Capítulo 9 - Chiara

1336 Words
Acordo com os primeiros raios de sol que entram pela janela e gostaria de continuar a dormir para não relembrar o ocorrido de ontem, mas como sei que isso não é possível, levanto tomo um banho e arrumo-me para iniciar um novo dia. Espero que o ogro do meu vizinho esqueça a minha existência ou não sei qual será a minha reação. Não irei chorar o dia todo como uma menina boba, ontem coloquei para fora toda a minha frustração e só me permitirei fazer isso novamente, quando me deitar para dormir, porque agora preciso seguir com a minha vida. Saio do quarto e sigo para a cozinha para preparar o café e em seguida, trabalhar, mas assim que piso na sala assusto-me com o que vejo. O local mais parece uma floricultura pela quantidade de flores espalhadas, há uma imensa variedade de cores e tipos diferentes que jamais vi. Fico alguns minutos imersa nesta bela surpresa e faço questão de reparar em cada detalhe que vejo. O cheiro do ambiente é uma mistura do frescor das plantas com café recém-coado e por mais estranho que possa parecer, esta combinação ornou perfeitamente para o momento. A mesa posta com diversas guloseimas atrai a minha atenção e percebo que há frutas, sucos, bolos e doces que não estavam na minha dispensa e parecem deliciosos. Escorado na porta de entrada da minha casa com as mãos nos bolsos e cara de cachorro pidão está o motivo do meu tormento, o meu novo vizinho. Constato que esse homem fica mais lindo a cada vez que o vejo. — Bom dia, Chiara! – Ele interrompe o silêncio que havia se instalado. — Bom dia. – Respondo e mantenho-me no mesmo lugar o encarando. — Preciso desculpar-me pela minha atitude. – Não sei o motivo de reparar tanto nesse homem, mas a sua postura não combina com alguém arrependido. — Não precisamos voltar a este ponto. – Digo de forma seca e abaixo a cabeça envergonhada, não quero que ele veja o meu rosto vermelho. — Preciso que você entenda o motivo daquele nervosismo. – Ele atrai a minha atenção novamente. Assisto-o levantar a cabeça, olhar para o teto e encher os pulmões de ar, como se estivesse prestes a entrar numa batalha. — Como entrou aqui? – Pergunto para desviar o assunto. — A porta estava destrancada, você se esqueceu de trancar depois que saí ontem. – Explica e lembro-me que realmente foi isso que aconteceu. Aceno em compreensão e sigo para a mesa, observo de perto tudo que há, em seguida, começo a servir-me enquanto o Ruslan se aproxima devagar testando a minha reação. — Eu tinha uma tia amorosa que era sempre alegre e gentil com todos, ela era a pessoa mais especial que já conheci e nunca encontrei alguém que tivesse a mesma alma pura que a dela. Porém, o que ninguém da família sabia era que atrás dos sorrisos doces e gentilezas, ela sofria horrores nas mãos do marido. Ela passou por coisas absurdas e ficou tão ferida que não houve possibilidade de sobrevivência. – O russo suspira demonstrando todo o desgosto em relembrar algo tão pesado e compreendo que precisa de um tempo para se recompor e continuar a falar. — Ela era a irmã mais nova do meu pai e a pessoa mais amada de toda a família. Essa história é um trauma para todos e não é mencionada de forma alguma no nosso meio, mas contei-lhe tudo isso porque sei que a machuquei e no momento que percebi que fui o responsável por uma dor desse tipo, eu simplesmente não consegui controlar os meus pensamentos e comparei-me àquele monstro. – Ele abaixa a cabeça e percebo a rigidez no seu corpo, demonstrando o quanto está nervoso. Esse é um tema que realmente o afeta e por mais babaca que tenha sido, posso imaginar a angústia que sentiu em pensar que é um agressor de mulheres, então, não tenho outra opção a não ser perdoá-lo pelo que fez. — Imagino o tamanho da dor que você e a sua família sentiram ao perder uma pessoa querida e sinto muito por isso. Quanto ao que aconteceu ontem, está tudo bem e agradeço que se preocupou em esclarecer tudo, então, não há motivos para pedir perdão. Você não fez de propósito, pois não tinha como saber que eu era virgem e quando abri a minha boca para lhe dizer, tudo aquilo aconteceu. Também quero pedir para não tocarmos mais nesse assunto. – Declaro firme e acomodo-me numa cadeira. — Agradeço a compreensão e prometo respeitar o seu pedido, mas gostaria de me redimir. – Ele pede. — Não há necessidade de fazer isso Ruslan, já esclarecemos tudo e somos desconhecidos, vamos apenas seguir com as nossas vidas. – Tento passar uma tranquilidade que não existe no meu interior. — Mas... – Ele tenta argumentar, mas o corto. — Chega! Se quiser se sentar e me ajudar a comer tudo que preparou, será bem-vindo, mas como disse, não retomaremos este ponto. – Falo com convicção olhando nos seus olhos. — Tudo bem, eu aceito. – Diz derrotado enquanto mexe no celular antes de se acomodar. Ele senta-se à minha frente e comemos em silêncio, Ruslan me observa a todo momento e eu finjo estar concentrada no meu prato. Antes de finalizarmos a refeição o seu celular apita indicando o recebimento de uma mensagem e ao verificar a tela, o russo pede licença, se levanta, vai até a porta de entrada e sai do meu apartamento. Observo os seus movimentos e fico intrigada com essa atitude repentina, mas quando ele retorna fico surpresa ao ver o que carrega para dentro. — Tenho consciência do quanto lhe magoei e tenha certeza de que farei de tudo para conseguir o seu perdão, prometo que não irei mencionar o ocorrido novamente, mas espero que possamos ser pelo menos amigos. – As várias nuances desse homem deixam-me confusa. Ele me entrega o urso gigante que acabaram de entregar e fico encantada com a pelúcia que tem quase a sua altura e seguro-me para não rir da sua falta de jeito ou da forma estranha que me entrega o presente. — Tudo bem Ruslan, podemos ser amigos, afinal, somos vizinhos e trombaremos em algum momento pelos corredores. – Respondo enquanto pego o meu gigante peludo e dessa vez não seguro o sorriso largo ao sentir a fofura do bicho. — Obrigada. – Agradeço e analiso cada detalhe do meu lindão. Volto a atenção para o meu vizinho que me olha com curiosidade, mas disfarça quando vê que o peguei me analisando. Após alguns minutos, finalizamos a refeição e fico feliz que o clima tenha ficado bem mais leve entre nós. — Preciso ir, tenho muito trabalho. – Ele tenta manter a postura segura, mas vejo um lampejo de incerteza. — Tudo bem. – Respondo simplesmente. — Até mais, Chiara. – Ele aproxima-se e travo a respiração quando se abaixa para depositar um beijo na minha bochecha. Abraço a pelúcia e o assisto sair do meu apartamento cabisbaixo, mas só quando a porta se fecha nas suas costas, permito-me voltar a respirar normalmente. Olho ao redor e o cheiro de flores está por todo o lugar, penso se preciso fazer algo para mantê-las lindas por mais tempo, mas percebo que o Ruslan foi cuidadoso até nesses detalhes, pois todos os arranjos estão em jarros abastecidos com água. Volto para o quarto, coloco o meu ursão sobre a poltrona e depois ajeitar tudo, coloco o meu gigante felpudo na cama. Não sabia que precisava desse amigão até o ver entrar no meu apartamento, não me canso de abraçá-lo e tenho certeza de que não o deixarei longe de mim por nenhuma noite sequer. Avalio se devo deitar-me já que agora terei companhia, mas sei que se fizer isso, entrarei num ciclo de autocomiseração e preciso ser forte, então, para distrair a mente sigo para o quarto seguro onde trabalho totalmente isolada do restante do mundo.

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