VIII

1721 Words
22 de Outubro, nove dias antes do despertar... A senhora de muitas primaveras cujo processo contínuo, gradual de alterações naturais que começam já na idade adulta pareciam jamais lhe afetar — pois ainda permanecia com seus fios castanhos ondulados intactos em um belo corte "bob francês", os olhos amendoados em tom verde-musgo tão joviais quanto em sua adolescência e um porte físico de dar inveja a qualquer outra avó da região — encontrava-se na cozinha já adiantando o almoço daquele dia quando ouviu seus doces pássaros inquietos em suas gaiolas como jamais estiveram antes. Geralmente Martha os tinha por perto pois eram grandes sensitivos do mundo sobrenatural e por mais que suas incontáveis "armadilhas" pudessem ser quebradas e ultrapassadas de alguma forma, nada passava desapercebido por eles. Sentindo uma brisa fria pela casa e algo pesado pairando sobre o ar, não hesitou em seguir até o próprio quarto onde instintivamente pegou um pequeno livreto maltratado pelos anos de uso, com capa de couro amarrado junto a um colar, cujo pingente era uma pedra n***a traçada com uma runa em um fio de prata onde recitou pouquíssimas palavras até finalmente conseguir abrir o livro e um obscurial — uma espécie de fantasma maldito cuja aparência era nada mais que pele cinzenta sobre esqueleto, olhos negros tão profundos quanto breu, boca entreaberta com costuras que pareciam a um fio de arrebentar-lhe os lábios maltratados ao que sons estridentes como de lâmina sobre uma lousa lhe fugiam dos mesmos e garras no lugar dos dedos, ser esse que se alimenta de pesadelos — surgisse irado correndo em sua direção e com mais algumas poucas palavras o obscurial soltou um gemido estridente e se dissipou no ar. Não era a primeira vez que um obscurial surgia em sua casa, mas estava se tornando mais frequente nos últimos tempos. Ao mesmo instante em que finalmente conseguiu dissipar o ser maligno, um grito apavorado veio do quarto de Luce o que fez com que a senhora deixasse o livreto e o colar de lado, assim seguindo em disparada para o quarto da neta onde a encontrou já sentada sobre a cama, pálida, suada e ofegante com os olhos inundados em lágrimas. ── Luce! Querida, o que houve? ── questionou preocupada ao que se aproximava e sentava-se na beira da cama a envolvendo com os braços. ── Outro pesadelo? O que foi dessa vez? ── O de sempre... ── comentou em tom falho entre soluços, se aconchegando nos braços da avó onde pareciam ser seu mais seguro refúgio enquanto que Martha continuava a envolver como se fosse sua mais preciosa joia dizendo incessantemente que tudo estava bem, tudo ficaria bem. [•••] Naquela mesma tarde, a provecta se encontrava agora em seu escritório conferindo a caixa de e-mails onde um em particular lhe chamou a atenção. Como instinto, olhou por cima dos ombros afim de ter certeza que não estava sendo vigiada e então abriu-o: "Querida Martha, perdoe-me por entrar em contato num momento tão inesperado mas tenho péssimos presságios. Loren e eu fomos até o oráculo e ele nos alertou sobre os próximos dias, devemos nos preparar o quanto antes. Espero vê-la em breve, abraços de seu fiel amigo, Hugo." Um suspiro pesaroso escapou dos lábios da mulher que agora olhava além da janela, contemplando os céus em sua esplendorosa misturas das cores laranja e carmesim com passagem para um tom mais escuro mostrando o entardecer se findando e dando passagem para mais um anoitecer. Não era sempre que Hugo entrava em contato e quando o fazia, por mais discreto, sigiloso que fosse, tinha certeza de que coisa boa não era, mas dessa vez, ele havia sido muito direto o que a preocupava de mais. [•••] Na manhã seguinte, quando Luce já havia ido para o colégio. Martha pegou o que achava ser essencial para aquela viagem fazendo questão de somente deixar um bilhete para a neta pra que a mesma não se preocupasse desnecessariamente. Feito isso, pegou seus doces pássaros e seguiu para o aeroporto onde pegou um avião para o seu destino. Portland Oregon, uma viagem de quase um dia inteiro até finalmente chegar ao destino. [•••] Quando finalmente havia chegado, 'o círculo' já estava pronto e a espera. Todos os bruxos e feiticeiros de auto escalão que havia conhecido no decorrer de sua vida estavam ali presentes envolto da mesa. Ou ao menos, todos que ainda estavam vivos. "Entre, querida. É bom vê-la novamente mesmo que em circunstâncias tão drásticas." Uma das sete presentes ali ── a única cuja aparência lhe caía bem com os anos já vividos, embora pra muitos ainda fosse um milagre uma velhinha viver tanto e com tanta saúde e disposição; seus longos fios alvos como neve se mantinham presos em um coque feito às pressas, pele enrugada e maltratada com manchas que outrora denunciavam uma pele jovial cheia de sardas, uma postura meio corcunda que lhe obrigava a andar sempre com uma bengala em mãos mas os olhos ainda permaneciam vívidos como jamais se vira antes ── a mais velha dentre elas e também a tutora de Martha, que a acolheu quando ainda era menina e a ensinou tudo o que sabia. Agatha Mor. A mulher que acabava de chegar sorriu anuindo positivamente com um sorriso sútil nos lábios, não se demorando em se juntar com os demais. Hugo, o único bruxo de sangue puro que ainda manipulava perfeitamente os cristais da natureza e além, estava sentado à esquerda em silêncio com sua feição extremamente séria. Aquilo não se parecia em nada como uma reunião em família, estava longe disso, os presságios estavam cada vez mais claros quanto ao despertar e o fim dos tempos. Então um pigarreio fugiu dos lábios finos do homem, que sem demora teve a atenção de todos envolto da mesa e logo começaram a reunião. ── O oráculo nos alertou sobre os próximos dias, é inevitável que o despertar aconteça uma vez que o núcleo está instável... ── Os olhos violetas do homem seguiram em direção aos de Martha que engoliu em seco, ela mais do que ninguém sabia disso e não houve necessidade de um oráculo para tal. Por mais que essa tivesse sido sua missão, estava falhando miseravelmente e não entendia o porquê. ── haverá um desequilíbrio descomunal no mundo e já que o núcleo não consegue mantê-lo mais lá, precisamos nos preparar para o que virá. ── Não estamos preparados, na verdade, nunca estivemos. ── Interrompeu a mais nova dentre eles e a última a ter se integrado ao grupo, seus dons foram reconhecidos em 1968 quando ainda era uma criança e achou melhor manter-se como uma, não aparentando mais do que quatorze anos de idade. ── Hugo, se ele acordar sabe que a primeira coisa que ele fará será destruir tudo, não sabe? ── Questionou Alice. ── Sim, eu sei. Todos nós sabemos. ── apertou os punhos mais uma vez direcionando as íris até as da mulher que sentia a pressão sobre os ombros e tão logo quanto as direcionou até ela, desviou-as novamente para a pequena ruiva de olhos esmeralda. ── Mas um de nós ficou incumbido de cuidar do núcleo e prepará-lo para segurar ele o quanto fosse possível até entrarmos em ação. Por isso estou avisando sobre a desordem que ele causará no primeiro momento, mas vai cessar e precisamos restaurar a ordem antes... ── E os que morrerem no processo? Não somos necromante como você. E nem mesmo você sendo especialista e "todo poderoso" nisso conseguiria resolver o problema em grande escala. ── Seria mais fácil se calasse e escutasse, pequena Alice. Assim saberia o que fazer e nos poupava o tempo precioso que já não temos a nosso favor. ── A garota se encolheu em vergonha, sentindo as pontas das orelhas esquentarem enquanto que silêncio agora pairava em absoluto, deixando brexa mais que suficiente para o bruxo seguir adiante com as instruções ── Se dividirão e estarão nos pontos chave enquanto eu estarei no centro. Quando a lua se banhar de sangue começaremos a selar com véu, vamos enfraquecer no final, mas será o suficiente até que ele se solte de vez e finalmente esteja livre. ── Isso é loucura! ── A mulher que mais se parecia uma cigana, com aparência nos joviais vinte e cinco anos, pele morena, cabelos ondulados até a altura dos cotovelos, negros como a noite e olhos âmbar, bateu as mãos sobre a mesa em protesto ── Suicídio na certa. O que ganharemos com ele livre? Onde estão aqueles malditos que começaram tudo isso? Eles quem deveriam limpar a bagunça que fizeram, não nós. Ele não perdoa e não esquece, acham mesmo que ele vai deixar com que passemos ilesos?! Hugo...── Elionore foi quem se pronunciou dessa vez. Silêncio. Foi a única resposta que obteve do bruxo e não que fosse realmente necessário uma. Todos ali sabiam muito bem que não havia nada a ser ganho com aquilo e que ela estava mais que certa nisso tudo, mas que se pudessem adiar, mesmo que por tão pouco o fim, assim o fariam. Mesmo que custassem suas vidas. Então, como se já estivessem em total acordo, todos se puseram de pé, e com um simples aceno se dispersaram, cada um ao seu destino. Exceto Martha, que esperou todos sairem para finalmente se achegar até Hugo e o tomar pelos lábios. ── O que é isso? ── Questionou um tanto confuso com a reação repentina da mulher, a qual não o procurava para tal há décadas. ── O que mais seria? Estamos indo pra uma espécie de suicídio coletivo, sabe-se lá se por milagre sairemos vivos dessa ou não, então gostaria de ir pelo menos com uma lembrança boa de nós dois. ── sorriu ao canto dos lábios enquanto que o indicador destro lhe percorria o tronco como se trilando um caminho, um bem perigoso. O homem por sua vez engoliu em seco e umedeceu os lábios com a ponta da língua enquanto que desviava as íris violeta do verde predador que lhe consumia a alma. Era tolice resistir uma vez que seus instintos e desejos lhe consumiam toda vez que se encontrava a sós com aquela mulher. Eram como brasa consumidora. Não contendo, se entregou. [•••]
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD