Jason
Coloco minha maleta na mesinha da salinha e sento no sofá grande, encosto minha cabeça e massageio minha testa. Estou com fome e com sono, sem nenhuma pretensão de sair para ir comprar algo.
O dia no albergue foi puxado, são tantos, tantos dele, parecem que brotam, eu não consigo simplesmente sair e deixar um sem ser atendido, tantos machucados e doentes, sem ninguém por eles.
Meu apartamento é pequeno, sala, um quarto, cozinha e banheiro, não preciso de muito, passo o dia inteiro fora. Não tenho nenhum tipo de luxo aqui, vivi no luxo a vida inteira, até que olhei a minha volta e percebi que tinha muita gente sem nada.
Isso me revoltou, eu não entendia, estudei, trabalhei como voluntário em vários hospitais, viajei para os países que sofriam com os conflitos de seus governantes, dando o que eu tinha, minhas mãos e meu trabalho. Não é fácil, sei que é o mínimo, mas eu continuo fazendo.
Ouço uma batida leve na porta, geralmente alguém vem aqui, eu deixo meu endereço a disposição. Levanto, e vou até a porta. Abro.
Do lado de fora, Flora, uma senhora que sempre vai ao albergue, para tomar insulina. Um rapaz grande carregando nos braços uma moça que parece ser uma adolescente, inconsciente.
— Flora, o que aconteceu? — Ela olha para o corredor e empurra o rapaz para dentro do meu apartamento.
— Cuide dela, não posso ficar com ela. — Começa a dizer assim que fecho a porta, passa a mão o tempo inteiro na roupa, está nervosa.
Aponto meu quarto, o rapaz coloca a moça deitada em minha cama, vejo que ela tem machucados no rosto e em partes de suas pernas expostas, vestia apenas um casaco grande. Pego a lanterna em meu bolso para ver suas pupilas, ao tentar abrir seus olhos ela afasta minhas mãos.
— Está queimando em febre. — Digo ao tocar sua testa, muito quente, deve estar acima de quarenta graus, podiam ter um a convulsão a qualquer instante.
— Não posso ficar com ela. — Flora repete a vai saindo junto com o rapaz.
— Volte aqui, não pode simplesmente deixar alguém aqui assim. — Sigo atrás deles, mas não me ouvem. — Flora, quem é essa moça? Por que não a levou ao albergue?
— Cuide dela, faça isso, você é bom. — Passo a mão em meu cabelo, ela me encara, o rapaz abre a porta. — Não sei quem ela é, achei na rua, cure. — Vai embora fechando a porta atrás de si.
Trabalhar com pessoas em situação de rua tem dessas, eles são um tanto fora de si e agem de forma que é fora dos padrões, as vezes agressivos, desconfiados, mas leais.
Volto para o quarto, a garota em minha cama está tremendo, em parte pela febre alta. Acho que está muito machucada, preciso que tire a roupa para examinar melhor. Me aproximo sem fazer movimentos bruscos.
— Vou ter que tirar sua roupa. — Aviso, antes de tocar nela, tenta me impedir, mas está sem forças, chora e geme. — Não vou te machucar, sou médico, só quero te examinar. — Afasto minha mão e explico com calma, minha voz baixa e firme.
Abre um pouco os olhos, pisca várias vezes e me olha, as lágrimas e gemidos continuam. Mantenho meus olhos nos dela, tentando passar segurança em minhas palavras e atos.— Meu nome é Jason Sanders, sou médico, você está em meu apartamento. — Falo devagar, sem tocar nela. — Me deixe te examinar.
Balança a cabeça, pego uma tesoura, estremece, está com medo, mas não sei a extensão dos seus ferimentos e aquele casaco está muito sujo, alguns pontos com sangue.
— Eu vou cortar a roupa, é só isso. — Explico mantendo meus olhos nos dela. Concorda. Começa a cortar pelo meio, indo o mais rápido que posso, evitando trocá-la sem necessidade. Assim que termino afasto para os lados. São muito hematomas, alguns cortes. Pego um lençol e cubro sua pélvis.
Eu já vi ferimentos como aqueles em algumas moças que veem até o albergue, sinal claro de agressão física, namorado ou marido. O maior roxo está na região das costela, que estão bem evidentes devido sua magreza, está desnutrida. Apalpo os ossos, ela grita alto.
— Não está quebrado. — Felizmente são superficiais, a pele muito branca deixa tudo muito pior. Corto as mangas e vejo o estrago, falo um palavrão baixo. O braço esquerdo está meio retorcido e bastante roxo, visivelmente fraturado.
Vou até um armário onde guardo os medicamentos, e preparo, anestésico, uma solução de soro e glicose para hidratação, antiinflamatórios, remédios para dor e antitérmico, coloco todos dentro do soro, separo um sedativo, coloco tudo dentro de uma bandeja, calço luva.
— Vou colocar um soro em você, administrar medicamentos para dor e alguns para evitar infecção. — Explico olhando para ela, demonstra não estar me entendendo. — Vou precisar dar alguns pontos também, não se preocupe, não vai doer.
Coloco o soro no braço bom, ela não reclama quando uso as agulhas. Uso um anestésico tópico para realizar os pontos, olha enquanto realizo os pontos no maior corte em seu braço, esse parece ser mais recente, no entanto está bem vermelho.
Limpo bem o ferimento da perna, a ferida está visivelmente infeccionada. Dou alguns pontos também, mas terei que continuar a limpar bem. Penso nos medicamentos que ela vai precisar tomar para melhorar. Termino e tiro as luvas.
— Vou imobilizar seu braço quebrado e esperar que não tenha fragmentos, precisamos ir ao hospital fazer um raio-x. — Assim que digo ela tenta levantar, seguro seus ombros. — Ei, não faz isso, fique aí. — Chora, grita, se esperneia. Seguro-a com firmeza. — Pare. — Falo baixo. — Fique calma. — O medo em seus olhos é evidente, não para, mesmo sem forças.
— Me deixe morrer, só me deixe morrer. — A voz dela está rouca e baixa, desespero total.
— Esta delirando, pare, vai machucar mais seu braço. — Tento manter seu braço imobilizado, mas ela se mexe muito. — Vou ter que te apagar, não tem jeito. — Só assim conseguirei enfaixar bem o braço.
— Por favor... Por favor... — Implora e se mexe mais ainda, sento na cama e a seguro pelo ombros com um braço, mantendo-se deitada e imobilizada. Pego o sedativo da bandeja, tiro a tampa com meus dentes, acho as vias do soro e aplico.
— Sinto muito. — Continua se mexendo, mesmo com a dor extrema. Não demora a fazer efeito, a força vai diminuindo, os olhos baixando. — Vou cuidar de você, não tenha medo. — Digo. Em seguida ela fecha os olhos e apaga.