MINHAS MALAS JÁ estão dentro do porta-malas quando eu adentro e sento no banco do passageiro. Segundos se passam e meu pai invade o automóvel sentando-se no lugar do motorista. Não havíamos trocado sequer uma palavra desde o corredor, eu não sabia o que falar e pelo visto, nem ele. O motor do carro é ligado e instantes depois estamos em movimento pelas ruas de Costa Rica.
A madrugada está fria e aproveito a ventania gélida batendo contra meu rosto por algum tempo antes de fechar a janela. Pego meu celular no bolso e busco por meu headphone, e assim que o encontro, encaixo-o em minha cabeça e seleciono minha playlist de viagens, perdendo-me na melodia que soa em meus ouvidos.
A música espanhola entra em sincronia com minha voz interior e ambos cantarolam juntos, e é assim por todo percurso: silêncio no carro e eu fugindo de uma conversa ouvindo música.
Cinco músicas depois, o carro para. Desligo o som e alinho o aparelho em meu pescoço, mas antes que eu possa abrir a porta, meu pai fala:
— Maitê, espere só um momento, filha. — Ele puxa a carteira de seu porta-luvas e a abre, tirando um papel branco e me entregando. — É o endereço e telefone de contato da Pilar. Não lhe entreguei antes porque não tive oportunidade e não queria que sua mãe soubesse que além do contato, tenho seu endereço.
Pego o papel, observando a caligrafia e guardando-o em minha bolsa. Murmuro um “obrigada” antes de sair do carro, seguida por meu pai. Ele caminha até o porta-malas, tirando minhas bagagens e me entregando. Aproxima-se de mim e deixa um beijo demorado em minha testa. Não recuo.
— Eu estou tentando, minha filha, e espero que me perdoe. — Me abraça, e eu sem reação, acabo por retribuir.
— Vai ficar tudo bem, pai. Errar é humano e sei que as coisas irão melhorar — digo, abrindo um sorriso reconfortante. — Eu te amo.
Afasto-me do calor de seu corpo e dou-lhe as costas sem esperar por sua resposta. Eu odeio despedidas.
[...]
Os últimos momentos em Costa Rica golpeiam-me com força e acordo com a sensação de que todos eles não passaram de um sonho atípico, por isso permaneço de olhos fechados por longos segundos, temendo abri-los pela realidade que encontraria. Está bem, Maitê... essa é o tipo de situação que encontramos apenas nos filmes, seus pais nunca mentiriam para você, então pode abri-los tranquilamente e quem sabe, ao ver que sua vida continua a mesma, escrever um livro sobre, uh?
Respiro fundo. Um, dois, três... Abro os olhos e consigo captar apenas a luminosidade esbranquiçada, antes de fechá-los com força novamente.
Meu coração bate acelerado e conto os números novamente, para controlar minha respiração. Abro-os vagarosamente e encaro o teto branco com uma sensação de estranheza no peito. Não parece o teto do meu quarto. Recaio o olhar sobre os lençóis acima de mim e levanto-me bruscamente ao ver que não são os meus. Put4 merd4. Corro até a janela que havia no quarto e abro as cortinas, os raios solares fazendo minha pele brilhar e incomodando meus olhos.
Eu estou no Brasil!
Pego meu celular e disco o número da minha melhor amiga, que me atende resmungando um “alô” com a voz rouca.
— Mia! Eu estou no Brasil, Mia — constato, exasperada. — No Brasil!
— Eu sei, porr4, e aqui ainda são quatro da manhã — ela diz.
— Fod4-se, como você me deixou fazer uma merd4 dessas? Eu nem sei falar português direito! — Sento-me na cama, perguntando-me o que eu farei da minha vida agora. — Eu não conheço a cultura, não sei andar pelo país, não sei como funciona o ensino daqui, não...
— Maitê, cala a boca — pede, interrompendo-me. — Vou voltar a dormir, boa noite.
Ela desliga a ligação na minha cara e eu olho chocada para a tela de meu celular. Eu não acredito que ela fez isso. Disco seu número novamente.
— Você é uma péssima amiga — reclamo quando ela atende à ligação.
— Eu discordo, eu poderia ter desligado o celular.
Semicerro os olhos com sua resposta atrevida.
— Me ajuda e eu te deixo dormir. Eu não sei o que fazer.
Ouço seu suspiro do outro lado da linha.
— Seu pai é brasileiro, você aprendeu tudo que pode com ele, você tem dinheiro e uma família aí, Maite, vai se virar bem.
“Você tem dinheiro”. Na verdade, meus pais tem.
O custo de vida em Costa Rica chega a ser aproximadamente 40% maior do que no Brasil, então talvez fazer a minha graduação aqui compense, contudo, não posso dizer que sem a ajuda de meus pais eu conseguiria, já que a maioria dos trabalhos que eu conseguia por lá eram temporários e não era sempre que conseguia juntar um bom dinheiro. Mudar-me para cá traz a necessidade de conquistar a minha independência, ainda assim, o que me preocupa no momento não é isso.
— Uma família que eu nem sei se vai gostar de mim.
— É claro que vai, você disse que pesquisou algumas faculdades, já escolheu em qual vai se matricular?
— Sim.
No Brasil há diversas faculdades, incluindo as públicas e as privadas. Como eu perdi o vestibular por ser uma decisão de última hora, concentrei-me nas privadas e passei um bom tempo caracterizando os prós e os contras de cada uma, até que encontrasse uma em que eu me identificasse mais.
— Então vá fazer sua matricula e tenha cuidado, depois me liga para falar se correu tudo bem, ok? Vai dar tudo certo.
— Ok, mamãe — impliquei. — Obrigada e boa noit... — Ela encerra a chamada antes que eu possa concluir e semicerro os olhos para a tela do celular. — No começo você era mais educada.
Suspiro, largando o celular na cama e fitando a parede branca à minha frente.
Ontem, depois que me despedi de meu pai, não fiz nada além de passar o dia trancada no quarto. Deveria ter saído para conhecer a cidade, mas eu só conseguia pensar no turbilhão de coisas que aconteceram nas últimas horas e em como eu fui injusta com minha mãe.
Costumo pensar que a vida acaba tão rápido quanto ela começa e partir para outro país brigada com minha mãe não foi a melhor decisão que tomei. Como sempre, deixei que a impulsividade falasse mais alto que a razão. Todavia, sei que mesmo em outras circunstâncias, a decisão de vir ou não para o Brasil ainda seria a mesma.
Balanço a cabeça, recapitulando novamente: estou em um país que não conheço ninguém além de uma família que nem sei se irá gostar de mim. Ok, isso parece muito r**m, mas ainda posso tirar coisas boas disso. Vou dar o meu melhor e aproveitar essa fase incrível que estou iniciando.
Levanto determinada da minha cama e em instantes estou com as chaves do apartamento em mãos e os documentos necessários. Ter cidadania brasileira eliminou boa parte da burocracia que eu teria por estar vindo para outro país e apesar de tudo, sou muito grata por meus pais terem me tido aqui.
O meu apartamento fica localizado no centro da cidade e próximo de lojas, supermercados, universidades e até um ponto de táxi. Caminho até ele calmamente e não demora até que um deles esteja disponível e eu saia em partida à universidade. Pela janela assisto as ruas bem movimentadas e o trânsito nas avenidas. O sol brilha laranja forte durante o percurso. Encosto a cabeça no banco e fecho os olhos, sentindo a brisa bagunçar meus fios desgrenhados.
— Chegamos — anuncia o motorista algum tempo depois.
Balanço a cabeça recobrando a consciência e aceno, abrindo a minha bolsa e puxando uma carteira delicada preta. Tiro o valor da viagem e entrego para ele. Deixo o carro agradecendo e lhe desejando um bom dia, que é retribuído com um aceno e um sorriso.
Parada em frente a faculdade, admiro o extenso campus à minha frente. Suas estradas são bem pavimentadas em seu centro, guiando para a entrada do prédio, contudo, as laterais são compostas por flores, árvores e grama esverdeada. O prédio tem uma arquitetura moderna e ao mesmo tempo rustica, o que atrai minha atenção e me puxa como um imã universidade à dentro.
[...]
Quando eu deixo o campus, encontro-me radiante. O atendimento da universidade foi ótimo e conheci cada canto daquele lugar. Fiquei encantada por suas estruturas e assinei o contrato de prestação de serviços certa de que era minha melhor aposta. Agora, encontro-me voltando para a casa novamente.
Por ser um lugar próximo do apartamento, estou caminhando ao invés de ir de carro, para observar os lugares mais atentamente. Sempre achei incrível conhecer novas culturas e o Brasil é um dos países que mais me chamam atenção, justamente por tamanha diversidade e riqueza cultural.
Cresci com uma cultura brasileira forte por parte paterna e foi inserindo o idioma desde nova que aprendi o português. Papai, apesar dos anos morando na Costa Rica, nunca se deixou esquecer de suas verdadeiras origens.
— Ei! Cuidado com a moç... — Ouço um grito feminino estridente, mas quando ergo o olhar para ver o que está acontecendo, é tarde demais.
Sinto o impacto do corpo de alguém contra o meu e logo o chão agride a minha pele frágil. Um homem está em cima de mim e arregalo meus olhos fitando sua imagem. Há um capacete em sua cabeça e equipamentos de segurança agarrados às suas juntas. Ficamos alguns segundos nos olhando sem reação até que a dona do alerta surge à nossa frente.
— Ei, você tá legal? — Ela se aproxima, abaixando-se ao meu lado para falar diretamente comigo, e eu assinto. — Sai de cima dela, seu panaca.
Ela se levanta e dá um tapa na cabeça do homem. Dou risada quando ele parece acordar de seu transe de volta para a realidade, começando a se mover e levantar-se. De pé, ele estende a mão para mim, dizendo:
— Foi m*l, aí. Sério.
Agarro sua mão e ele me puxa, colocando-me de pé. Abro um sorriso sem graça e dou de ombros.
— Não tem problema, estou bem — garanti, tentando transparecer gentileza. — Me chamo Maitê, sou nova na cidade.
— É, dá pra notar... — a jovem comenta analisando minha roupa e abro um sorriso amarelo, um pouco desconfortável. Eu estou usando uma saia vinho até os pés e uma blusa simples branca, diferente da mulher à minha frente que usa um short curto jeans de lavagem clara, uma regata preta e um tênis all star. Ela possui o cabelo preto, longo e liso até a cintura. Suas sobrancelhas são bem marcadas e seus olhos são o que mais chama atenção em seu rosto, devido a intensidade e seus cílios extremamente grandes. — Meu nome é Isabel, e o do panaca é Marcos.
O desconforto aparece e eu dou risada ao ver Marcos semicerrar seus olhos esverdeados.
— É um prazer conhecê-los.
— Eu só poderei dizer o mesmo se topar dar uma volta — Marcos responde de forma convidativa, erguendo o skate em suas mãos, que até então eu não havia visto. Agora faz muito mais sentido todos os equipamentos.
— Ah, eu adoraria, mas eu não sei andar — eu explico, sem graça.
— Não tem problema, vem! Eu te ensino!
Isabel não me deixa retrucar, apenas segura a minha mão e puxa-me em direção a uma parte menos movimentada da praça. Há outras pessoas praticando esportes diversos, alguns ainda aprendendo, outros testando manobras radicais; mas absolutamente todos se divertindo.
A morena posiciona o skate no chão, travando-o com seu pé e segurando minhas duas mãos. Estou parada a sua frente quando ela diz:
— Pode subir, estou te segurando.
Mordo o lábio inferior receosa e alterno o olhar entre ela e o skate.
— Do chão não passa — brincou Marcos, espantando meus medos. Confiante, eu subi no skate, sentindo-me incrível sobre ele.
E foi nesse momento que tive certeza que, sim, eu tomei a melhor decisão que poderia.