D O I S-1

2133 Words
D O I S Quando cheguei à casa de meu pai, o sol estava se pondo, a temperatura caía e a neve começava a endurecer, quebrando sob meus pés. Sai da floresta e avistei nossa casa ali, visivelmente situada ao lado da estrada e me senti aliviada, pois ela parecia tranquila, exatamente como a deixei. Eu imediatamente procuro por pegadas na neve – ou sinais de animais- saindo ou entrando e não encontro nada. Não há nenhuma luz no interior da casa, mas isto é o normal. Eu ficaria preocupada se houvesse. Não temos eletricidade, então luzes significariam apenas que Bree acendeu velas – e ela não o deveria fazer sem mim. Eu paro e escuto por vários minutos, está tudo quieto. Não há ruídos de lutas, pedidos por socorro nem gemidos por doenças. Dou um suspiro de alívio. Uma parte de mim sempre teme que, ao retornar, eu encontre a porta aberta, as janelas quebradas, pegadas entrando na casa e Bree desaparecida. Já tive esse pesadelo inúmeras vezes e sempre acordo suando, então ando para o outro quarto e me certifico de que ela ainda está lá. E ela sempre está, segura e a salvo, e eu me repreendo por isso. Sei que eu deveria parar de me preocupar tanto, após todos esses anos. Mas, por algum motivo, não consigo evitar: toda vez que preciso deixar Bree sozinha, é como se apunhalassem uma faca em meu coração. Ainda atenta, analisando tudo o que me rodeia, examino nossa casa sob a luz do dia, que vai enfraquecendo. Honestamente, essa casa nunca foi boa pra começo de conversa. Um típico rancho de montanha, uma caixa retangular sem nenhum detalhe, enfeitada com revestimento de vinil de piscina, que parecia velho desde o primeiro dia e agora parece simplesmente deteriorado. As janelas são pequenas e escassas e feitas de plástico barato. Parecem aquelas de trailers. Talvez tenha uns 4,5m de largura por uns 9m de profundidade, ela deveria ter apenas um quarto, mas, quem quer que a tenha construído, com sua mente brilhante, a fez com dois quartos pequenos e uma sala de estar menor ainda. Lembro-me de visitá-la quando criança, antes da guerra, quando o mundo ainda era normal. Papai, quando estava em casa, nos trazia aqui para passar o final de semana, para fugir da cidade. Eu não queria parecer m*l agradecida, então sempre colocava um sorriso no rosto, mas, no fundo, eu nunca gostei daqui; sempre me pareceu uma casa escura e apertada e havia um cheiro desagradável de umidade. Quando pequena, recordo que m*l podia esperar para o final de semana acabar, para me livrar logo deste lugar. Eu me lembro de secretamente me prometer que eu jamais voltaria para cá. Agora, ironicamente, agradeço a este lugar. Esta casa salvou minha vida — e a de Bree. Quando a guerra estourou e tivemos que fugir da cidade, não tínhamos opções. Se não fosse por este lugar, não sei para onde teríamos ido. E, se este lugar não fosse tão alto e remoto como é, então, provavelmente, nós teríamos sido capturadas por comerciantes de escravos há muito tempo. É engraçado como você odeia tanto algumas coisas quando criança e acaba apreciando as mesmas quando adulta. Bom, quase adulta. Tenho 17 anos, e me considero uma pessoa adulta, de qualquer forma. Eu provavelmente envelheci mais do que a maioria nos últimos anos. Se esta casa não tivesse sido construída bem na estrada, tão exposta – se ela fosse um pouco menor, mais protegida, mais dentro do bosque, eu acho que não me preocuparia tanto. Claro, ainda teríamos que aguentar as paredes finas, as goteiras no teto, as janelas que deixam vento passar. Jamais seria uma casa quente e confortável. Mas pelo menos, seria segura. Agora, toda vez que olho para ela e depois para a enorme vastidão que vai além, não consigo deixar de pensar que é um alvo fácil. Meus pés trituram a neve à medida que me aproximo de nossa porta de vinil e latidos surgem de dentro da casa. É Sasha, fazendo o que eu a ensinei a fazer: proteger Bree. Eu sou tão grata a ela. Ela cuida de Bree com tanto esmero, late ao mínimo barulho; isso me permite um pouco de tranquilidade, o suficiente para deixá-la em casa quando vou caçar. Porém, ao mesmo tempo, me preocupa também que seus ladros acabem por nos denunciar: afinal, um cachorro latindo, em geral, significa que há humanos por perto. E é exatamente o que um comerciante de e*****o procura escutar. Eu me apresso para entrar em casa e rapidamente silenciá-la. Fecho a porta atrás de mim, fazendo malabares com os pedaços de lenhas em minhas mãos e entro na sala escura. Sasha fica quieta, balançando seu r**o e pulando em cima de mim. Um labrador cor chocolate, de seis anos de idade, Sasha é o cão mais leal que eu poderia imaginar – e é a melhor companhia. Se não fosse por ela, eu acho que Bree teria entrado em depressão há muito tempo. E eu também. Sasha lambe meu rosto choramingando e parece ainda mais contente que o normal; ela fareja minha cintura e meus bolsos, já sentindo que eu trouxe alguma coisa especial. Eu deixo a lenha de lado para acariciá-la e, ao fazê-lo, sinto suas costelas. Ela está tão magra. Sinto-me culpada. Por outro lado, eu e Bree também estamos assim. Nós sempre compartilhamos com ela o que encontramos para comer, desse jeito, as três tem condições iguais. Mesmo assim, eu gostaria de poder lhe dar muito mais. Ela encosta seu nariz no peixe e, ao fazê-lo, o peixe cai da minha mão diretamente no chão. Sasha imediatamente se lança sobre ele, suas unhas o fazem deslizar. Ela salta sobre o peixe novamente e, desta vez, o morde. Mas não deve ter gostado muito do sabor de peixe cru, pois, em seguida, o larga. Agora ela está brincando com o peixe, pulando sobre ele de novo e de novo enquanto o mesmo desliza pelo chão. “Sasha, pare!” eu digo baixinho pois não quero acordar Bree. Também temo que se ela brincar demais com o peixe, ele acabe se abrindo e desperdiçando carne valiosa. Obedientemente, Sasha para. Posso ver como ela está animada e quero lhe dar alguma coisa. Coloco minha mão em meu bolso, giro a tampa do frasco de conservas, tiro um pouco de geleia de framboesa com meu dedo e ofereço a ela. Sem perder tempo, ela lambe meu dedo e, em três grandes lambidas ela já comeu tudo o que servi. Ela lambe seus lábios e me encara, os olhos bem abertos, pedindo mais. Eu acaricio sua cabeça, lhe dou um beijo e fico de pé novamente. Agora me pergunto se foi bondoso lhe dar algo ou c***l lhe dar tão pouco. A casa está escura, como sempre está à noite e vou tropeçando pela sala. Eu raramente acenderia a lareira. Por mais que necessitemos do calor, não quero correr o risco de chamar atenção. Mas, hoje à noite é diferente: Bree precisar melhorar, física e emocionalmente, e eu sei que o fogo vai ajudá-la. Também me sinto mais corajosa hoje, uma vez que iremos nos mudar daqui amanhã. Cruzo a sala até chegar ao armário e dele tiro uma vela e um isqueiro. Uma das melhores coisas dessa casa é seu enorme estoque de velas, uma das poucas boas consequências de meu pai ter sido um fuzileiro da Marinha e um fanático por sobrevivência. Quando éramos crianças e visitávamos aqui, a eletricidade caía em toda tempestade e, por isso, ele estocava tantas velas, determinado a vencer a natureza. Eu me lembro de que costumava tirar sarro dele por isso; o chamava de “acumulador” quando descobri seu armário lotado de velas. Agora que temos só algumas, gostaria que ele tivesse guardado mais. Tenho conservado nosso isqueiro utilizando-o com moderação e lhe passando um pouquinho de gasolina da motocicleta a cada algumas semanas. Eu agradeço a Deus todos os dias pela moto de meu pai e sou muito grata que ele tenha enchido seu tanque uma última vez: é a única coisa que possuímos e que me faz crer que ainda temos uma vantagem, que ainda temos algo valioso, um jeito de sobreviver se tudo for para o inferno. Papai sempre manteve a moto na pequena garagem anexada a casa, porém, quando chegamos, após a guerra, a primeira coisa que fiz foi removê-la dali e levá-la até o topo da colina, dentro da floresta, escondendo-a entre os arbustos e galhos e espinhos tão espessos para que ninguém a encontrasse. Eu pensei que, se nossa casa um dia fosse descoberta, a primeira coisa que fariam seria revistar a garagem. Eu sou extremamente grata que meu pai tenha me ensinado como pilotá-la quando eu era mais nova apesar dos protestos de mamãe. Foi mais difícil de aprender do que a maioria das outras motos devido ao sidecar que ela tem. Eu me lembro de que, aos doze anos eu, aterrorizada, aprendi a conduzi-la com meu pai, que se sentava no sidecar e me dava ordens toda vez que eu deixava o motor morrer. Aprendi nessas estradas íngremes e implacáveis, lembro-me de pensar que iríamos morrer. Recordo-me de olhar para a beira da estrada, vendo a queda e, chorando, insistir que meu pai pilotasse. Mas ele se recusou. Ficou sentado, teimoso, por mais de uma hora até que eu parasse de chorar e tentasse mais uma vez. E, de algum jeito, eu acabei aprendendo. Em resumo, essa foi minha infância. Eu não me aproximei da moto desde o dia em que eu a escondi, sequer me arrisco a vê-la, a não ser quando eu preciso pegar combustível – e, mesmo assim, só o faço à noite. Imagino que, se um dia a gente estiver em apuros e precisarmos dar o fora daqui o quanto antes, eu colocarei Bree e Sasha no sidecar e levarei todo mundo para longe em segurança. Mas, na realidade, eu não tenho ideia para onde iríamos. De acordo com tudo que já vi e ouvi, o resto do mundo é uma terra devastada, cheia de criminosos violentos, gangues e poucos sobreviventes. Os poucos violentos que sobreviveram se concentraram nas cidades, sequestrando e escravizando quem eles encontram, ou para servirem a eles mesmos ou para participarem dos jogos mortais nas arenas. Acredito que eu e Bree somos uns dos poucos sobreviventes que ainda vivem livremente, por conta própria, fora das cidades. E uns dos poucos que ainda não morreram de fome. Acendo a vela, Sasha me seguindo enquanto eu caminho lentamente pela casa escura. Suponho que Bree esteja dormindo e isso me preocupa: ela geralmente não dorme tanto assim. Eu paro na frente de sua porta, indecisa se devo acordá-la. Ao parar ali, olho para cima e me assusto com meu próprio reflexo no pequeno espelho. Vejo como estou muito mais velha, como toda vez que me olho no espelho. Meu rosto, magro e anguloso, está corado pelo frio, meu cabelo castanho claro cai sobre meus ombros, emoldurando minha face e meus olhos acinzentados me encaram, como se pertencessem à outra pessoa que eu não reconheço. São severos e penetrantes. Papai sempre me dizia que eu tinha olhos de lobo. Mamãe sempre dizia que eram lindos. Não sabia em quem acreditar. Eu rapidamente desvio o olhar, não querendo me ver. Estendo minha mão e viro o espelho para que isso não se repita. Lentamente, eu abro a porta do quarto de Bree. E, no segundo que o faço, Sasha entra e corre para o lado dela, deitando-se e apoiando seu queixo no peito de minha irmã, enquanto lhe lambe o rosto. Nunca deixo de me impressionar o quanto essas suas são unidas; às vezes sinto que são mais unidas do que nós. Bree abre os olhos devagar e os mantém semicerrados enquanto olha para a escuridão. “Brooke?” ela pergunta. “Sou eu,” eu digo, em voz baixa. “Estou em casa.” Ela se senta e abre um sorriso, seus olhos se iluminam ao me reconhecer. Ela está em um colchão barato no chão, então retira sua fina manta e começa a se levantar, ainda de pijama. Está se movendo mais devagar que o normal. Eu me abaixo e lhe dou um abraço. “Tenho uma surpresa para você,” eu falo, m*l conseguindo esconder minha ansiedade. Bree arregala os olhos, então os fecha e estende as mãos abertas, aguardando. Ela é tão confiante, tão otimista, que me impressiona. Estou indecisa sobre o que devo lhe dar primeiro e então me decido pelo chocolate. Coloco a mão em meu bolso, tiro a barra e calmamente a ponho em suas mãos. Ela abre os olhos e olha para baixo, seus olhos semicerrados sob a luz, incerta. Aproximo a vela.
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