FUNDAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
Foram essas as palavras que me recepcionaram assim que eu e Betina chegamos ao portão da Universidade naquela segunda-feira de sol forte, apesar de termos acordado cedo para irmos até lá. Sorrio para ela, ansiosa, finalmente sinto que minha nova vida está começando, mesmo sendo apenas o dia da matrícula presencial. Descemos em direção a um enorme edifício que a Betina me explica ser a biblioteca Central, mas antes dele, passamos de relance pela Reitoria que é cercada por uma grade azul e tem outros prédios junto naquele espaço.
Já estamos quase no final da descida, mas desde a entrada um monumento despertou minha atenção, a ponto de eu me aproximar, admirada. O monumento branco é alto, com peças esguias de concreto, com um lago na base e recortado de árvores do cerrado. Tem ao todo 24 colunas horizontais nascendo da água que se divide em quatro segmentos de seis colunas orientadas para o alto.
— Uau, o que é isso? – pergunto, admirada.
—Esse é o paliteiro, símbolo da UFMS – responde Betina olhando para o seu relógio.
— O que ele significa? – pergunto curiosa apontando pra ele. — Qual a sua história?
—Olha... eu não tenho a menor ideia. Quer dizer, acho que ninguém aqui tem a menor ideia do que ele significa, ou a história dele. Talvez seja de um ex aluno que decidiu criar o paliteiro para homenagear a universidade pelos seus anos acadêmicos, ou um artista que deu a sua obra de presente... Enfim, de fato não tenho a menor ideia, a única coisa que eu sei é que se continuarmos assim enfrentaremos uma enorme fila e não sairemos daqui tão cedo.
—Okay, desculpa – peço sem graça.
Sinto que estou atrapalhando a Betina com toda essa minha euforia de caloura, mas é impossível conter. Eu quero saber tudo a respeito daquele lugar que será meu lar pelos próximos quatro anos. Mas pelo que deu para perceber, terei sorte se eu descobrir quem é o artista que criou o paliteiro antes de me formar, tornando aquilo uma meta pessoal.
— Assim que acabarmos de fazer nossas matrículas, nós iremos visitar cada canto do campus — promete Betina segurando meu braço — Agora realmente temos de ir.
Caminhamos mais rápido, até entrarmos em um verdadeiro labirinto de corredores e salas, tento pegar referências para saber o caminha de volta, mas era bem difícil, não sei como a Betina não conseguiu errar nenhum corredor e quando percebi estávamos em um enorme corredor principal com quiosque de lanchonetes, instituições bancárias, Xerox, algumas pessoas vendendo seus produtos das plantações. Então voltamos a entrar em outros corredores menores, já estava me sentindo perdida quando a Betina parou em frente a uma janela semi gradeada ainda fechada e apontou dizendo:
— Aqui é a sua secretaria, como é o seu primeiro semestre, sua matrícula é feita aqui. Assim que terminar, me ligue e fique esperando em um dos quiosques que você viu lá no corredor central.
— E como faço pra chegar lá? – pergunto nervosa. Não tenho a menor ideia de onde eu estou ali.
— Bem simples – diz Betina enquanto me explica rapidamente todos os passos de volta que de simples não tinha nada — Sem erro. Vou indo, até mais.
— Encontro com você daqui a pouco – digo olhando pra janela. Pelo visto, será bem rápido.
— Não tão daqui a pouco assim – comenta Betina me fazendo olhar ao redor. Tinha muita gente sentada já esperando a secretária abrir. E quando digo muita gente....
****
Depois de muito, muito, muito tempo, finalmente fiz a minha matrícula no curso de Letras. Nunca pensei que tinha tanto papel para preencher, assinar, rubricar, cópias, pedidos do passe estudantil, bolsa permanência, inscrição para almoçar no RU, entre outras coisas. Agora imagina vinte pessoas fazendo exatamente a mesma coisa?
Apesar de ter demorado mais do que pensei, quando fui ligar para Betina , seu telefone chamou até cair da caixa postal, deixei algumas mensagens dizendo que iria esperá-la no corredor central e fui seguir as instruções que ela me passou. Depois de errar alguns corredores, finalmente voltei ao corredor central. Sentei em um dos quiosques e pedi um suco de laranja, que tomei enquanto observava a movimentação intensa do lugar. A diversidade de estilos, gêneros, personalidades, me encantavam. Alguns se abraçavam, empolgados, ao se reencontrar. Outros caminhavam assustados e ao mesmo tempo admirados, uma sensação que eu conheço bem. Algumas pessoas mais sérias, outras risonhas, beijos apaixonados e conversas sobre como foi as férias. Tudo aquilo me fazia sentir viva e pela primeira vez, me sinto fazendo parte de algo.
Então reparo um grupo usando cartolas listradas de amarelo e azul, eles param algumas pessoas e as fazem assinar seus chapéus e então seguem alegres. Então surgem mais alguns... Quando percebo, o corredor está praticamente tomado por cartolas listradas. Quem são eles? Pergunto-me, curiosa.
—Calouros de medicina – responde uma voz masculina me fazendo virar em sua direção. Jean me encara com seu belo sorriso estampado e vestindo camiseta branca e jeans escuro, bem diferente da outra noite, mas que não tira sua beleza. Sem esperar um convite, ele senta em minha frente.
—Olá – digo. Quer dizer, a única coisa que consigo dizer para ele que era a última pessoa que esperava encontrar por aqui.
— Quase não te reconheci com esses cabelos cacheados. – comenta apontando para os meus cabelos soltos.
— Ah, pois é. Essa sou eu – digo tocando em meus cabelos que estavam bem rebeldes naquela manhã.
— Interessante...
— Como assim? – pergunto curiosa.
—Bom, é que seu cabelo assim te dar um ar... mais jovial.
—Jovial? – questiono erguendo minha sobrancelha.
—Sim, você fica bem garotinha assim, quase não lembra a incrível mulher que eu conheci na outra noite – responde Jean calmamente. Quis levar como elogio, mas em nada parecia ser um — Mas talvez seja o macacão que está usando – finaliza Jean me observando de cima até embaixo, devagar... fazendo-me enrubescer.
—Oi, desculpa interromper – diz uma garota de cartola encarando nós dois com seus belos olhos azuis. Então ela se vira para o Jean — Você é o Jean Vasconcelos, certo?
—Culpado – responde Jean, sorrindo.
— Oh meu Deus, Poderia assinar minha cartola? – pede a jovem de cabelos loiros esticando a cartola e uma caneta em direção a Jean dando leves pulinhos, como se ele fosse algum cantor famoso e ela sua tiete.
—Claro que sim – responde Jean assinando seu nome com cuidado na cartola e então ele entrega pra ela, sem antes lhe dar uma piscadela que a faz corar... e a mim também — Bem vinda.
—Obrigada! Obrigada! – agradece a garota efusivamente sacudindo a mão de Jean. Então ela se vira para mim com um sorriso enorme — Você também cursa medicina?
—Não... Mas posso assinar a cartola. – respondo, sem graça, recebendo um em troca uma cara amarrada. Então ela se vira e sai sem ao menos se despedir. Olho para a Jean que ri da cena — Eu disse alguma coisa errada?
— De certa forma. – responde Jean erguendo o braço e pedindo um suco pra ele — Mas não se preocupe, acontece.
—Então, qual é a ideia da cartola? – pergunta enquanto mexo meu suco com meu canudo.
— A cartola é o símbolo do nosso curso: ela representa o calouro de medicina da UFMS. Como toda boa tradição, os calouros recebem suas cartolas em seu primeiro dia e passam a coletar assinaturas dos seus veteranos, voteranos, bisavoteranos, tataravoteranos e tataratataravoteranos... e assim vai.
— Uma bela recordação.
—Ela não é apenas uma recordação, mas motivo de orgulho entre as pessoas do nosso curso. Ela identifica quem são os calouros de medicina dentro do campus e fora dele. – finaliza Jean. Então vem mais um rapaz com as mesmas perguntas da outra garota e com o mesmo desfecho: sorrisos para o Jean, gelo para a caloura de Letras.
—Fora dele? – pergunto surpresa — Tem gente que usa fora do campus?
—Todos eles têm de usar o tempo todo. É uma regra, até que ocorra a libertação. – responde Jean tranquilamente enquanto assina outra cartola de outra garota que sai dando pulinhos de alegria.
— Mas por que amarela e azul? Sempre achei que a cor do seu curso fosse verde e branco...
—As cores são da nossa Atlética. – responde Jean assinando outra cartola enquanto mais duas pessoas aguardam sua vez. Ele dá atenção aos calouros que parecem ter descoberto uma celebridade em minha mesa. A naturalidade em que assina e conversa com todos eles, mostra que há muito tempo que faz isso. Quando terminou de assinar a última cartola, olha para mim enquanto sugere — Que tal conversarmos em outro lugar? Se continuarmos aqui, não teremos privacidade para conversar e nem lhe darei toda atenção que merece.
—Eu adoraria, mas estou esperando a Betina – respondo enquanto olho o visor do meu celular e nenhuma mensagem, ou ligação da Beti. Onde será que ela está?
— Suas amigas possuem o péssimo hábito de deixar você esperando – comenta Jean, ácido. Então sorri e se levanta , estendendo a mão em minha direção — Venha, chega desse chá de cadeira. Aposto que não conheceu o campus ainda.
— A Betina ia me mostrar...
—Esqueça a Betina, eu serei o seu guia. Tenho certeza de que serei melhor companhia que a sua amiga – diz Jean, com seu jeito autoritário de quem nunca ouviu um não na vida.
E que não escutaria agora, pois me levanto segurando em sua mão e caminhamos pelo corredor central. Noto alguns olhares curiosos em nossa direção, mas Jean não parece se importar e eu tento fazer o mesmo.
****
De fato Jean é um ótimo guia turístico, e o primeiro lugar que ele me levou foi ao paliteiro. Ainda de mãos dadas, encaramos o lugar enquanto sua voz conta, por mais incrível que isso possa parecer, toda a história do monumento:
— O Paliteiro é na verdade um relógio de luz que faz jogo de sombra. Caetano Fracarolli se inspirou na juventude para realizá-lo. As colunas horizontais nascendo da água, que representa a vida, expressam o dinamismo da juventude. As colunas orientadas para o alto, dando a ideia de infinito, representam as aspirações sem limites dos jovens.
— Nossa como sabe disso? – pergunto enquanto admiro o paliteiro.
— Eu li em um manual da UFMS que meu pai tinha em casa. Ele recebeu quando entrou na universidade, aqui foi o lugar onde meus pais se conheceram...
— Isso é muito legal, Jean – respondo. —— A Betina havia que ninguém tem a menor ideia da história dele, é muito bom saber que alguém teve interesse.
— Esqueça a Betina. Deixe-me tirar algumas fotos suas – pede Jean abrindo seu celular e se afastando. Sorrio fazendo algumas poses aleatórias, então ele se aproxima para tiramos algumas fotos juntos. Nossos olhos se encontram, seus dentes mordem seus lábios, como se tivesse segurando as palavras , prendo levemente a respiração... Já posso sentir seus lábios nos meus...
—Vamos, temos muito que ver ainda – diz Jean nos afastando do paliteiro e jogando um balde de água fria em mim.
Conheci todos os prédios e qual a funcionalidade de cada um deles. As quadras, as piscinas, onde fica o restaurante universitário, vimos algumas capivaras, vários gatos que se aninhavam pelas minhas pernas enquanto eu tentava imaginar o que aconteceria se eu levasse um deles para casa, ou dois, até três. Então atravessamos uma velha ponte de madeira, embaixo dela um tímido córrego e muitas árvores.
Quando começamos a andar na terra, me arrependo de não ter vindo com meu outro tênis, não com o branco. Não demora muito e chegamos a um enorme lago, mais alguns prédios, alguns jacarés e capivaras. Eles tinham uma reserva dentro do campus!
— Nossa, que lindo – digo observando a imensidão do lago.
—Lago do amor – apresenta Jean — O nome foi dado, pois o lago tem formato de coração.
— Lindo – digo olhando para Jean.
—Aqui é um lugar bem melhor para conversarmos, saber mais um do outro...
—Eu sei tudo sobre você – comento sem perceber. Então me viro, sem graça com a mão na boca.
—Ah, é mesmo? – pergunta Jean, surpreso, enquanto cruza seus braços— Posso saber quem contou a você?
— As meninas – respondo ajeitando meu cabelo — Aliás, acho que todo mundo sabe tudo sobre você.
— O que elas disseram a meu respeito? – pergunta Jean ficando sério.
—Muitas coisas — respondo, mais sem graça do que antes, ainda mais por lembrar de tudo o que me contaram.
—Que coisas?
— Ah... Seu pai é neurocirurgião e sua mãe desembargadora... Que você quer ser cirurgião cardíaco infantil... Líder da atlética de medicina, orador, diretor da comissão da formatura... voluntário em uma ONG para crianças com doenças cardíacas... Colaborador do Greenpeace e WWF... — respondo tentando lembrar de mais alguma e tentando esquecer outras, como a ex dele, Letícia. Voltamos a caminhar pelo lugar enquanto o vento nos refresca.
— Faço parte do DCE também – completa Jean com um leve sorriso, mas sem qualquer modéstia. — Então, o que achou?
— Bom, juntando essas informações com sua manhã de autógrafos com os calouros – digo arrancando um riso fácil dele — Cheguei a conclusão que você tipo uma celebridade na faculdade... O tipo de cara com quem eu jamais sairia.
— Por que você não sairia com tipos de caras como eu? – pergunta intrigado.
— Na verdade, caras como você jamais sairiam com garotas como eu. Sabe, eu não sou uma garota cheia de amigos, posso contar os meus nos dedos de uma mão só. E muito menos namorei ou namoraria um cara popular porque pra eles eu sempre fui invisível ou uma boa colega de sala para se fazer trabalho em sala, onde ela faz todo o trabalho enquanto eles saem fazendo as meninas interessantes suspirarem... como você faz. As pessoas não se interessam pela minha vida como se fosse um capítulo de uma novela das oito, ou um filme, até mesmo um Best seller que todos comentam. Aliás, se a nossa vida fosse uma novela, você seria o galã e eu seria escalada como figurante, mas nunca como a protagonista que termina aos beijos, ou em um belo vestido de casamento, e claro, com o galã – respondo sendo sincera. Tristemente, sendo sincera. Apesar de saber que aquela era minha realidade, contar alguém dói muito mais do que só viver assim.
—Acho que nós podemos mudar isso... - alega Jean parando em minha frente. Ele toca em meu rosto, enquanto sua outra mão segura a minha.
— Como? – pergunto vendo seu rosto se aproximar do meu.
— Começando pela figurante beijando o galã – responde Jean.
Seus lábios tocam os meus, dando início a minha ruína.