Sana's pov:
Hoje é meu primeiro dia de aula do último ano acadêmico. Momo até insistiu em me dar uma carona já que íamos para o mesmo local, mas preferi começar meu tour pessoal pela cidade o mais breve possível. Quando o ônibus para no meu ponto, saio, com minha mochila nas costas, e segurando o estojo do violino na mão.
Olhando para a frente do prédio, um movimento chama minha atenção e vejo Yuta parado na entrada. Seu cabelo escuro está arrepiado em algumas partes, mas completamente penteado em outras. Ele continua exatamente como eu me lembrava: meio magro, mas muito alto; meio nerd, mas estranhamente bonito.
— Você clareou o cabelo? — Ele pergunta assim que me aproximo, os olhos focando no meu cabelo castanho claro.
— Clariei. Gostou?
Ele inclina a cabeça para a esquerda, assimilando meu novo visual. Depois inclina para a direita e continua me encarando.
— Está ótimo. É muito você.
No quesito visual, Yuta gosta de tudo o mais normal possível. Ele odeia chamar atenção, mas sei que adora inovar quando o assunto é cabelo.
— Desculpa mesmo por não ter ido te buscar quando você chegou. — Ele diz, me puxando mais perto para um abraço acolhedor.
Sorrio.
— Bem, é como dizem, nada melhor para se redimir por não ter pego a prima no aeroporto do que ajudá-la a se virar pelo campus da faculdade.
Yuta ri, seus ombros subindo e descendo.
— Como está sua grade curricular? — Ele me cutuca de lado com um sorriso. Entrego o papel a Yuta, que o desdobra, correndo os olhos de um lado para o outro. — Ih, você pegou Estética e História da Música com o Professor Bang. c***l.
Franzo a testa.
— Por que? Ele por acaso é um daqueles professores rigorosos?
— Como sou um primo maravilhoso, não vou estragar a surpresa. Mas logo você vai saber do que estou falando. — Parece que ele está se divertindo, então prefiro não comentar. — Pelo menos temos a mesma aula de prática instrumental com a Professora In.
— Momo disse algo sobre ter conseguido me encaixar na turma de uma excelente professora. — Digo.
— Minha irmã nunca falha. Me encontra no refeitório na hora do almoço e eu te atualizo sobre algumas coisas da faculdade — Yuta devolve minha grade de horários e sai correndo para a aula.
Sigo devagar, procurando, explorando, e na esperança de aprender a me virar o mais rápido possível. Minha primeira aula é justamente com o Professor Bang. Ele está parado fora da sala de aula, cumprimentando todos.
— Eu não faria isso se fosse você — alerta-me uma voz.
Eu estou prestes a colocar meus livros em uma mesa na primeira fila. Quando me viro, vejo uma garota de cabelo escuro olhando-me.
— O Professor Bang é um excelente profissional, mas tende a ser um pouco expressivo demais durante suas explicações.
— Como assim?
— Bom, em outras palavras, é sempre bom usar um guarda-chuva perto dele. — Ela dá um tapinha na mesa do lado dela na fileira de trás. — Se quiser, pode sentar comigo aqui no fundo.
Aceito a oferta.
— Você é a novata de quem todos estão falando, né? — Ela pergunta.
Todo mundo está falando de mim? Essa ideia me faz revirar os olhos mentalmente, mas dou de ombros.
— Não, deve ser outra novata. Ninguém falou comigo ainda. Só a garota no ponto de ônibus que disse “obrigada”, mas até aquilo me pareceu um grande esforço para ela.
— É por isso que você é a novata. Todo mundo está analisando a presa antes de atacar. E com esse sotaque? — Diz a garota, rindo baixinho. — Garota. Você vai se tornar popular rapidinho. E é por isso que você vai precisar de mim — ela diz, dando um tapinha nas minhas costas. — Meu nome é Lalisa Manoban, mas você pode me chamar de Lisa. E eu sou a sua salvadora, minha amiga.
— É mesmo? — Digo, tirando uma caneta e um caderno da mochila, no caso de precisar anotar alguma coisa.
— Aham. Eu sou tipo, os olhos, os ouvidos e a voz do corpo discente. Sei tudo a respeito de todo mundo que importa e posso ajudar você a não ter problemas.
— Nossa, que gentil da sua parte.
— O que posso dizer? Sou caridosa — Ela diz, estendendo a mão para apertar a minha. — Qual é o seu nome, novata?
— Minatozaki Sana.
— E de onde você é, Sana?
— De Osaka, Japão.
— Muito bem — Ela diz, balançando a cabeça, seus olhos examinando meu corpo. — Você não se parece muito com a Srta. Hirai.
Arqueio uma sobrancelha.
— Como é?
— Já é de conhecimento mútuo que você é prima dela. — Lisa finca o cotovelo na mesa e apoia o queixo no punho. Então olha para mim e sorri. — Você vai ver logo… As pessoas falam muito aqui. É só o que fazem.
A garota do ponto de ônibus entra na sala e se senta duas fileiras na minha frente, mantendo a cabeça baixa o tempo inteiro. Seus cabelos castanhos combinam perfeitamente com sua pele alva. Ela parece diferente da maioria das garotas nos corredores. Mais fechada. Mais misteriosa. Linda. Ela põe a mão na mochila, tira um caderno e começa a escrever. Não para de colocar alguns fios atrás da orelha, mas sem desviar a atenção do caderno.
— Quem é aquela? — Pergunto a Lisa.
Os olhos dela focam na mesa para onde aponto, e ela ergue a sobrancelha.
— Seu nome é Kim Dahyun, ela é uma das alunas de ouro da KArts. Com uma qualificação como essa era de se imaginar que pertencesse ao círculo dos populares, mas não é o que acontece. Muitos alunos a consideram uma metida.
— Consideram ela metida ou não querem admitir que sofrem com complexo de inferioridade?
— Touché. — Lisa diz, sorrindo.
Fico em silêncio, meio pensativa. Ao conhecer alguém, quase sempre acho desnecessário fazer comentários sobre as capacidades intelectuais da pessoa. E principalmente julgá-la com base nisso. Com aquela única frase, eu tive certeza de que não gostaria de muitas pessoas do campus.
Fiquei aérea durante a maior parte das aulas da manhã — percebi que eram todas iguais. Ementas, objetivos dos professores, momentos para quebrar o gelo. Fico feliz ao ver que a faculdade é exatamente como a que eu frequentava em Osaka: desing moderno, alunos transitando pelos corredores, pôsteres de projetos acadêmicos perto dos escaninhos e as vozes de muitas pessoas fofocando.
De vez em quando, vejo Dahyun pelos corredores, mas ela está sempre de cabeça baixa ou conversando com a outra garota que também estava no ponto de ônibus.
Amiga dela? Não faço ideia.
Ao menos a garota a faz sorrir, o que já é uma espécie de conquista. Dahyun não sorri muito; é mais do tipo que franze a testa. É estranho, mas isso a deixa mais intrigante.
No horário do almoço, consigo localizar o refeitório sem maiores problemas.
Não fico surpresa ao ver Yuta me esperando. Ele está sentado na mesa de trás, perto dos troféus acadêmicos. Quando me vê, abre um sorriso e acena para mim.
— Ei, Sana. Vejo que conseguiu encontrar o refeitório. — Ele bate na cadeira à frente dele e me convida a se sentar. Ao que coloco o estojo do violino em uma das cadeiras e me sento, ele continua: — Então, como está sendo seu primeiro dia?
— Está sendo bem tranquilo. — Respondo, olhando as opções de almoço no cardápio. Não quero dizer a ele que até agora minha experiência está sendo comparada a um primeiro dia de aula no colegial.
— Eu sei, é um tédio, né? Mas logo você vai sentir a verdadeira pressão acadêmica da KArts.
— Vou confiar nas suas palavras já que é um veterano no assunto.
— Certo, agora permita-me te atualizar sobre minha fantástica vida em Seul — Yuta diz, deslizando meu cardápio para longe de mim.
Momo e Yuta são irmãos — os cabelos, quando não estão tingidos, e a cor dos olhos deixam isso bem claro —, mas eles são praticamente o oposto um do outro. Momo é mais centrada e reservada, uma típica mulher de finanças. Yuta, ao contrário, é sempre tão agitado.
— Para resumir, continuo solteiro. — Ele cruza os braços por um segundo, parecendo realmente chateado, antes de olhar para mim com um sorriso divertido — Eu espero que você tenha mais sorte do que eu. Nossa! É tão difícil viver em uma sociedade como esta. — Ele cobre o rosto com as mãos, num gesto dramático, e prossegue com sons de choros falsos.
— Você está solteiro? Pensei que estivesse conhecendo alguém. — Digo, confusa com a novidade repentina do meu primo.
Durante uma de nossas últimas conversas, Yuta me comunicou que estava conhecendo alguém. Isso enquanto eu ainda estava processando a informação de que ele gostava de garotos.
— Ah, não deu certo. Você sabe como as coisas funcionam nessa nossa sociedade maravilhosa. A maioria dos caras com quem me relaciono não se sente à vontade com a ideia de que o mundo de Seul saiba o que fazem, e eu não quero expor ninguém. Afinal, eu também não saí do armário. — Ele faz uma pausa. — Ah, além disso, você sabe muito bem como nossa família é. Minha mãe jamais aceitaria um filho gay. Ela já ficou decepcionada quando Momo…
— Se assumiu bissexual — Digo, completando o pensamento de Yuta. Nossa família é bem tradicional, e digamos que homossexualidade não está exatamente no topo da sua lista de bons costumes. — Bom, você sabe muito bem como minha mãe reagiu quando descobriu que tem uma filha lésbica.
— Resumindo, temos uma vida complicada. — Yuta faz uma pausa. — Então você já está de olho em alguém?
Sorrio. A linha de raciocínio do meu primo tende a ser bem inesperada. Admito que as vezes é difícil acompanhá-lo.
— É meu primeiro dia de aula, Yuta.
A mão dele voa para seu peito e seus olhos se estreitam.
— Por que diabos você me daria uma resposta como essa? Definitivamente você não é a mesma, Sana. Estou decepcionado.
Dou risada diante do seu comentário. Gosto de como Yuta é atrevido do jeito certo. Somente agora em sua companhia, percebo o quanto realmente senti sua falta.
— Vou pegar nossos almoços. Quando voltar te atualizo sobre a faculdade. — Yuta se levanta da cadeira. Mas não vai diretamente para a fila. Ele passa por algumas mesas no trajeto, onde as pessoas o cumprimentam com abraços e apertos de mão. Pelo visto, todo mundo no campus gosta dele, e eu posso entender por quê.
Mas também sei que por baixo dessa personalidade forte e divertida do Yuta se esconde alguém bem mais sensível do que deixa transparecer. E duvido que ele esteja feliz diante de todas essas questões familiares.
[…]
Por volta das cinco horas, Yuta estaciona seu carro em frente a casa de Momo. Ele insistiu para que eu aceitasse a carona e deixou bem claro que não aceitaria um não como resposta. Mas devo admitir que foi maravilhoso aproveitar mais esse tempo em sua companhia já que passamos todo o trajeto debatendo sobre as vertentes da música clássica.
— Tem certeza de que não quer companhia? — Ele pergunta quando saio do carro.
— Obrigada, mas não precisa. Momo deve chegar daqui a pouco. Além disso, vi que tem um parque perto do bairro e pretendo fazer uma corrida.
— Tudo bem, só não vá exagerar. — Ele fica em silêncio e olha para mim. — Você está mesmo bem, Sana?
Abro um sorriso forçado e assinto.
— Estou.
— Sana, estou preocupado com você. Momo também está. — A preocupação é evidente em seu tom de voz, encharcada de pesar pela minha vida. — Não quis tocar nesse assunto antes, mas…
— Por favor, Yuta… — digo, passando a mão nos cabelos em sinal de frustação. Ele olha para mim por longos segundos, mas parece ceder.
— Está bem, é só que… Depois do acidente e das coisas com sua mãe… — Suas palavras vão sumindo. — Só quero que você saiba que estamos aqui. Se precisar de nós. Sei que ficamos afastados por todos esses anos, mas… se quiser conversar, estou aqui.
Existem duas formas de lidar com tragédias pessoais. Aquela em que a pessoa abre seu coração e compartilha seus dilemas com todos a sua volta. E aquela em que a pessoa se fecha, incapaz de se conectar com os outros.
Eu definitivamente não escolhi a primeira opção. Respiro fundo antes de dizer:
— Você devia praticar mais a música Nocturne; Chopin. Pareceu um pouco fora do tom quando tocamos durante a aula de prática instrumental. — Seguro a alça da minha mochila com mais força. — Te vejo amanhã.
Viro-me e entro em casa, ouvindo o som do carro de Yuta acelerando pelo cascalho.
Depois de guardar meu material e vestir uma roupa mais confortável, saio de casa e disparo em direção ao parque em uma corrida lenta, porém não demoro muito para pegar velocidade.
Quando eu corria em Osaka, sempre acabava de volta no mesmo lugar, em uma avenida movimentada, olhando para o local onde o pior momento da minha vida acontecera. Ao menos em Seul, isso não vai acontecer. Dobrando os joelhos, me abaixo e fico olhando fixamente para o lago do Yangsun Park.
Eu não permiti que meu cérebro processasse a morte do meu amigo — ainda estava um pouco em estado de choque diante da possibilidade de não poder mais tocar violino. Não importa o quão forte você seja, sempre vai existir alguma situação capaz de te desestabilizar.
Me levanto e começo a fazer o percurso de volta, sentindo meus músculos se contraindo por conta da corrida.
Não há ninguém com quem eu possa realmente conversar sobre meus problemas. Meus primos não vão entender, mesmo que eu tente explicar. Além disso, não quero fazer com que se sintam m*l como eu me sinto todo dia.
Por alguma razão desconhecida esse pensamento me levou a garota do ponto de ônibus; Kim Dahyun. Seus olhos eram surreais, intensos, até. Olhos escuros e poderosos que pareciam tão tristes. Mas lindos.
Eu deveria ter me aproximando dela. Deveria ter me sentando ao seu lado e conversado com ela. Dahyun sorriu enquanto estava na companhia da amiga, mas ainda havia tristeza no seu semblante delicado. Ela está lidando com algum tipo de dor, e é perceptível que isso a consome — da mesma forma que minha tristeza tem acabado comigo. E nada nem ninguém pode impedir que isso aconteça.
Uma parte de mim acha que eu mereço tudo pelo que tenho passado. Mas juro que não consigo acreditar que aquela garota mereça estar tão triste. No fundo eu espero que algum dia alguém possa fazê-la sorrir sem nenhum traço de tristeza.