— Sim. Vamos soltar o seu cabelo, vamos comer até ficar cheias e se quiseres até posso fazer-te companhia até adormeceres! — falo enquanto distribuo vários beijos nela, ela solta gargalhadas com aquela voz de criança tão doce. Gostava de poder faze-la feliz o tempo todo.
— Obrigada Nia! — diz feliz. — És a minha segunda pessoa preferida! — fala com ternura.
— Quem seria a primeira? — pergunto fingindo tristeza.
— A minha mãe, e depois você! Eu amo-te tanto Nia, não quero que você vá embora nunca!
— E o seu pai Maddie?? — olho pra ela preocupada, ela tranca a cara. Tenho a certeza que se ouvisse isso ia mandar matar-me.
— Ele é mau. — fala triste e baixa o olhar.
— Maddie!! Você não pode sair por aí falando para as outras pessoas que o seu pai é mau. — falo em tom de repreensão.
— Mas ele é! Ele não gosta de ti e não gosta de ver ninguém feliz. — céus! Ela não pode falar isso do próprio pai. Agachei-me em frente dela, ainda de mãos dadas.
— Não, não é! E você vai esquecer isso está bem? — ela tinha de tirar isso da cabeça ou ia trazer-me problemas. Ficamos nos fitando durante alguns segundos como se estivéssemos esperando quem piscava primeiro os olhos e ela piscou.
— Está bem. — fala derrotada. Suspirei aliviada.
— Promete Maddie.
— Prometo.
Ao sair do seu quarto, ia pensando nas suas palavras, ela já não era tão pequena e começava a compreender melhor as coisas. Eu sabia que Thomas não gostava de mim, mas ninguém nunca o disse em voz alta. Senti calafrios e a noite não estava tão fria.
(…)
O dia m*l tinha amanhecido, e Maddie já estava em pé. Quando cheguei no seu quarto, ela estava de banho tomado, a sua cama estava arrumada, os lençóis e a colcha devidamente dobrados sobre a mesma, os brinquedos que estavam espalhadas pelo chão na noite anterior, estavam todos no cesto dos brinquedos devidamente arrumados. — Que menina organizada! — me enchia de orgulho.
Voltei a minha atenção pra ela que estava sentada em frente a penteadeira, com os olhos fixos na sua imagem refletida no espelho, ela era apenas uma criança, mas parecia carregar todos os problemas daquela casa consigo. Bati levemente na porta fazendo ela se voltar, simulou um sorriso.
— Vou tomar o café na vila, você quer vir comigo? — ela abre um sorriso lindo. Onde é que eu estava com a cabeça? Já conseguia ver o rosto reprovador de Carol. Balancei a cabeça, afastando qualquer pensamento que me levasse aos dois.
— Sim por favor. — responde educada.
— Ótimo! — olho para o vestido rosado de algodão que usava, se não fossem os cabelos despenteados, diria que ela estava pronta para ir ao pequeno almoço com a Rainha Isabel no castelo de Buckingham em Londres. — Mas você precisa trocar de roupa. Não queremos que as pessoas percebam que és a filha do futuro Duque de Northumberland!
— Porquê não posso ir assim?
— Porque não meu amor. O que menos precisamos é chamar atenção a quem quer que seja. — ainda que isso seja praticamente impossível, não existiam muitos negros em Fodshan. — Me dê uma das suas calças de equitação, enquanto prendes o cabelo eu vou fazer alguns ajustes.
— Okey. — responde e vai correndo até ao guarda roupas.
Fui pro meu quarto, peguei na caixa onde eu guardava as minhas coisas de costura e voltei pro seu quarto. Fiz alguns ajustes nas calças, a Maddie não via a hora de as experimentar.
— Tome, vá se trocar... já estamos um pouco atrasadas para o café.
A calça ficou perfeita nela, e eu também tive de ir ao meu quarto trocar de roupas pois a ideia era sairmos sem que ninguém desse pela nossa ausência. Claro que dariam! Provavelmente depois de umas quantas horas. Coloquei as calças castanhas que Carol havia oferecido num dos natais, uma blusa da mesma cor e sapatos pretos.
Procurei pelas chaves da velha camioneta que ficava o tempo todo na garagem e saíamos sem que ninguém percebesse. Não fizemos nem metade do caminho com ela, era velha e eu já não lembrava que fazia tanto barulho. Foi com ela que o Phillip ensinou-me a dirigir. —Até hoje não consigo me conformar que ele tenha simplesmente desaparecido como por magia...
— Meu amor vamos ter de ir caminhando, assim também é mais seguro. — ela assente com os olhos entusiasmados, seria a nossa primeira aventura fora da propriedade.
Após caminhar por quase quarenta minutos, chegamos na Vila. Não posso dizer que fomos muito bem atendidas, não fomos! Tinha uma ideia errada sobre como seria a primeira vez que tivéssemos um momento como esse. Fora tudo menos divertido pra mim, por mais inteligente que fosse, Maddie não percebeu como todos naquele vilarejo olhavam pra mim como se estivesse no lugar errado. Ela estava feliz simplesmente por estar em contacto com outras crianças, e isso era o mais importante pra mim.
Ao fim da tarde, tínhamos de voltar pra casa, andamos alguns km e eu vi uma sombra nos seguindo. Peguei forte na mão de Maddie.
— Nia, você viu isso?
— Eu vi Maddie... — levei a outra mão no peito, apavorada. Meu Jesus Amado, logo na primeira aventura, eu coloco a filha da minha amiga em perigo! Que tipo de tutora eu sou?? — Vamos.
— Sim.
Começamos a correr, ainda faltava alguns metros pra chegar na camioneta e eu estava praticamente arrastando Maddie. Haviam galhos espalhados no chão lamacento, Cherchire é uma das regiões mais chuvosas da Inglaterra, e naquela altura do ano o clima estava o tempo todo fechado, não tinha sol e havia um corredor de árvores enormes até a propriedade, tirar os pés do chão tornava-se cada vez mais difícil, a dada altura Maddie e eu tropeçamos e caímos. Ela começou a chorar e eu senti que tinha rasgado a minha perna, precisava pensar rápido, talvez fosse um daqueles homens que encontramos na vila que olhava pra mim com nojo, então o seu problema não era com Maddie, era comigo. Levantei ela, sentido uma dor aguda na perna, ajoelhei na sua frente.
— Shiiiii, por favor Maddie, se acalme! Shiiii... — Abracei-a. — Quando eu disser corre, você vai correr sem se importar comigo está bem?! Você vai correr até chegar em casa.
— Mas e você? — pergunta tristonha. Olhava pra ela mas atenta nos passos que o homem dava, ele não parecia estar correndo, mas estava próximo.
— Eu vou ficar bem.... agora você precisa ir! — ela retesa preocupada, envolve os braços no meu pescoço.
— Por favor Nia...
— Meu amor você precisa correr. AGORA!!! — grito e ela começa a correr.
Fiquei olhando pra ela correr, parada, ganhando tempo, até a sua imagem desaparecer do meu campo de visão e começar a caminhar. Agora sentia de verdade a dor na minha perna, olhei pra sua origem, não era tão profunda como achei, mas não estava conseguindo correr. Voltei a escorregar, sorri da minha desgraça, eu era literalmente o ser humano mais azarado do mundo, e estava bem com essa verdade, por isso estava rindo.
Respirava com dificuldade, lembrei de Madre Aurora, e fiz o que ela havia dito. Um sinal da cruz muito estranho. — Voltei a rir, se ela ou Madre Lilian estivessem aqui com certeza iriam dar-me um sermão e depois desatarem a rir, mas foi o mais próximo de uma oração que me lembrei. Deitei naquele chão lamacento fechei os olhos e deixei-me vencer pelo cansaço e a dor.
— O que você está fazendo? — a voz firme e dura causou-me arrepios pelo corpo inteiro fazendo o meu coração bater tão forte que eu acho que ele conseguia ouvi-lo. Permaneci imóvel, desejando que aquilo fosse nada mais que uma partida que a minha mente estivesse a pregar, de qualquer das formas, o meu corpo já não obedecia os meus comandos.
Abri ligeiramente os olhos e encontrei um par de olhos ferozes, incrivelmente azuis me fitando intensamente, por conta da inexistente luz solar, não conseguia ver as feições do seu dono. Este que estava coberto por roupas pretas da cabeça aos pés. Parecendo um anjo da morte. Não havia nenhum sentimento em evidência por dentro daquele universo azul.
Não sabia lidar com pessoas, isso era óbvio, e lidar com essa situação em particular não fazia muito sentido. Havia perdido minha própria consciência, mas aquelas íris gritavam, pedindo, exigindo respostas.... — O assombro possuiu minhas células diante da situação e a minha vida toda passou-me pelos meus olhos. Não podia reclamar, apesar de azarada... fui feliz, servi um propósito e pude viver vinte e seis anos da minha vida ao lado de pessoas que eu amava, com exceção de Thomas. Sentia muito medo, sabia o que ia acontecer a seguir...Eu vou morrer...