Adormecer
Quando eu tinha seis anos, eu tinha um sonho de ter uma casa de bonecas dessas que aparecem nos comerciais, ao invés disso eu aprendi a fazer miojo com o namorado traficante da minha mãe. Aos sete anos eu queria uma bicicleta, mas estava muito ocupada cuidando de mim mesmo enquanto minha mãe estava a uma semana fora de casa. Quando eu fiz oito anos a vida já parecia torturante demais para uma criança, mas algo aconteceu, por um preço muito alto, eu ganhei algo ou melhor alguém que fez tudo valer a pena. Eu ganhei a Margo, mas perdi nossa mãe.
Eu sabia cuidar de mim e sabia que Margo nunca passaria pelo que passei. Sem dúvida eu seria alguém que a protegeria de todos os medos, sejam quais forem.
Uma pequena estante com livros já gastos era meu deleite em meio às horas que apenas ser eu me gerava algum tipo de incômodo. Em minha vida sempre havia de dividir tudo, afinal em um orfanato é difícil ter suas próprias coisas, para minha sorte eu sou a única aficcionada em livros .
***** conhece todos os lugares?* Pergunta a garotinha de olhos verdes estalados e sardas delicadas.
***** que todos os lugares são muitos, não acha? Mas conheço todos os lugares que aquela pequena estante pode me levar.***** cobrindo-a com a coberta.
****, você é a mais inteligente das pessoas.* Ela coça o nariz antes de dar um grande bocejo.
***? Ora, não seja pretensiosa. **** se acomoda no travesseiro esperando o beijo de boa noite, que lhe é dado logo em seguida.
Ao olhar para trás e vejo mais cinco garotinhas me encarando como em todas as noites, vou à cama de cada uma distribuindo beijinhos, orações e afagos,até chegar à porta e desligar a luz. O meu quarto é ao lado com as pessoas com a minha idade, na verdade havia apenas eu e a Tabata, entretanto ela é silenciosa e nunca está disposta a ajudar os outros, apenas fica sentada com os fones de ouvidos ou rabiscando o caderno.
**** noite! ***** antes de me cobrir para dormir, as luzes ficam ligadas para que ela possa desenhar, Tabata apenas levanta a mão esquerda e volta a desenhar.
À noite eu sempre tenho pesadelos que envolvem Margo sendo adotada e levada para longe de mim, ela está chorando até entrar no carro de um casal desconhecido e um tanto suspeito.
Era doloroso e egoísta, pensar que ela precisaria mais de mim do que de uma família que parecia saída de um comercial de margarina; quando seus pequenos dedinhos tocavam a janela traseira do carro, eu podia ver seu rostinho vermelho de tanto chorar, o carro arrancava e eu o perseguia até que já estava longe de mais para que eu conseguisse alcançar, então era como se o chão se abrisse e me engolisse sem medo algum, e antes que o pesadelo prosseguisse o despertador tocava para lembrar que mais um dia estava a começar.
Um novo dia começa e eu já estava pronta esperando Ramona na cozinha, seus cabelos castanhos encaracolados e curvas voluptuosas adentraram a cozinha com um gingado único, acompanhado do cantarolar de alguma música que toca em seus fones de ouvidos.
***** atrasada! ***** olhando para o relógio com frutas no lugar de números.
**** dia Ramona, como está? Pegou muito trânsito vindo para cá com sua moto? Estou bem, obrigada! Ah, você sabe como essa cidade é lotada de malucos!**** coloca a bolsa e chaves em cima da mesa.
**** gostei do sarcasmo.
********** petulante.
Logo começamos a preparar os pães e café para as crianças, em pouco menos de meia-hora está tudo pronto, enquanto preparamos Ramona me contou que seu ex apareceu na porta do apartamento dela implorando para ela voltar, ele tinha rosas, chocolates e um anel de compromisso, ele recitou uma poesia da internet que levou às lágrimas, embora eu quisesse veementemente dizer o quanto tudo isso me cheirava uma tamanha furada. Achei melhor ir acordar Margo. Aquela garotinha desperta facilmente com o girar da maçaneta, ela salta da cama direto para o banho com as demais garotas é mais difícil e Tabata necessita de que eu a chame umas 15 vezes até finalmente acordar.
*******, porque nós não podemos ir para a sua escola?
*** falamos disso umas mil vezes, você ainda é muito pequena para aquela escola.
****** amiga, Ana tem um cachorro, então eu, Sara e Lisa decidimos que também queremos um.
****** vocês tomaram uma decisão difícil, mas não tenho certeza que consigam um cachorro.
** se ele for órfão como a gente?
* Nesse caso você vai ter que conversar com a senhora Matilda.
**** isso estou falando com você.
*** claro, está com medo e você, Sara e Lisa decidiram que eu deveria falar com a senhora Matilda sobre vocês terem um cachorro?
Aqueles grandes olhos verdes acompanhados de um bigode de leite e um sorriso com porteiras balançam em sinal que era exatamente aquilo e não me entendam m*l, mas o que essa garotinha me pede sorrindo, eu faço.
****, senhora Matilda é apenas um cachorro.
*******, um cachorro é como um saco de bagunça e doenças para dentro desse orfanato.
A senhora Matilda era alta, magra e usava óculos fundo de garrafa, ela não é má , mas impõe respeito e tem um gosto um tanto peculiar, o que assusta as garotas.
*** está na hora da escola, não quero que se atrasem.* Ela termina a conversa com aquela frase, eu sabia que partiria o coraçãozinho de Margo, mas não havia o que eu pudesse fazer.
A escola era normal a comunidade escolar tem essa coisa de cada um por si e Deus por todos, o que eu particularmente sempre soube respeitar, claro que existem grupos sociais e eu faço parte de um, o que é irrelevante e entediante, enquanto elas conversam sobre a cor do cabelo, o fato da mãe não as deixar ir a alguma festa que era propícia para uma gravidez indesejada ou ingestão inapropriada de drogas. Eu pensava em como elas são irresponsáveis e fúteis, mas para a minha alegria quando aquele sino tocava eu pegava um ônibus para o maravilhoso mundo dos livros, um trabalho de meio turno que peguei, eu estava com 17 anos e trabalhava aqui desde os 14 . Precisava de uma forma de me sustentar quando fizer 18 e poder adotar Margo.
Ramona disse que podemos morar com ela, ela já tentou nos adotar, mas não consegui e de verdade o fato dela ter vários namorados me assusta. Não por mim e sim por Margo, admito ter ficado um pouco aliviada quando ela não o conseguiu.
Limpar, organizar e atender, essa era minha missão o dono da Livraria , seu Manoel me deixava toda a tarde sozinha, os clientes entravam e a maioria já me conhecia e não sabia falar meu nome então me chamavam de Mara, o que no começo me incomodava, mas agora já acostumei e assim me apresento para os novos clientes. Alguns assim que compram um livro vão para a cafeteria do outro lado, pedem uma xícara de chá ou café e devoram o livro sem qualquer pudor ali mesmo, transcrevendo os sentimentos causados pelas frases muito bem colocadas pelos gênios que as escrevem.
Quando são dezenove horas, o seu Manoel chega para fechar e assim eu posso ir para casa, tenho que pegar uma moto táxi porque a essa hora não tem ônibus, mas o seu Manoel paga a parte do transporte para mim.
Assim que eu desço vejo os olhinhos curiosos me observando da janela, eu subo o mais rápido possível os três degraus antes de finalmente abrir a porta. Ela salta do sofá em meus braços , beijando meu rosto exatas cinco vezes.
***** é a melhor!**** grita dando três beijos a mais.
******* o que aconteceu?
**** se faça de boba! ****** que escuto latidos junto as meninas descendo as escadas sabia o motivo dos beijinhos a mais.
**** é a mim que deve agradecer e sim a senhora Matilda.
*** já agradeci, mas ela já foi para casa.
Margo me explica que ela e as amigas pegaram Docinho no colégio, a mãe dela teve seis filhotes e que estavam distribuindo porque a mãe dela morreu, ela achou que o lugar deles seriam aqui, mas a professora disse que eram muitos, mas que se a diretora do orfanato deixasse ela poderia ficar com um, claro que a senhora Matilda não iria aguentar os olhos marejados das pequenas. A levei para lavar as mãos para irmos jantar, depois ajudei ela e as colegas com o dever de casa e por fim fui para o quarto fazer meu dever. Tabata estava desenhando no caderno com os fones no ouvido.
**** noite, você viu a docinho ? ********** pegando os cadernos e livros da mochila.
***.
Foi a monossilábica que ela me disse a noite toda, quando acabei de estudar, sem dúvida era difícil manter a concentração sem perder o fio da meada, ignorar todos os que não fazem parte de teoremas, revoluções ou protozoários, depois de um banho merecido era a hora de dormir das meninas seja com canções, leituras ou apenas um como foi seu dia? Ou como é sua casa dos sonhos? Quando a criatividade já estava esgotada.
**** se cansa dessa monotonia? ********* Ramona no canto da porta enquanto saio lentamente do quarto.
***** não cansa de esgueirar por aí?* sussurrou.
**** venha com seu vocabulário refinado para cima de mim, sabe quando eu tinha sua idade tudo o que eu queria era pegar a moto do meu pai e viajar, sem rumo certo. **** fala olhando para um ponto fixo como se estivesse buscando a lembrança.
***** feliz em saber, já procurou o psicólogo? Ele vai te ajudar com essas questões com seu pai. ******* me bate com um guardanapo que estava em seu ombro e começa a rir.
* Você pode sair um pouco da rotina as vezes, se aventurar, nada perigoso ou ilegal, mas sei lá ir no shopping com a Tabata um dia desses.
* Primeiro eu gosto da minha vida como ela é, segundo a Tabata preferiria a morte a ir ao shopping, principalmente comigo, olha já ta tarde e você já deveria estar em casa.****** abrindo a porta do quarto.
***** bem, boa noite, mas essa conversa ainda não acabou, ok?
***, boa noite! Até amanhã. * Entro no quarto e Tabata está sentada na cama me encarando, não fazia ideia do que queria dizer admito ter ficado assustada, ela retira um dos fones de ouvidos.
*** iria no shopping com você.* Ela fala antes de voltar sua cabeça para o caderno de desenhos, possivelmente essa era a maior interação que já tivemos, eu estava em em choque e estranhamente feliz por aquelas seis palavrinhas. **** noite.* Ela diz lançando os olhos novamente em minha direção se eu conseguisse ver minha cara seria sem dúvida uma otária sorridente balançando a cabeça, não sabia o quanto a aprovação dela era importante para mim.