01
Gabriella
Eu vivia imersa na música desde que era mais nova, indo e voltando dos concertos entre os 6 e os 8 anos. Acho que havia algo que conectava aquele mundo ao meu coração. Depois de muita dedicação e anos de estudo, hoje posso me considerar enfim uma musicista.
Olhando para o grupo seleto de pessoas a minha frente, sento-me ao piano e repouso minhas mãos sobre suas teclas frias e adormecidas. Eu tinha alguém em minha vida que sempre dizia que uma das melhores criações da humanidade era a música. Por várias noites, nos sentávamos na sala de casa simplesmente para tocar e apreciar o tempo.
Mas isso ficou no passado.
Respiro fundo e permito que meus dedos se movam, dando voz a tudo o que quero expressar através do entoar dos acordes de Nuvole Bianche. Sinto que todos me olham, mas nesse momento nada além da conexão que tenho com o piano importa.
Hoje é o dia da minha festa de despedida. Sim, somente alguém da alta classe do Rio de Janeiro transforma a mudança da filha para outro país em um evento social. As vezes é inevitável não me perguntar se existem pessoas que realmente amam esse tipo de exposição. Pessoas que não conseguem enxergar nada além da classe social a que pertencem.
Mas a quem estou querendo enganar? Afinal, estou aqui cumprindo meu papel de filha prodígio. Tentando fazer todo mundo acreditar que estou comemorando o fato de estar indo para Nova York, EUA, começar uma carreira de sucesso no meio musical.
Mas não é exatamente isso. Ao menos eles acertaram o país, ainda que até isso seja questionável. Quero dizer, essa não era minha opção inicial, mas quando seus pais conhecem muitas pessoas influentes, eventualmente uma delas pode facilitar as coisas para você.
Começo a mover meus dedos com mais fluidez, marcando o compasso da música mentalmente. Então simplesmente me entrego, sentindo como se eu estivesse no palco diante de uma plateia de verdade, apresentando-me.
Quando a música termina, eu mantenho as mãos nas teclas, ouvindo o eco das notas se esvaindo no ar. O silêncio se prolonga por mais alguns instantes antes de irromper em uma salva de palmas.
Levantando-me, faço um breve agradecimento. Quando ergo o rosto, encontro o olhar orgulhoso dos meus pais. Eles são as pessoas mais interessadas em fazer todo mundo acreditar que estou adorando essa festa. O mais deprimente é que todo mundo parece realmente disposto a acreditar nisso. Sempre que passam por mim, reagem com adulação, como se estivessem diante de uma musiscita mundialmente conhecida.
Pelo menos minha melhor amiga sabe como realmente estou me sentindo.
Raquel e eu nos conhecemos desde a infância. Nós somos praticamente inseparáveis. Ao longo dos doze anos que frequentamos a escola particular, ela foi a loira gata que fazia dupla com a morena elegante aqui. Assim que ela foi para São Paulo cursar direito e eu permaneci no Rio cursando música, fizemos um pacto de nos vermos pelo menos algumas vezes por mês. Até agora cumprimos o prometido.
Desde que contei para ela essa história de ir para o Estados Unidos, dois meses atrás, Raquel me garantiu que, independentemente de qualquer coisa, será sempre minha melhor amiga.
Mas, lá no fundo, nós duas sabemos que as coisas vão acabar mudando. E mesmo quando a gente se encontrar, o assunto já não será o mesmo. Raquel vai estar trabalhando para o escritório de advocacia da família e eu vou estar envolvida no mundo dos músicais e concertos.
— Vou voltar no próximo feriado — digo, diante do medo de Raquel sobre o destino das nossas festas. — Podemos marcar alguma coisa aqui.
Ela contrai os lábios brilhantes em reprovação e toma um gole de champanhe.
— Isso vai levar muito tempo — diz, dando uma rápida inspecionada no meu rosto.
— Acho que você pode curtir com as garotas — sugiro, enquanto tomo um gole de champanhe maior que o de Raquel.
Poder beber nas inúmeras reuniões sociais dos meus pais deve ser a única coisa boa de ficar mais velha. Acho que esse é um dos motivos pelo qual, por lei, só é permitido beber depois dos dezoito.
— Não olhe agora, mas preciso te avisar que aquela pessoa acabou de chegar — minha amiga murmura no meu ouvido.
Ela arregala os olhos de forma apreensiva. Não preciso me virar para saber que o motivo da preocupação dela provavelmente é um rapaz chamado Rodrigo porque é essa a reação que todas as minhas amigas tem quando ela e eu estamos no mesmo recinto.
Rodrigo é um desses garotos agradáveis e charmosos que atraem pessoas como um ímã. Até algum tempo atrás, nós éramos bem próximos. Eu namorei o irmão dele, Bernardo, por mais de dois anos, quando éramos mais novos. Provavelmente ainda estaria com ele hoje se o acidente não tivesse acontecido.
Virando-me, eu vejo Rodrigo conversando com alguns amigos da família. Ele olha para mim e sorri, mas seus olhos parecem tristes. A parte de mim que costumava ser amiga dele quer abraçá-lo para que a dor passe. Mas não somos mais amigos. E nossa relação está abalada.
Eu não deveria ter ligado para o irmão dele naquela noite. Essa foi a atitude que mudou o rumo das nossas vidas.
Afasto logo esse pensamento desagradável. Demorei meses para aprender a lidar com a culpa. E até sinto que eu mereço tudo pelo que tenho passado. Mas juro que não consigo acreditar que aquele garoto mereça estar tão triste. No fundo eu espero que algum dia ele consiga se recuperar dos problemas que eu lhe causei.
— Você está bem? — Raquel pergunta, uma ligeira inquietação na voz. Se existe alguém mais preocupada comigo do que meus pais, esse alguém é Raquel.
Desvio o olhar de Rodrigo.
— Claro. Só preciso de um minuto. — Entrego minha taça de champanhe para ela.
Mas fugir não é uma tarefa simples. Sou parada várias vezes por pessoas me dizendo que sempre souberam que eu tinha talento e que uma grande oportunidade estava reservada para mim.
Finalmente consigo me servir de um copo de chá gelado para rebater a dor de cabeça iminente e me dirijo aos fundos para me isolar no jardim, onde quero ficar por um tempinho.
Só que, antes que eu possa escapar, minha mãe me segura pelo braço.
— Aonde você está indo?
Aponto para o salão lotado de pessoas.
— Só vou tomar um ar.
Ela estreita os olhos, mas solta meu braço.
— Todo mundo está orgulhoso de você — minha mãe diz, parecendo ao mesmo tempo aliviada e encantada. — Os Martins disseram que não ficariam surpresos se você estrelasse nos melhores teatros da Broadway.
Por dentro, estou irritada diante de tanta bobagem, mas os anos de treinamento em etiqueta social me fazem apenas levantar as sobrancelhas.
— Espero que tenha dito a ela como isso é absurdo.
Minha mãe sorri.
— Não é absurdo. O que você está fazendo pode ser o passo inicial para o sucesso não só nos Estados Unidos, mas em todo o continente.
— Nem me fale. Graças à interferência dos meus pais, vou ficar a apenas algumas horas de avião daqui.
Minha mãe nem se dá ao trabalho de parecer culpada.
— Gabriella, porque tentar a sorte na Inglaterra, quando você têm a oportunidade de trabalhar com Elizabeth Granger? Ela é uma das maiores compositoras músicais da atualidade nos Estados Unidos. E estamos muito orgulhosos de você.
Eu a encaro.
— Acredito. Foi por isso que quando contei que ia fazer faculdade de música, vocês não falaram comigo por uma semana?
— Ficamos chocados — minha mãe comenta, sem se abalar. — Seu pai e eu sempre imaginamos que fosse cursar administração e assumir a empresa da família.
É em momentos como esse que eu gostaria que a família dos meus pais tivesse herdado muito dinheiro por várias gerações. Sendo assim, hoje teríamos uma empresa com um capital de giro que se auto-sustenta.
Mas não foi isso o que aconteceu.
Meu avô mudou seu destino de homem de classe média ao criar uma agência imobiliária altamente respeitada. Meu pai manteve o sucesso do negócio montado pelo meu avô, e todo mundo espera que a empresa continue na família.
Só que sou filha única.
— Talvez algum dia eu assuma, mãe. Mas essa nunca foi minha prioridade. E no momento preciso me afastar disso tudo, sabe?
Minha mãe balança a cabeça para me interromper.
— Eu sei. Acredite em mim, por mais que participe desse mundinho da alta sociedade, quero que você saiba que tem um mundo lá fora, Gabriella. Mas tem certeza de que não quer ficar um pouco mais perto de casa? Tem um lugar no…
— Já me comprometi, mãe — digo, com delicadeza. — A Sra. Granger já me mandou o cronograma do teatro, e estão esperando que eu chegue na próxima sexta.
Ela suspira.
— Tudo bem. A propósito, tenho me perguntado como anda a filha mais velha dela. Depois do que aconteceu, não deve estar sendo fácil.
— Essa questão não é do nosso interesse. É um assunto pessoal da família Granger. — Digo isso com a maior paciência. É uma indicação clara de como o mundo da minha mãe é pequeno, apesar de suas boas intenções. Ela não conhece ninguém que integrou a SWAT, muito menos alguém que quase perdeu a vida em uma missão.
Não que eu conheça alguém assim, claro. Meu círculo social não está exatamente cheio de membros da SWAT.
— Bom — minha mãe suspira, tirando meus cabelos compridos dos ombros com carinho — Talvez sua presença até seja boa para ela. Mas o mais importante é que a mãe dela está lhe dando uma grande oportunidade e você deve saber aproveitá-la.
Abro um sorriso cansado. Estou ouvindo isso o dia todo, o que me deixa um tanto irritada. Não só porque é condescendente com a coitada da garota com quem eventualmente vou me encontrar, mas porque também me transforma numa pessoa incapaz de criar suas próprias oportunidades.
— Bom, volte logo — ela diz. — Os Martins disseram que ainda não tiveram chance de falar com você.
Provavelmente porque eu os evitei. Nora Martins é o tipo de fofoqueira antipática que tenho evitado a todo custo desde que essa festa se iniciou, e seu marido consegue ser tão desagradável quanto ela.
— Pode deixar — garanto, antes de sair para os jardins. Só quero cinco minutos para mim, preciso disso. É uma chance de ficar longe dessa puxação de saco descabida e da pressão esmagadora que sinto no meu peito sempre que olho para Rodrigo.
Enfim consigo me refugiar no jardim, sentindo a brisa da primavera em minha pele. Está mais quente do que nos anos anteriores e protejo meus olhos do sol enquanto olho para o céu azul.
Mas mesmo cobrindo os olhos, o sol arde em mim, aquecendo-me com remorso e culpa.
Não tenho certeza disso, mas estou começando a achar que a culpa é uma doença. Uma doença infecciosa, que demora a entrar em seu corpo e então te domina, mesmo que você tente combatê-la com todas as suas forças.
— Estou interrompendo? — Pergunta uma voz atrás de mim. A voz de Raquel.
Parte de mim não se surpreende ao vê-la aqui.
— Só precisava tomar um ar — respondo, sem querer preocupá-la. — O que está fazendo aqui?
— O que acha? — Ela diz em tom de sarcasmo, mas de um jeito extraordinariamente meigo. — Precisava ver como minha melhor amiga estava.
Recorro à vaidade e finjo arrumar o cabelo para não precisar encará-la.
— Estou bem.
— Bom, sinto muito em desapontá-la, mas não acredito nem um pouco em suas palavras. Sendo assim vamos pular essa parte e conversar sobre o que está incomodando você?
— Por que acha que tem algo me incomodando?
Ela ergue a sobrancelha. Não sei se adoro ou odeio o fato de Raquel saber exatamente como me sinto. Quer dizer, por um lado acho que diz muito sobre ela o fato de me conhecer tão bem. Por outro… não tem como esconder nada dessa garota. E é exatamente por isso que decido ser sincera com ela.
— Eu ainda me culpo pelo que aconteceu.
As palavras queimam o fundo da minha garganta e, assim que saem dos meus lábios, me sinto ridiculamente sozinha.
Ela não sabe o que dizer depois disso. Nem eu.
Ficamos em silêncio por um longo tempo. A brisa está mais quente, e eu sei que devo voltar para dentro de casa antes que meus pais saiam para me procurar. Passo as mãos nos cabelos e agradeço a Raquel por ela ter ficado do meu lado sem me criticar ou me julgar.
— Você pretende mesmo continuar com essa história de mudança? — Ela sussurra.
— Só preciso de espaço — Digo. Por minha mente passa um turbilhão de pensamentos desesperados sobre o que o futuro me reserva.
— Nós duas sabemos do que realmente se trata essa ideia de ir para Nova York, Gabriella. Mas talvez você não consiga o que está procurando.
— Por favor, Raquel… — O tremor em minha voz é percebido por minha amiga, e ela passa o braço pela minha cintura, me puxando mais perto para um abraço acolhedor.
Raquel sabe que a razão pela qual estou saindo do Brasil não está relacionada apenas a uma grande oportunidade profissional, mas também ao fato de eu me sentir deplorável.
Para mim, ir para os Estados Unidos não é uma forma de seguir meus sonhos e ideais.
É uma forma de tentar me reencontrar.