"Desculpe, Srta. Legare, mas você nunca terá um bebê e, se por algum milagre engravidar... você nunca conseguirá levar essa criança até o fim."
Aubrey acordou com o veredito ainda ecoando em seus ouvidos. Ela suspirou. O pesadelo era sempre o mesmo, sempre terminava da mesma forma. Ela ainda se lembrava daquele dia, do cheiro de desinfetante do hospital, do noivo apertando sua mão. Aquele foi o dia em que sua vida desmoronou, como se já não estivesse bagunçada o suficiente.
Sua mãe faleceu quando ela era pequena e ela nunca conheceu o pai. Ele havia desaparecido há muito tempo antes de ela chegar ao mundo. De acordo com Ya-Ya, ele era um andarilho, um músico de jazz viajante. Ele veio para o Mardi Gras como um furacão e conquistou o coração de sua mãe. E então ele se foi. Nove meses depois, Aubrey nasceu.
Ela não se lembrava muito sobre sua mãe, exceto o fato de que ela sempre cheirava a morangos. Sua mãe possuía um pequeno bar de jazz perto da Canal Street. De acordo com Ya-Ya, sua mãe o abriu na esperança de que seu pai pudesse, um dia, entrar por aquela porta. Mas ele nunca apareceu.
A mãe de Aubrey e sua tia eram gêmeas e moravam em uma antiga casa em estilo Queen Anne, com uma ampla varanda frontal. Um canto da frente da casa era arredondado, com grandes janelas. Sua fachada colorida e o jardim cheio de ervas e plantas nativas tornavam-na um ponto de referência no bairro de Mid-City. De acordo com a história familiar que Ya-Ya lhe contou, elas eram descendentes de escravos fugidos que encontraram abrigo com uma tribo Houma próxima. Até hoje, Aubrey não sabia o quanto da história era verdade e duvidava que fosse descobrir algum dia. Isso apenas adicionava sabor a uma família já tão pouco convencional.
Sua tia era uma traiteur, uma curandeira energética e leitora de oráculos. Ela fazia pomadas e tinturas com ervas e frequentemente fazia leituras de tarô durante suas visitas semanais ao bar. Embora Ya-Ya tenha mantido o bar em homenagem à sua irmã, ela deixou sua administração nas mãos de alguém com mais experiência.
Por anos, ela vinha domesticando corvos locais, oferecendo comida em troca de qualquer pequeno objeto que eles deixassem em retribuição. Surpreendentemente, os pássaros encontravam uma quantidade impressionante de moedas perdidas e até mesmo uma moeda de ouro, além de bolas de gude, pedras brilhantes, penas, fitas e até mesmo um relógio de bolso.
As crianças do bairro contavam histórias sobre a Bruxa de Baudin e ou evitavam sua casa ou se aproximavam sorrateiramente da cerca de ferro forjado, tentando espiar quando Ya-Ya cuidava do jardim ou alimentava os corvos com a mão, vários dos quais ela havia dado um nome.
A presença constante de vários gatos pretos ao longo dos anos certamente não ajudava a dissipar os rumores sobre a suposta identidade mágica de Ya-Ya. Nem sua decoração anual de Halloween, que ficava cada vez mais elaborada ao longo dos anos, nem seu traje bastante excêntrico, que frequentemente refletia sua herança africana e sua suposta herança indígena americana não confirmada. Mas, enquanto outras pessoas achavam Ya-Ya estranha, para Aubrey tudo aquilo era completamente normal. Talvez fosse inevitável que ela crescesse para se tornar uma artista.
Segundo Ya-Ya, ela percebeu o talento de Aubrey primeiro e transformou a varanda dos fundos fechada em um estúdio de arte. Aubrey certamente não era a primeira artista da família. Ya-Ya fazia joias e talismãs com as oferendas dos corvos e a mãe de Aubrey era uma ceramista. A maioria dos pratos, tigelas, canecas e vasos na casa, assim como os copos e os jarros de shot no bar, eram feitos pelas mãos dela. Na verdade, a roda de cerâmica dela ficava no canto do estúdio de Aubrey até hoje, como uma fonte de inspiração, e no quintal um galpão ainda abrigava seu antigo forno e barris de imersão para esmaltes. Talvez, se ela tivesse vivido mais, Aubrey teria seguido o mesmo caminho.
Sua mãe faleceu quando ela tinha cinco anos. Aubrey não entendeu na época, mas depois ela descobriu que foi devido a complicações causadas pelo diabetes. Apesar de perder a mãe tão jovem, sua vida em casa realmente não mudou muito. Ela continuou vivendo com sua tia na mesma casa, na mesma rua.
Aubrey se formou como líder de turma de sua escola e imediatamente decidiu cursar faculdade de pintura. Querendo expandir seus horizontes, ela foi para a escola em Nova York, onde conheceu sua colega de quarto e futura melhor amiga, Sarah Tomlinson. Embora fossem de mundos diferentes, elas se tornaram irmãs. E depois de conhecer Ruth, elas se tornaram um trio inseparável, se autodenominando Os Três Mosqueteiros: Athos (Sarah), Porthos (Aubrey) e Aramis (Ruth).
Sarah não tinha família, então Aubrey frequentemente a levava a Nova Orleans em cada feriado e intervalo escolar. No início, Sarah hesitava, não querendo se impor, mas a natureza aberta e generosa de Ya-Ya logo a deixou à vontade. Uma das razões pelas quais Aubrey insistia tanto em trazer Sarah era seu apetite insaciável por comidas apimentadas. A culinária cajun de Ya-Ya era imperdível.
Quando Sarah encontrou um sucesso inesperado como escritora, Aubrey foi a primeira a comemorar. E quando Sarah estava estressada pensando sobre o que deveria fazer para a próxima aventura de Rosemary, Aubrey sugeriu Paris, porque... por que não? Não apenas Sarah aceitou a sugestão, mas ela comprou passagens para que Ruth e Aubrey a acompanhassem. Então os Três Mosqueteiros foram para Paris.
Foi uma experiência excelente para todos. Não apenas proporcionou a Sarah uma riqueza de experiências para Rosemary, mas também permitiu que Aubrey visitasse o Louvre e vários marcos artísticos para inspirar sua própria arte. Quando ela voltou para os Estados Unidos, Aubrey estava pronta para deixar sua marca.
Sua primeira exposição em uma galeria foi emocionante, mas ainda mais emocionante porque foi lá que ela conheceu sua noiva. Foi um romance avassalador e Aubrey aproveitou cada minuto. Mas depois de seis meses, sua noiva ficou preocupada por não terem concebido. Aubrey mesma não estava terrivelmente preocupada. Afinal, ambos eram jovens, mas ele insistiu em fazer testes de fertilidade.
O médico teve dificuldade em identificar a causa do que ele chamava de problema de ovulação. Eventualmente, ele destacou as enxaquecas das quais ela costumava sofrer quando era jovem e muitas vezes era obrigada a depender de analgésicos antes de Ya-Ya mudar para abordagem mais holística. Ele decidiu então que essa era a causa raiz, citando que o uso prolongado até mesmo de analgésicos de venda livre poderia levar a problemas de fertilidade.
O diagnóstico já foi r**m o suficiente, mas seu noivo rompeu o noivado bem no saguão do hospital, alegando que ela era apenas metade de uma mulher se não pudesse lhe dar um filho. Aubrey entrou em uma espiral descendente.
Depois disso, ela parou de trabalhar. Sua vida girava em torno de bebidas, drogas, sexo casual com qualquer pessoa disposta: homem ou mulher, qualquer coisa que pudesse fazê-la sentir algo diferente do desespero que a envolvia. Nada mais importava, nem sua arte, amigos ou a família que ela nunca teria. Qual era o motivo para continuar?
Aquelas semanas passaram em um borrão. Mesmo agora, Aubrey não conseguia se lembrar da metade disso. O que ela recordava era descer as escadas uma manhã depois de um excesso e encontrar Ya-Ya havia desmontado a sala de estar. Todos os móveis estavam empilhados no centro e cobertos por plástico. Panos de proteção cobriam os antigos pisos de madeira e Ya-Ya despejava tinta roxa em uma bandeja antes de mergulhar o rolo e pintar a parede em um traço ousado com um 'W'.
"O que você está fazendo?" Aubrey perguntou de forma apática, ainda em um nevoeiro.
"Estava muito bege aqui.", disse Ya-Ya. "Precisava de mais cor."
Aubrey balançou a cabeça e foi para a cozinha fazer uma xícara de café. Ela voltou para a sala de estar e viu sua tia ainda trabalhando arduamente. Seu primeiro pensamento foi voltar para a cama, mas ela também sabia que Ya-Ya continuaria por dias se pretendia pintar o grande cômodo com um teto de três metros de altura sozinha. Suspirando, Aubrey pegou o outro rolo e se juntou a ela.
Passaram a maior parte do dia pintando. Quando terminaram, duas paredes eram roxas e as outras duas eram verdes. O rodapé e o acabamento superior eram amarelos, completando um ambiente inspirado no Mardi Gras. Quando terminaram, eles se jogaram em um dos sofás cobertos de plástico, suados, exaustos e doloridos, mas o cômodo parecia praticamente brilhar.
Ya-Ya o observou com orgulho, "É incrível, não é? O que uma nova camada de tinta pode fazer? Esse cômodo estava velho, cansado e precisando de um pouco de amor. Agora está cheio de cor e orgulho. As pessoas são iguais. Não precisa de muito para recomeçar... você só tem que decidir limpar a lousa. Vou fazer um gumbo. Não sei você, mas estou faminta."
Dando um tapinha no joelho de Aubrey, Ya-Ya se levantou e foi para a cozinha cantarolando para si mesma. Aubrey ficou sentada no sofá por mais um tempo até seus olhos se voltarem para as latas de tinta que sobraram. Parecia que Ya-Ya tinha comprado tinta demais para não correr o risco de ficar sem. Aubrey ficou olhando para elas por mais um tempo antes de pegá-las e levar a tinta extra para seu estúdio.
Apoiada na parede, havia uma grande tela que ela originalmente planejava usar para uma paisagem. Agora, ela colocou as latas de tinta na frente dela, abrindo-as antes de mergulhar um dos pincéis ainda cobertos de cor do projeto da sala de estar. Ao se aproximar da tela, Aubrey levantou o pincel antes de sacudir o pulso e salpicar a tinta no espaço em branco.
Ela hesitou por um momento antes de fazer isso novamente. Com um sorriso diabólico, ela pegou outro pincel, mergulhando-o em outra cor e duplicando o caos. Ela girou e dançou, jogando tinta com abandono selvagem. Eventualmente, ela largou os pincéis e mergulhou as mãos diretamente na tinta, espalhando e até mesmo acertando a tela com os punhos.
Lágrimas encheram seus olhos, embaçando sua visão, enquanto ela jogava tudo o que podia na tela: sua dor, frustrações, medo, raiva, desesperança... Tudo saía de dentro dela. Agarrando a pequena lata de tinta dourada, ela a lançou inteira, cobrindo um canto com amarelo, enquanto finalmente caiu de joelhos, tremendo e incapaz de parar de chorar.
Braços fortes a abraçaram e Ya-Ya a abraçou, balançando-a enquanto acariciava seus cabelos, "Isso mesmo, querida. Deixe sair. Deixe tudo sair. Você esteve segurando essa dor por muito tempo. Liberte-a, querida. Liberte-a."
* * *
Aubrey respirou profundamente, deixando a memória permanecer antes de deixá-la ir. Depois disso, ela voltou a trabalhar e as coisas melhoraram aos poucos. Ela ainda tinha aquela pintura. Ela pendurou na sala de estar acima da lareira, um trabalho do qual até mesmo Jackson Pollock se orgulharia. A sugestão de Ya-Ya fez com que ela intitulasse de Fênix.
Miau?
Piscando, Aubrey olhou para a mesa ao lado de sua cama e viu um dos gatos pretos de Ya-Ya ali, observando-a com curiosos olhos âmbar. Esse se chamava Jim, em referência ao personagem fugitivo de escravos de "As Aventuras de Huckleberry Finn". Ya-Ya nomeava todos os seus gatos em homenagem a figuras famosas afro-americanas, tanto históricas quanto literárias.
Atualmente, havia seis gatos que apareciam regularmente: Celie, Rosa [Parks], Jackie [Robinson], Booker [T. Washington] e Katherine [Johnson], além de Jim. Aubrey não sabia como Ya-Ya os diferenciava. Ela só conhecia Jim porque ele era o único gato que entrava na casa.
"E aí, Jim?", perguntou Aubrey.
O gato piscou.
Aubrey riu. Talvez as excentricidades da sua tia finalmente estivessem começando a influenciá-la. Ela realmente estava conversando com um gato. Aubrey ficou indecisa se deveria virar e roubar mais alguns minutos de sono quando um choro de repente irrompeu do monitor do bebê.