Prólogo
O baile funk da comunidade do Dendê já pulsava com o ritmo elétrico das batidas graves que faziam o chão vibrar sob os pés de quem ousava se aventurar naquele território desconhecido para muitos. A favela, conhecida por ser território disputado e de acesso restrito, estava em plena festa. O funk ecoava entre as vielas apertadas, misturado às risadas e ao frenesi dos corpos que se moviam ao som da música. Lá, quatro jovens caminhavam discretamente, envoltos na euforia daquela noite quente e carregada de adrenalina.
Lucas com 17 anos, Pedro com 16 anos , Paulo com 15 e Eduardo com apenas 14 anos formavam um grupo improvável, mas inseparável. Conhecidos uns dos outros há quatro anos, o destino os havia unido de maneira curiosa e, talvez, única. A semelhança física entre Lucas e Eduardo, dois jovens de realidades tão distintas, havia sido o que primeiro despertou a atenção de ambos. Lucas, nascido e criado na Rocinha, sabia que seu destino estava entrelaçado com o comando da favela, herdando o poder que seu pai exercia com punho firme. Já Eduardo, filho de uma família influente e rica, cresceu em meio ao luxo e ao conforto da Zona Sul carioca. No entanto, o encontro entre os dois, ainda adolescentes, criou um laço tão forte que as diferenças se tornaram irrelevantes.
Eduardo se impressionava com o carisma de Lucas, que, apesar da dureza de sua realidade, carregava consigo uma força silenciosa e uma lealdade inabalável aos seus amigos. Juntos, eles eram como irmãos. Pedro, mais conhecido como Perigo, era o braço direito de Lucas, e seu apelido se justificava pela ferocidade com que ele defendia aqueles que amava. Paulo, o Fantasma, tinha uma habilidade quase sobrenatural de se mover sem ser percebido, uma qualidade que os tirava de muitas enrascadas.
Naquela noite, no entanto, Eduardo não conseguia relaxar completamente. Ele estava acostumado a ir à Rocinha, onde conhecia as regras do jogo e os caminhos seguros. Mas o Dendê era diferente. Estavam em território desconhecido, e Lucas, por mais destemido que fosse, estava focado em apenas uma coisa: encontrar uma garota de quem ouvira falar nos bailes.
“Relaxa, moleque, é só mais um baile,” disse Lucas com seu sorriso despreocupado enquanto ajustava o boné, olhando ao redor.
Eduardo tentou se acalmar, mas não pôde deixar de olhar em volta com cautela. As pessoas dançavam de forma hipnótica, os corpos se movendo ao som da batida pesada. As garotas, com suas roupas curtas e justas, dançavam com uma sensualidade natural, acompanhando o ritmo acelerado do funk que ecoava pelas caixas de som espalhadas no canto da quadra improvisada. As luzes piscavam, e o cheiro de bebida barata e suor impregnava o ar, misturado ao aroma do churrasco que era vendido nas barracas próximas.
Pedro e Paulo, ao lado de Eduardo, se misturavam à multidão como se fossem invisíveis. Perigo, sempre de olhos atentos, estava em constante alerta, pronto para agir se necessário. Já Fantasma se mantinha próximo, com aquela expressão tranquila e distante de quem estava ali, mas ao mesmo tempo, sempre um passo à frente em termos de estratégia.
Lucas, no entanto, estava em outra sintonia. Ele já havia avistado a garota que procurava. Alta, pele bronzeada, cabelos longos e cacheados que caiam sobre os ombros, ela dançava sem se importar com os olhares ao seu redor. Seus movimentos eram fluídos, quase como se estivesse flutuando no meio da multidão. Lucas não perdeu tempo e se aproximou com a confiança de quem sabia exatamente o que queria.
Eduardo observava de longe enquanto Lucas se aproximava da garota:
“Ele não perde tempo, né?” murmurou, tentando esconder seu desconforto com uma risada.
“Lucas sempre soube o que quer. E sempre consegue,” respondeu Fantasma com um sorriso enigmático, cruzando os braços e encostando-se a um dos pilares que sustentava a cobertura improvisada da quadra.
Eduardo assentiu, mas o nervosismo não o abandonava. Ele olhou ao redor, observando a movimentação dos homens armados que faziam a segurança do baile. A presença deles era uma lembrança constante de onde estavam. Aquilo não era um ambiente comum para alguém como ele, mas estar com Lucas, Perigo e Fantasma lhe dava uma sensação de pertencimento que ele nunca tinha encontrado em outro lugar. Ele era um estranho no mundo deles, mas, ao mesmo tempo, fazia parte daquilo.
A música subiu de volume, as batidas ficando ainda mais intensas. As garotas agora dançavam de maneira mais provocante, e os olhares dos homens ao redor se fixavam nelas com uma intensidade quase predatória. No centro de tudo isso, Lucas já estava atracado aos beijos com a garota que havia encantado sua noite. Eles riam e se beijavam ao ritmo da música, perdidos naquele momento. Tudo parecia estar correndo bem.
Eduardo olhou para Pedro, que lhe deu um sinal positivo com a cabeça:
“Relaxa, Coimbra, tá tudo sob controle. Aqui ninguém sabe quem somos, e é assim que vai ficar,” disse Perigo, tentando acalmar o amigo.
Mas Eduardo não podia deixar de se perguntar se aquela era uma confiança real ou apenas a coragem inconsequente que todos eles, como jovens, pareciam compartilhar. Estar ali, na comunidade do Dendê, onde as regras eram tão diferentes daquelas com as quais ele estava acostumado, fazia seu coração bater mais rápido. Não era a primeira vez que ele estava em uma situação de risco com Lucas, mas algo naquela noite o fazia se sentir particularmente vulnerável.
Enquanto o grupo tentava se misturar, Eduardo não conseguia afastar a sensação de que algo podia dar errado. Mesmo com a diversão que Lucas demonstrava, já enredado em seu momento de conquista, havia uma tensão no ar, algo que ele não conseguia nomear, mas que pairava como uma sombra sobre eles.
A noite estava longe de acabar, e embora tudo parecesse estar indo bem naquele instante, Eduardo sabia que, nas favelas do Rio, a sorte podia mudar de uma hora para outra.
Eduardo sorria ao ver Lucas conduzir a garota para um canto mais escuro da festa, onde as luzes dos refletores piscavam com menos intensidade e a música abafava qualquer conversa. O jeito despreocupado de Lucas, como se o mundo ao redor não importasse, fazia Eduardo relaxar. A tensão que sentira ao chegar à comunidade do Dendê começava a se dissipar. Decidiu pegar algo para beber, pensando que, afinal, estava tudo correndo bem. A noite era deles, e o perigo que tanto temia parecia não existir naquele momento.
Caminhando em direção à uma barraca de bebidas, Eduardo observava as pessoas ao redor. A batida constante do funk e as risadas das garotas se misturavam em uma atmosfera eletrizante. Homens com bonés abaixados e correntes no pescoço observavam o baile com expressões vigilantes, mas nada que parecesse alarmante. Ao chegar à barraca, Eduardo pediu uma cerveja, agradecendo mentalmente por tudo estar mais tranquilo do que esperava.
Estava prestes a dar o primeiro gole quando, de repente, trombou em alguém. O choque foi breve, mas o suficiente para fazer Eduardo olhar para o homem que havia esbarrado nele. Era alguém mais velho, com o rosto marcado pela vida dura. Algo naquele homem parecia familiar, uma sombra que Eduardo não conseguia identificar de imediato. Ele já o havia visto antes, na Rocinha, talvez? A dúvida passou rapidamente por sua mente, pois o homem se afastou como se o toque de Eduardo fosse uma queimadura, olhando para ele com uma expressão de alarme. Algo disparou dentro de Eduardo. Uma sensação de perigo iminente tomou conta de seu corpo, como um alerta que não podia ser ignorado.
Ele respirou fundo e voltou-se para onde estavam seus amigos. O baile continuava fervendo, mas seus instintos diziam que algo estava prestes a mudar. Sem hesitar, foi até Pedro, Paulo e Lucas, que ainda estava com a garota, agora mais envolvido do que nunca.
“Acho que devemos ir embora”, Eduardo disse com urgência, tentando não soar alarmista, mas incapaz de disfarçar a preocupação.
Pedro, sempre atento a qualquer sinal de problema, já havia começado a notar a movimentação ao redor. Ele levantou a cabeça, observando os homens armados que começavam a se aproximar da pista de dança, o olhar deles focado em algo ou alguém. Eram homens da Rocinha, inimigos declarados da comunidade do Dendê. Se fossem descobertos ali, não teriam uma chance de sair vivos. E se Lucas, filho do futuro líder da Rocinha, fosse pego, seria muito pior que a morte.
“Perigo”, Eduardo chamou, buscando o olhar do amigo. Pedro assentiu silenciosamente. Já tinha percebido o que Eduardo também havia notado. “Deu r**m, cara. Vamos embora”, ele disse, a voz firme e direta.
Lucas, alheio a tudo, estava com as mãos entre as pernas da garota, que já se entregava aos seus toques, a cabeça jogada para trás e os gemidos altos abafados pela música ensurdecedora. Mas a urgência na voz de seus amigos o trouxe de volta à realidade. Ele olhou para Pedro e Paulo e, ao ver a seriedade em seus rostos, não hesitou. Sabia que, se seus amigos estavam preocupados, era porque algo sério estava acontecendo.
Sem perder tempo, Lucas se afastou da garota, deixando-a confusa e insatisfeita, e seguiu os outros. Eles começaram a se mover com rapidez, mas sem atrair atenção, buscando uma rota de fuga pelos fundos do baile. Justamente quando estavam prestes a sair, a música parou subitamente, e o som de tiros sendo disparados para o alto fez o coração de todos parar por um segundo.
“A favela tá fechada até encontrarmos os ratos da Rocinha!” A voz no alto-falante ecoou pela comunidade, deixando claro que a situação havia se tornado muito mais perigosa.
O caos se instalou imediatamente. As pessoas começaram a correr, buscando proteção, enquanto os homens armados começavam a tomar posições. Lucas, Pedro, Eduardo e Paulo sabiam que estavam correndo contra o tempo. Se fossem identificados, não sairiam dali com vida. Lucas, especialmente, tinha muito mais a perder.
Fantasma, com sua habilidade quase sobrenatural de desaparecer em meio à confusão, tomou a frente do grupo, guiando-os com precisão por entre becos estreitos e vielas escuras. Sua mente trabalhava rapidamente, calculando rotas de fuga, observando as sombras que se moviam ao redor, evitando qualquer confronto direto. Atrás deles, o som dos tiros continuava, misturado ao pânico das pessoas. Mas eles não paravam. Não podiam se dar ao luxo de olhar para trás.
“Onde estamos indo?”, Eduardo perguntou, ofegante, enquanto corriam pelas sombras. Fantasma, sempre calmo, apenas levantou a mão, pedindo silêncio.
Com a tensão no ar e os tiros ecoando mais distantes, Fantasma encontrou uma brecha. Um beco escuro, sem iluminação, mas que levava diretamente a uma rua menos movimentada. Sem pensar duas vezes, os quatro passaram por ali, em silêncio absoluto, como sombras se movendo na noite. Eles se espremeram por uma a******a entre duas casas, e, por um milagre, saíram para uma rua lateral. Estavam vivos, mas não pararam de correr até estarem a uma distância segura da comunidade.
Somente quando já estavam dentro de um ônibus, suados, cansados e com o coração ainda batendo forte, puderam finalmente respirar aliviados. O caos havia ficado para trás, e agora, enquanto o veículo se afastava da comunidade, eles se olharam.
Por um momento, houve silêncio, até que Lucas, sempre o mais destemido, começou a rir. A risada dele foi contagiante, e logo todos os quatro riam juntos, como se o perigo que haviam acabado de enfrentar fosse apenas mais uma aventura.
“Um dia eu vou ser o dono da Rocinha”, Lucas disse, ainda rindo, mas com uma determinação que fez os outros três pararem para ouvir. “E vou acabar com essa guerra. Ou eles se rendem, ou eu vou derrubar o Dendê.”
Perigo, Fantasma e Eduardo trocaram olhares. Nenhum deles duvidava das palavras de Lucas. Eles sabiam que, se ele dizia que faria algo, ele faria. Porque Lucas sempre conseguia o que queria, e naquele momento, eles estavam dispostos a seguir seu amigo até o fim, onde quer que isso os levasse.
Mal sabiam eles que entre eles realmente está o futuro rei da Rocinha, mas o destino tinha seus próprios planos.