Parte 1 - Primeiro Capítulo
Lívia — 4 anos antes — 7:00 AM — Rio de Janeiro.
— Você nunca me falou da sua família — eu disse dando uma mordida em minha maçã, estávamos no intervalo —, e olha que já estudamos juntas há dois anos.
— É complicado amiga — Anita disse —, eu não moro com meus pais.
— Por que? — Perguntei atirando o que sobrara da maçã na lixeira.
Quando ela ia responder o Tomas apareceu, carregando seu lindo sorriso nos lábios, ele me estendeu a mão e eu a peguei, me levantando.
— Salva pelo gongo — Anita disse rindo.
— Você ainda não escapou, senhorita — pisquei.
Tomas cumprimentou Anita e me arrastou para sua sala antes que o sinal tocasse, me sentei em sua carteira e ele colocou as mãos em minha nuca, nossos lábios se tocaram e iniciamos um beijo quente, cheio de fogo e em total sintonia. Paramos assim que as pessoas voltaram para sala, após o sinal tocar.
— O que acha de ir lá para casa? — Ele disse. — Podemos ver um filme.
— Não sei — mordi meu lábio inferior —, minha tia é meio paranoica.
— Não sei porque você ainda vive com ela, se ela vive lhe batendo.
— Ela é a única que me sobrou Tomas, meus pais foram assassinados, lembra?
— Como eu poderia esquecer? — Ele fez uma pausa —, por favor. Só um pouquinho, vamos direto da escola.
— Tudo bem. Será só mais um coro na vida de Lívia Bermanelli.
Ele travou.
— O que foi Tomas? — Perguntei.
— Você nunca tinha me dito seu sobrenome.
— Foi porque a doida da minha tia disse para não mencionar, mas eu confio em você — respondi sorrindo.
O professor entrou na sala, então eu dei um selinho nele.
— Até mais tarde — saí apressada da sala com um sorriso bobo no rosto.
Eu não conseguia acreditar que ele havia feito aquilo comigo. A única pessoa para quem eu havia dito onde iria era Anita, também comentei o fato do Tomas ter ficado estranho após eu dizer meu sobrenome, com toda minha animação nem me lembrei de perguntar sobre seus pais, mas agora, isso já não importava mais.
Ele morava em uma favela, Rocinha. Me deixou jogada em um quartinho sujo sendo vigiada por homens armados. Meu coração era preenchido por medo e eu não conseguia parar de chorar. Quando a porta se abriu meu coração disparou, mas dessa vez não foi pelo amor que eu sentia por ele, e sim por medo.
— Sinto muito Lívia, deveria ter ouvido sua tia — ele disse.
— Eu não entendo, não fiz nada para vocês. Eu te amei Tomas.
— Não se pode amar inimigos, sinto muito loirinha — fechei os olhos, lembrando dos momentos doces em que ele usava o apelido.
Ele saiu, e outro homem, mais velho e mais forte entrou.
— Você não faz ideia do tanto que eu procurei por você.
— Por mim? Por que?
— A princesinha Bermanelli. Matar seus pais não saciou meu desejo, matar sua doce filha tornou-se minha missão. Mas antes, posso me divertir um pouco — ele sorriu malicioso e tirou o cinto, então eu comecei a gritar.
Eu já estava ali há três dias. Suja, mais por dentro do que por fora. Pedia todos os dias para que Deus me levasse, não aguentava mais tanta tortura. Minhas cordas estavam frouxas, comecei a mexer as mãos no intuito de me soltar. A porta se abriu e eu fiquei quieta. Geraldo era seu nome. Ele era nojento, eu já sabia o que ele faria. Colocou a arma no chão ao lado do colchão velho em que eu estava e começou seu trabalho. Doía e algumas lágrimas escorriam pelo meu rosto. Eu não emitia um único som, percebi que meus gritos, meu choro, tudo só o agradava. Percebi que ele estava distraído e comecei a mexer as mãos tentando me soltar.
— Sabe gatinha, você vai pro inferno — ele disse, ofegante.
Consegui me soltar. Minhas mãos agiram quase que sozinhas em direção a sua arma.
— Nós nos encontraremos lá — quando ele viu a arma parou o que estava fazendo e se afastou —, mas você vai primeiro — pisquei e apertei o gatilho.
Me levantei correndo e me vesti. A porta se abriu, dois caras entraram tentando ver o que aconteceu. Atirei nos dois e saí correndo. Quando aqueles homens me viram correndo se levantaram, uns vieram atrás de mim e outros entraram no quartinho.
Eles iriam me pegar, eu tinha certeza. Então eu ouvi os tiros. Eram muitos, as pessoas da favela começaram a correr, trancar suas casas e seu comércio.
— Tão invadindo, corre, corre — os caras saíram correndo pelas ruas, pelas lajes, armados.
Paralisei, era agora que eu iria morrer. Então um carro preto, blindado, parou do meu lado. A porta se abriu e vi um rosto conhecido, as lágrimas escorreram no mesmo segundo.
— Entra Lívia — Anita disse e eu pulei para dentro.
Ela me abraçou e o carro desceu o morro na mesma velocidade de um tiro.
Quando chegamos a sua casa ela me deu um copo de água com açúcar.
— Você está bem? — Ela perguntou.
— Estou — respondi lhe devolvendo o copo —, o que aconteceu? Como você me achou? E a invasão?
— Respira loira — um cara, encostado em um sofá disse. Aproveitei para olhar em volta, além da Anita tinha duas garotas e quatro garotos. O que se dirigia a mim tinha um fuzil atravessado nas costas, engoli seco.
— Amiga, você foi sequestrada pelo Geraldo, dono da Rocinha. O Tomas é sobrinho dele.
— Era né — soltei um suspiro.
— Por que? O que aconteceu? — Ela olhou para mim.
— Eu matei ele.
— O QUE? — Os garotos perguntaram perplexos.
— Eu não sou uma assassina — comecei a chorar — mas ele estava me estuprando, de novo, e eu consegui me soltar, aí eu vi a arma dele do meu lado — eu falava sem parar, chorando, assustada e apontando para os lados como se ainda estivesse lá.
— Você matou um dos bandidos mais perigosos do Rio de Janeiro — Anita disse com os olhos arregalados.
— Por que eles fizeram isso comigo? Eu nunca fiz m*l a ninguém.
— Amiga, quando eu percebi seu sumiço pedi ajuda ao meu irmão — ela apontou pro garoto do fuzil —, ele se chama Caio. E é traficante aqui do Antares.
Me joguei em seu sofá, colocando as mãos na cabeça.
— Você era filha de Felipe e Diana Bermanelli. Eles eram donos daqui, desse morro. O maior inimigo da Rocinha.
— Não consigo acreditar — respirei fundo e ela prosseguiu.
— Meu tio Cássio, assumiu o morro depois da morte de seus pais e sua tia fugiu com você, para que Geraldo não a encontrasse.
Ela me apresentou as garotas como Luma e Brunessa. Os garotos eram o Caio, o Lucas, o Guilherme e o Conrado. Tomei um banho de muito tempo, mas não o suficiente para me limpar do que aquele cara me fez e vesti uma roupa da Anita.
Quando desci ela me obrigou a comer alguma coisa e o Caio entrou na cozinha.
— O chefe quer ver ela.
— Por que? — Anita perguntou.
— Você começou uma guerra com essa invasão, não faz ideia do tanto de sangue que tem nos olhos do Tomas. O mínimo que nosso tio quer é ver por quem ele colocou o morro em risco.
— Tudo bem — ela respirou fundo —, vai com ele Lívia.
— Você não vem junto?
— Tenho umas coisas para resolver, pode confiar nele.
— Vem loira, eu não mordo — ele sorriu.
...
Estávamos na sala do dono do Antares, ele apagou seu cigarro no cinzeiro e o deixou lá. Seus olhos correram por mim de cima a baixo e eu engoli seco.
— Tem os olhos do seu pai — ele disse, por fim.
— Você conheceu meus pais? — Perguntei.
— Todos conhecem, eles viraram lendas aqui no morro, são como Boonie e Clyde.
Sorri.
— Então quer dizer, que uma coisinha frágil como você matou o poderoso Geraldo?
— É o que parece — respondi.
— Sabe alguma coisa de tráfico?
— Não senhor.
— O senhor tá no céu querida — ele riu —, mas pelo menos sabe atirar não é?
— Mais ou menos.
— O que acha de trabalhar pra mim? — Ele tinha um brilho no olhar diferente, considerei sua proposta, não queria voltar pra casa da minha tia, pra escola. Eu com certeza não estava segura. Abri um sorriso para ele e assenti com a cabeça, ele estendeu a mão para mim e eu a apertei.