas, tinha vinte e cinco anos, mais de 1,80 de altura, e sua cabeleira n***a era abundante. Bonito, como toda a família. Ele tinha a constituição forte, outro predicado de família. Apesar de todas essas virtudes, ele não possuía a força animal de um líder ou condutor de homens e por isso Don Salvatore não colocava expectativas nele que no futuro ele se tornasse o novo Don.
Vitor vinte e sete anos, 1,85 de altura, tinha as feições severas. Seu cabelo bem preto era penteado e liso. Sua pele era morena-oliva. Bonito. Seu rosto era acentuadamente inteligente. Obediente, leal, sempre a serviço do pai. Mas o que ele tinha de bonito, tinha de podre por dentro. Não prestava!
Dos três, só Vitor era casado e tinha um filho.
Como eu me uni a essa família?
Lorenzo me apresentou a ela, ocultando de mim todo seu lado n***o e sórdido. O fel extremamente amargo me foi negado.
A verdade?
Eu me encantei com eles.
Vi o amor entre os irmãos, a família em volta da mesa, unida. Muita vivacidade, muitos sorrisos. Grande alegria que eu não estava acostumada a ver. Tudo vindo de suas naturezas sicilianas. Uma família linda...
Eu era órfã, fui criada por uma tia que morreu quando eu completei dezoito anos de idade. Herdei por direito sua casa, já que ela não tinha filhos. Trabalhava no banco Sadabell Miami Branch quando conheci Lorenzo. Namoramos dois meses e eu fiquei grávida. Casamos logo em seguida. Tivemos uma bela festa italiana. Um casamento era justamente do que as pessoas precisavam para mostrar sua alegria.
Recém-casada, grávida. Tudo parecia um sonho. Passei a morar numa mansão, cheia de empregados. Lorenzo sempre gentil comigo...
Então, foi como se uma nuvem n***a pairasse sobre nós. Com uns dois meses de gestação, eu perdi nosso bebê. Foi duro enfrentar essa realidade. Mas o pior estava para acontecer…Eu descobri, de um jeito muito r**m a maior fraqueza de Lorenzo: a ira. Sem calma necessária para lidar com os negócios, ele acabava descontando em mim. Me tratando friamente, ou rispidamente com palavras atravessadas. Eu, como uma i****a, me trancava no quarto e chorava. Ficamos meses assim, quando finalmente pedi o divórcio, e foi aí que eu o conheci.
Nesse dia ele lembrou-me os Vikings, que, por direito divino, mantinham o poder de vida e morte sobre os seus semelhantes.
Ele me olhou com aquele rosto cheio de um poder orgulhoso, frio, arrogante. Ele arqueou as sobrancelhas como se estivesse saudando-me pela minha audácia de querer me separar dele, e logo veio o primeiro t**a no rosto, de uma série que viriam ao longo do nosso casamento.
Lembro-me até hoje de suas palavras:
— Divórcio? Não se divorcia de um Bertizzollo. Mantenha-se na linha. Você é minha esposa. Está ouvindo bem? Os rapazes... ficarão de olho em você. Portanto, não é bom instigá-los. Você sabe... está avisada. Entendeu? Você pensava o quê? Quem entra nessa família, jamais sai dela. Entendeu? Eu tenho mais o que fazer agora do que perder meu tempo com uma ragazza teimosa e inconsequente como você. A più tardi!
Eu me tornei uma prisioneira. Percebi então, que não dominar uma mulher ou um divórcio na família era encarado com uma fraqueza.
Acredito que Lorenzo nunca falou com seus pais ou familiares os problemas que enfrentávamos no nosso casamento. Mas Vitor sabia que seu irmão tinha um temperamento genioso e explosivo. Ele vivia me assediando por isso. Mas isso eu não queria nem me lembrar.
Evitando filhos, como uma marionete, fiquei ao lado de Lorenzo. Aos poucos, ouvindo uma conversa baixa aqui, outra ali, atenta às ligações de Lorenzo, fui descobrindo seu mundo podre. Com um ano de casamento, ele já não me escondia mais nada.
Um dia, bêbado, ele se abriu comigo. Foi aí que ele me contou do submundo em que eles viviam. Todo seu negócio sórdido, me falou da disputa pelo tráfico, me falou de seus inimigos.
Todo o encantamento que eu tinha pela família Bertizzollo desmoronou ali, naquele momento. Embora eu não fosse covarde ou fraca, eu me intimidei e passei a temê-los.