Discussão

1077 Words
Logo o pai chegou e Isadora não conseguiu conversar com nenhuma das duas. Sempre evitava que o pai soubesse dos problemas da casa. Passou a noite em jejum e oração, pra que a irmã não se perdesse. Já se sentia culpada ao extremo por tudo o que acontecia em sua família, não conseguiria lidar em ver a irmã se desviando do caminho. Ainda mais por falta de cuidado da mãe nas poucas horas que ela saía de casa para estudar. Enquanto arrumava Sarah pra escola, resolveu perguntar. E então descobriu que aquilo era todos os dias. Depois que ela saia pra escola, a mãe ia beber, os meninos jogar vídeo game e Patrícia ia pra rua ficar com o namorado. Depois que todos saíram, Isa foi confrontar a mãe: — Mamãe, isso está saindo do controle! Você tem que parar de beber e se drogar! Tem que cuidar de seus filhos pelo menos enquanto estou na escola! — Cale a boca, Isadora. Eu não vou fazer nada de diferente. Essa vida não é a minha! Minha vida era linda e perfeita. Agora quase não vejo minha mãe, que não fez nada pra impedir aquela corja de nos atacar. Vivo em um barraco horrível, perto de gente feia. Seu pai trabalha pra uma pessoa chamada Urubu e tenho contato com tanta letra do alfabeto junto que as vezes me acho professora de português. — Vai fazer cinco anos, mãe. Você já deveria ter se acostumado! Eu sei que o papai guarda uma grana, tenho certeza que ele está tentando resolver pra sairmos daqui. Pelo menos ele se esforça pra gente não parar de estudar, ter uma vida melhor… — Exatamente isso. Eu cansei de falar pro seu pai vender esse barraco mais o dinheiro que sobrou da venda da nossa casa e comprar uma casa mais simples no asfalto. Se comprar uma casa de dois quartos, já tá bom. E colocar vocês em escola pública também vai ser excelente! — Mãe, se ouça. Ao invés de você se acostumar com o que tem e agradecer a Deus, você está querendo que o papai abra mão do pouco de qualidade de vida que ele ainda pode proporcionar aos filhos. Quer amontoar as crianças todas juntas em um quarto só, tirar da escola particular, pra que? Pra você não ouvir bailes funks, não ouvir alguém chamando os KLs, MVs da vida? Eu tenho uma coisa pra te contar, mamãe: em todos os lugares por onde andar, isso é uma realidade no Rio de Janeiro. Meninas com o movimento funk no corpo e na cabeça, pessoas fora do morro adotando esses apelidos ridículos. E aqui, pelo menos somos uma comunidade, estamos protegidas e somos respeitadas. Papai não se envolve com drogas e nem faz coisa errada, apesar de estar envolvido com o crime. Conhecemos todo mundo e tem muita gente boa por aqui, é só você abrir sua mente daquele mundinho cor de rosa que vivia em Resende, que a vida não é fácil pra ninguém. E tem mais, ou você conta pro papai que está com problemas com drogas, ou eu conto! Isadora não fez as tarefas de casa como todos os dias. Saiu, foi até o centro comunitário que tinha lá perto e matriculou os 4 em atividades físicas depois da aula. Ficou admirada em conseguir vagas tão fácil, e o instrutor, um professor de educação física lindo de morrer que não falava na gíria, pra surpresa de Isadora, explicou: — O centro é mantido por Urubu, pra atividades durante o dia todo. Culturais e físicas, ele não quer ser responsável por dizerem que desvia todas as crianças do caminho do bem. Mas durante a semana, as crianças estudam nesse horário, de manhã até temos uma quantidade de alunos razoável, mas à tarde, quase nada! E os maiores que não estudam nesse horário tem a obrigação de fazer as tarefas de casa, cuidar dos bebês, essas coisas. — Vejo que o seu vocabulário não é igual das pessoas daqui, e você não fala o mesmo dialeto… — Eu cresci no asfalto, Isadora. Minha mãe me deu pra uma família rica quando nasci. Depois que me formei, voltei pro morro com o projeto, que o Urubu abraçou. — Porque você fez isso, se tinha vida boa e confortável? — Porque eu acredito que se muda o mundo pela educação. Quero que muitas dessas meninas que engravidam cedo hoje, tenham cultura para não fazer isso com suas vidas! Minha mãe tem 41 anos, Isadora! Quero que meus irmãos tenham uma chance, uma opção! Isadora amou o jeito do rapaz e engataram em uma amizade interessante. Quando o pai veio conversar com ela, ela sustentou o que falou pra mãe. Arriscando causar uma separação, contou para o pai todos os problemas que enfrentava e como a mãe estava envolvida com álcool e drogas. O pai prometeu que ia resolver, exigiu que ela se matriculasse no centro comunitário na parte da manhã e perguntou o que ela pretendia fazer quando terminasse o ensino médio. — Ainda não pensei nisso, pai! Estamos no primeiro mês de aulas ainda! — Mas do último ano, menina. Já tem que começar a pensar em suas opções. — De verdade, eu queria ser enfermeira. Mas não é legal entrar na universidade direto sem fazer o técnico e auxiliar. — Então porque você já não começa o técnico logo agora e depois faz o auxiliar junto com a faculdade? — Porque além de caro, isso não é viável, pai. Mesmo que você consiga colocar mamãe nos eixos, ela ainda precisa de ajuda. São muitas crianças para dar conta, principalmente Patrícia que está se tornando uma piriguete de primeira categoria e alguém precisa vigiar! Fora isso, depois que começar os cursos, vou ter que fazer estágios obrigatórios. Não posso estudar em dois períodos e ainda fazer estágios, porque isso também vai me impedir de ir pra igreja e atrapalhar meu trabalho como regente dos adolescentes. E eu não quero perder meu cargo na igreja, pai. — Você sempre dedicada a tudo o que faz! Mas me promete que não vai desistir de estudar e se formar, e ser a enfermeira que sonha e deseja! — Missão dada é missão cumprida, pai. Soldado Isadora pedindo permissão pra se retirar! O pai riu, a abraçou e Isadora foi tomar banho, pensando no quanto o pai não perdeu a essência dele de quando viviam em Resende, sempre muito calmo e amando sua família.
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