CAPÍTULO DOIS-2

2103 Words
Ela se lembra imediatamente de Aidan, e quando ela vira e o segura pelos ombros, ele a observa com os olhos cheios de lágrimas, parecendo assustado, porém ileso. Ela sente uma pontada de alívio quando ela percebe que ele está bem. Kyra se vira e vê seus dois irmãos mais velhos, ainda deitados na clareira, olhando para ela com choque - e pavor. Mas há algo mais no olhar deles, algo que a deixa abalada: suspeita. Eles a observam como se ela fosse diferente deles. Uma pessoa de fora. É um olhar que Kyra já tinha visto antes, raramente, mas um número suficiente de vezes para deixá-la curiosa a respeito de si mesma. Ela olha mais uma vez para o animal morto, monstruoso, enorme, jogado aos seus pés, e se pergunta como ela, uma menina de quinze anos de idade, poderia ter feito aquilo. Aquilo tinha sido um golpe além de suas habilidades, e ela sabe disso. Era algo mais além de um golpe de sorte. Ela sempre soube que havia algo diferente sobre ela. Ela fica ali, entorpecida, querendo se mover, mas incapaz de fazê-lo. Porque o que a tinha deixado abalado não era aquela criatura, mas a maneira como seus irmãos tinham olhado para ela. E ela não consegue deixar de fazer, pela milionésima vez, a pergunta que ela tinha medo de enfrentar durante toda a sua vida: Quem era ela? CAPÍTULO TRÊS Kyra anda atrás de seus irmãos enquanto todos sobem pela estrada de volta para o forte, e ela os observa lutando sob o peso do javali, acompanhada de Aidan e com Leo, que retornou de sua caça, em seus calcanhares. Brandon e Braxton se esforçam para levar o animal morto, preso às suas duas lanças apoiadas em seus ombros. O humor sombrio tinha mudado drasticamente assim que haviam deixado a floresta e ficado a céu aberto, especialmente agora com o forte de seu pai à vista. A cada passo, Brandon e Braxton se tornam mais confiantes, quase tão arrogantes quanto antes, e agora eles riem entre si e se gabam de sua matança. "Foi a minha lança que passou raspando por ele," diz Brandon para Braxton. "Mas," rebate Braxton, "foi a minha lança que o levou para a direção da flecha de Kyra." Kyra ouve, enrubescendo ao ouvir as mentiras deles; seus irmãos com cabeça de vento estão praticamente convencidos de sua própria história, e parecem realmente acreditar no que dizem. Ela já pode prever sua vanglória no salão de seu pai, contando a todos sobre a matança deles. É enlouquecedor. No entanto, ela sente que não deve corrigi-los. Ela acredita firmemente nas rodas da justiça, e sabe, eventualmente, a verdade sairia vitoriosa. "Vocês são uns mentirosos," Aidan diz, caminhando ao lado de Kyra, claramente ainda abalado pelos acontecimentos. "Vocês sabem muito bem que foi Kyra que matou o javali." Brandon olha por cima do ombro com ironia, como se Aidan fosse um inseto. "E você por acaso viu alguma coisa?" Ele pergunta para Aidan. "Você estava ocupado demais mijando nas calças." Os dois são risadas, como se fortalecendo a sua história a cada passo. "E vocês não estavam morrendo com medo?" Pergunta Kyra, saindo em defesa de Aidan, incapaz de suportar mais um segundo daquela conversa. Com isso, os dois ficam em silêncio. Kyra poderia facilmente dizer-lhes algumas verdades, mas ela não precisa levantar a voz. Ela caminha alegremente, sentindo-se bem consigo mesma, sabendo no fundo de seu coração que ela havia salvado a vida de seu irmão; e essa é toda a satisfação de que ela precisa. Kyra sente uma pequena mão em seu ombro, e ao olhar para lado vê Aidan, sorrindo, consolando-a, claramente grato por estar vivo e sem qualquer arranhão. Kyra se pergunta se seus irmãos mais velhos também apreciam o que ela tinha feito por eles; afinal de contas, se ela não tivesse aparecido naquele exato momento, eles também teriam sido mortos. Kyra observa o javali balançando diante dela, e ela faz uma careta; ela gostaria que seus irmãos tivessem deixado o javali na clareira, onde era o seu lugar. Aquele era um animal amaldiçoado, ele não era de Volis, e não deveria estar ali. Ele representa um mau presságio, especialmente vindo da Floresta de Espinhos e, especialmente, na véspera da Lua de Inverno. Ela se lembra de um velho ditado que ela tinha lido: não se orgulhe depois de ser poupado da morte. Seus irmãos, ela sente, estavam tentando o destino, levando a escuridão de volta para sua casa. Ela não consegue evitar a sensação de que aquilo tudo é um sinal de coisas ruins que estão por vir. Eles chegam ao topo de uma colina e assim que o fazem, a fortaleza surge diante deles, juntamente com uma vista deslumbrante da paisagem ao redor dela. Apesar da rajada de vento e da neve cada vez mais intensa, Kyra é tomada por uma grande sensação de alívio por estar em casa. Há fumaça saindo das chaminés que pontilham o campo, e o forte de seu pai emite um brilho suave e aconchegante, completamente iluminado com fogueiras e tochas, rechaçando a chegada do crepúsculo. A estrada se alarga quando eles se aproximam da ponte, e todos aumentam o ritmo e caminham a passos largos na etapa final. A estrada está repleta de pessoas, ansiosas para o festival, apesar do tempo r**m e da noite que cai. Kyra não está surpresa. O festival da Lua Inverno é um dos feriados mais importantes do ano, e todos estão ocupados se preparando para a festa por vir. Uma grande multidão de pessoas se amontoa sobre a ponte levadiça, correndo para pegar suas mercadorias nos fornecedores, para juntar-se à festa do forte - enquanto um número igual de pessoas corre para fora do portão, apressando-se para retornar para suas casas e celebrar com suas famílias. Bois puxam carrinhos e levam mercadorias em ambas as direções, enquanto pedreiros erguem mais um muro que está sendo construído para p******o do forte, o som de seus martelos uma constante no ar, pontuando o barulho do gado e de cães. Kyra se pergunta como eles podem trabalhar com este tempo, como eles evitam que suas mãos se congelem. Ao entrarem na ponte, misturando-se com as massas, Kyra olha para frente e seu estômago se contrai quando ela vê, de pé perto da porta, vários dos homens do Lorde, os soldados do Lorde Governador, designados pela Pandésia, vestindo suas distintivas cotas de malha escarlate. Ela sente um lampejo de indignação com a visão, compartilhando o mesmo ressentimento que o restante de seu povo. A presença dos homens do Lorde é opressiva a qualquer momento - sobretudo durante a Lua Inverno, quando eles certamente só poderiam estar ali para recolher os recursos que puderem de seu povo. Em sua mente, eles não passavam de coletores, coletores valentões para os aristocratas desprezíveis que tinham se colocado no poder desde a invasão Pandesiana. O antigo rei e sua fraqueza eram responsáveis por aquela situação, tendo se rendido a eles - mais isso fazia pouca diferença agora. Agora, para sua desgraça, eles tinham que respeitas aqueles homens, o que deixa Kyra furiosa. A situação faz de seu pai e seus grandes guerreiros, e todo o seu povo, nada mais do que servos elevados; ela desesperadamente deseja que todos eles se revoltem, - que lutem por sua liberdade, para lutar a guerra que o antigo rei havia temido. No entanto, ela também sabe que se eles se revoltarem agora, terão que enfrentar a ira do exército Pandesiano. Talvez eles pudessem ter oferecido resistência se nunca os tivessem deixado entrar; mas agora que eles estão entrincheirados, seu povo tem poucas opções. Eles chegam à ponte, misturando-se com a multidão, e quando eles passam as pessoas param, olham, e apontam para o javali. Kyra tem uma pequena satisfação ao ver que seus irmãos estão suando sob o peso do animal, ofegantes. Enquanto eles andam, cabeças se viram e as pessoas ficam boquiabertas, plebeus e guerreiros igualmente, todos impressionados com a enorme criatura. Ela também vê alguns olhares supersticiosos, algumas das pessoas querendo saber, como ela, se aquilo seria um mau presságio. Todos os olhos, no entanto, olham para seus irmãos com orgulho. "Uma excelente caça para o festival!" Um fazendeiro grita, guiando seu boi ao se juntar à eles na rua. Brandon e Braxton sorriem orgulhosos. "Ele deve ser suficiente para alimentar metade da corte de seu pai!" Grita um açougueiro. "Como vocês conseguiram fazer isso?" Pergunta um seleiro. Os dois irmãos trocam um olhar, e Brandon finalmente sorri de volta para o homem. "Um lance perfeito e falta de medo," ele responde com ousadia. "Se você não se aventurar na Floresta," Braxton acrescenta, "nunca saberá o que poderia encontrar." Alguns homens gritam, dando tapinhas nas costas deles. Kyra, apesar de tudo, segura a língua. Ela não precisa da aprovação dessas pessoas; ela sabe o que tinha feito. "Eles não mataram o javali!" Aidan grita, indignado. "Cale-se," Brandon dispara, olhando para ele. "Diga mais uma palavra e eu vou contar a todos que você mijou nas calças quando ele atacou." "Mas isso não aconteceu!" Aidan protesta. "E você acha que eles vão acreditar em você?" Acrescenta Braxton. Brandon e Braxton dão risadas, e Aidan olha para Kyra, como se quisesse saber o que fazer. Ela balança a cabeça. "Não desperdice o seu tempo," ela fala para ele. "A verdade sempre prevalece." A multidão aumenta à medida que eles atravessam a ponte, e logo eles estão ombro a ombro com as massas, caminhando sobre o fosso. Kyra pode sentir a emoção no ar com o anoitecer, tochas são acesas ao longo da ponte, e a neve se intensifica. Ela olha para cima e seu coração dispara, como sempre, ao ver o enorme portão de pedra de acesso ao forte, guardado por uma dúzia dos homens de seu pai. Na parte superior há lanças de uma grade levadiça, com suas pontas afiadas e barras grossas e fortes o suficiente para impedir a entrada de qualquer inimigo, pronta para ser fechada com o simples tocar de uma buzina. O portão tem nove metros de altura, e no topo há uma ampla plataforma, e ao redor de toda a fortaleza, largas muralhas de pedra repletas de mirantes, sempre mantendo um olhar vigilante. Kyra sempre havia considerado Volis uma bela fortaleza, sentindo orgulho dela. O que lhe dá ainda mais orgulho são os homens em seu interior, os homens de seu pai, muitos dos melhores guerreiros de Escalon, lentamente se reagrupando em Volis depois terem se separado durante a rendição do antigo Rei, atraídos como um ímã para o pai. Mais de uma vez ela havia pedido ao pai que se declarasse o novo rei, como todo o seu povo queria que ele fizesse, mas ele apenas balançava a cabeça, dizendo que aquele não era o seu caminho. Ao se aproximarem do portão, uma dúzia dos homens de seu pai saem montados em seus cavalos, e as massas abrem caminho para eles, que se dirigem ao campo de treinamento, uma grande área circular nos campos do lado de fora do forte, cercado por um muro baixo de pedra. Kyra se vira para vê-los partir com o coração acelerado. Os campos de treinamento são seu lugar favorito. Ela costuma ir até lá para vê-los treinar por horas, estudando cada movimento que eles fazem, a forma como eles montam seus cavalos, a maneira como eles sacam as espadas, arremessam lanças e usam flagelos. Aqueles homens cavalgam para treinar apesar da neve que cai e da noite que se aproxima, mesmo na véspera de uma grande gesta, porque querem treinar, querem aprimorar suas habilidades, porque eles preferem passar um tempo no campo de batalha do que dentro de casa banqueteando - exatamente como ela. Aqueles, ela sente, eram seu verdadeiro povo. Outro g***o dos homens de seu pai sai pelos portões, e quando Kyra chega perto do portão com seus irmãos, os homens se afastam, assim como as massas, abrindo caminho para Brandon e Braxton quando eles se aproximam com o javali. Eles assobiam em admiração e se reúnem ao redor deles, grandes homens musculosos, mais altos até do que seus irmãos, que não eram baixos, a maioria deles usando barbas salpicadas com cinza, todos eles homens endurecidos, com trinta ou quarenta anos, que já tinham visto muitas batalhas, tendo servido o antigo rei e sofrido a indignidade de sua rendição. Homens que nunca teriam se rendido por conta própria. Aqueles eram homens que já tinham visto de tudo e que não ficavam impressionados com muita coisa - mas eles certamente parecem espantados com o javali.
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