— Um doce pelos seus pensamentos, Jonny!
Marta sorriu ao ver o susto que a suas palavras causaram em João Carlos, que estava distraído, de cabeça baixa, no seu escritório. Marta havia entrado há alguns minutos e ele nem sequer notou.
Marta e Jonny eram amigos desde a universidade, ambos se formaram em direito. Eram muito unidos naquela época e juntos passavam noites inteiras estudando para a então temida prova, para serem admitidos pela Ordem dos Advogados do Brasil.
Além de amigos, eram colegas de trabalho em uma das mais conceituadas firmas de advocacia do país. Jonny era um advogado brilhante e os diretores da firma cogitavam, para muito em breve, uma promoção para ele.
Marta se lembrava de como Jonny era na época da faculdade: Jovial, simpático e sempre alegre, a fazia rir nos momentos e situações mais improváveis. Ela não pôde evitar se apaixonar por ele, embora tenha lutado contra o sentimento no início. Quanto mais tempo passavam juntos, mais o coração dela se rendia. O jeito doce e espontâneo de Jonny a encantou. No entanto, aparentemente, ele nunca percebeu o que ela sentia e ela nunca teve coragem de se declarar, com medo de perder a amizade dele.
Marta nunca se perdoou pela falta de coragem. No dia em que ela decidiu se declarar, marcaram de ir juntos a uma festa na universidade. Marta estava tão animada que comprou um vestido que considerava extremamente “sexy sem ser vulgar”, especialmente para a ocasião.
Seus esforços em se vestir bem foram reconhecidos na reação de Jonny. Ele arregalou os olhos quando a viu.
“Nossa! Marta, você vai ser a garota mais quente do evento, aposto que tem um alvo pra toda essa produção.”
Ele brincou, sorridente. Os olhos verdes dele brilhavam, enquanto ele olhava para o decote do vestido dela.
— Jonny! Olhe para mim enquanto fala comigo, sim? — Disse Marta, com um meio sorriso repreensivo nos lábios.
— Eu estou olhando para você, Marta, posso te garantir isso!
— Olhe para meus olhos, não para meus s***s!
— Você falou em p****s? — Respondeu Jonny, brincalhão, virando-se em seguida em direção de seu carro.
Os dois foram à festa juntos, conversaram animadamente todo o percurso. A noite parecia estar perfeita para Marta e ela poderia jurar que seria uma noite muito importante na vida deles.
E foi…
Assim que chegaram, Marcos, outro colega de curso e melhor amigo de Jonny, se aproximou deles muito contente. Estava acompanhado da irmã dele: Ana.
Ana parecia ter menos de dezoito anos, embora tivesse dezenove, sendo sete anos mais jovem do que o irmão. Ao contrário de Marcos, que media mais de um e oitenta de altura, Ana era baixinha, do tipo magrinha com curvas. Vestia-se de modo simples, apenas uma calça jeans e uma camiseta, coberta por uma jaqueta também jeans. Seu jeito tímido e introvertido contrastava com os modos extrovertidos e seguros de Marcos.
Marta era de longe mais bonita, fazendo o tipo de loira alta, poderosa e sensual de filmes, chamava atenção por onde passava. Ana tinha uma beleza mais simples, pudica com seus cabelos negros presos em um r**o de cavalo e óculos, um tanto deslocada naquele ambiente. Ainda assim, Jonny não conseguiu tirar os olhos dela a noite toda. Os dois conversavam e riam como se conhecessem um ao outro há anos.
Marta percebeu que Jonny parecia sem jeito perto de Ana, muito diferente do jeito seguro e muitas vezes arrogante que ela estava habituada a identificar nele. Ana levava as mãos nervosamente aos cabelos a todo momento, e gradualmente, ela e Jonny foram se isolando do grupo.
Algumas horas depois, os dois se aproximaram do grupo novamente, apenas para informar que Ana precisava ir embora cedo. Ela tinha uma prova no dia seguinte e Jonny logo ofereceu-se para levá-la em casa.
Marta não o viu mais naquela noite, nem nos fins de semana subsequentes.
Cerca de cinco semanas depois, para surpresa de Marta, Jonny e Ana anunciaram o namoro. Depois noivado, então casamento… Marta nunca se declarou e havia se tornado a melhor amiga do homem por quem estava apaixonada…
Ao ouvir as palavras de Marta, Jonny levantou a cabeça, assustado. Seus pensamentos estavam em outro lugar e ele tinha sido pego de surpresa.
— Desculpe-me, Marta, eu não ouvi você entrar. — Ele disse, estampando um sorriso embaraçado no rosto.
— Percebi. Vim aqui para dizer que conseguimos a redução da pena para prisão domiciliar naquele caso de corrupção passiva da esposa do deputado. Diego foi sensacional no caso, pena que você não estava lá para ver....Vamos sair agora para comemorar mais uma vitória de nossa equipe no Beers, vem conosco?
Jonny a olhou com olhos desbotados, que nada tinham do seu costumeiro brilho que o fazia parecer um felino. Marta percebeu as olheiras em volta dos olhos dele, o rosto cansado e abatido, e suspirou. Sentia-se desconsolada ao vê-lo naquele estado. Tão triste e desligado de tudo.
— Não posso Marta. — Respondeu, voltando a abaixar a cabeça.
— Pode sim, e vai! Qual é Jonny? Hoje é sexta-feira e você precisa se distrair um pouco. Se enfiar em trabalho não vai ajudar você a se sentir melhor! Além do mais, é apenas um drinque com seus amigos, não há nada de errado nisso!
Ela o segurou pela mão e o fez levantar. Pousou as mãos nos ombros dele, insistindo para que a acompanhasse.
— Está bem, Marta, eu vou, mas não poderei ficar muito tempo. Quem vai além de nós?
— Jorge, Diego e seu cunhadinho Marcos.
— Hum…— Jonny exibiu um sorriso debochado. — Quem sabe hoje ele finalmente se declara pra você, Marta? Vocês formariam um casal e tanto!
— Você só pode estar de brincadeira, Jonny!
Os dois saíram do escritório rindo. Marta sabia do interesse que Marcos sentia por ela, mas fingia não perceber, se dizendo sempre muito ocupada com o trabalho para pensar em relacionamentos. Na verdade, ela não queria se envolver com nenhum homem, porque não conseguia tirar Jonny dos seus pensamentos. Entretanto, Marta não conseguia evitar certa dose de rancor por Marcos ter-lhes apresentado Ana.
Quando os dois chegaram ao Beers, Marcos, Jorge e Diego, já estavam no terceiro caneco de cerveja.
— Ora, vejam quem chegou! Marta conseguiu tirá-lo da toca! — Disse Marcos, enquanto cumprimentava Jonny com um aperto de mãos.
— Foi difícil, mas eu não sou do tipo de mulher que desiste fácil. — Brincou Marta, piscando para Marcos em cumplicidade.
— Cara, olha aquela morena ali, sozinha sentada, que pedaço! Uma ninfa da noite. — Disse Jorge, passando o braço em volta dos ombros do amigo recém-chegado, para poder virá-lo na direção da mulher a qual se referia. — Parece uma deusa de ébano.
— Está vendo só, Jonny — Marcos ria enquanto falava. — Você não quereria perder o Jorge virando poeta por causa de mulher, não é mesmo?
Todos riram. Jorge era o mais jovem do grupo. Solteiro, terminou a faculdade de direito no ano anterior, mas sendo filho de um dos donos da firma, já trabalhava no escritório de advocacia desde que tinha ingressado na faculdade. Apesar de muito rico e de ser um dos sócios da firma, Jorge era um jovem divertido e simpático. Além disso, tinha a fama de ser muito mulherengo. Não era bonito de fato, seu rosto, um tanto simiesco, não possuía nenhum traço excepcional. O corpo era comum, estatura mediana, pele branca, cabelos castanhos, mas o dinheiro e posição deram-lhe segurança e personalidade. Roupas modernas sob medida, melhores cortes de cabelo e o seu jeito brincalhão o faziam chamar muito a atenção dos olhares femininos nas boates que costumava frequentar.
— Vá logo, Jorge, se demorar muito, pode perder a sua chance. — Disse Marta.
— Jorge, se eu fosse você, ficaria na minha, ela pode estar esperando alguém.— Aconselhou Marcos.
— Então é melhor eu me apressar antes que esse alguém chegue!
Jorge deu um tapinha nas costas de Marcos e foi em direção a mulher. Os outros o observavam enquanto ele cruzava o Beers. Jorge olhou para trás, dando de cara com os seus amigos o observando. Levantou comicamente as sobrancelhas e fez um bico dramático, os amigos compreenderam o seu significado e desviaram o olhar.
— Hey, Marta, vamos dançar um pouco? — Sugeriu Marcos quando começou a tocar uma balada mais lenta.
— Ah, Marcos, não estou muito animada hoje…
— Anda, vamos, essa música é ótima! Não vai negar uma dança a um amigo, vai?
— Qual é Marta, dá uma chance “pro” cara! — Disse Diego.
Jonny e Diego conheceram-se há pouco mais de seis meses, quando Diego foi admitido na firma como advogado. Era amigo de infância de Marta, um homem muito bonito, branco, corte de cabelo perfeito, barba alinhada, corpo magro, porém definido, olhos castanhos, trinta e um anos, a mesma idade de Jonny. Era competente, primava pela ordem nos seus casos, mas teve muita dificuldade no início da sua carreira, sofrendo muito preconceito por sua orientação s****l. Jonny ficou surpreso quando soube que o colega era homossexual. Desculpou-se por sua mentalidade infestada por estereótipos e tornaram-se amigos.
— Anda, Marta, deixe-o pisar um pouco no seu pé. — Brincou Jonny.
Marta olhou para Jonny rapidamente, respirou fundo, deu um meio sorriso e aceitou o convite.
— Tudo bem, mas só uma música!
Quando os dois se afastaram da mesa, indo em direção ao meio da pista, Diego bebeu um gole de seu chope, em seguida olhou seriamente para Jonny.
— Você sabe que ela é caidinha por você, “né”, Jonny?
— Que besteira é essa, Diego?! — Respondeu Jonny rindo, duvidando das palavras de Diego, que permaneceu sério e ergueu as sobrancelhas.
— Meu Deus! Não creio que você realmente nunca percebeu o interesse dela?
— Marta e eu somos amigos há quase dez anos, Diego! A conheci antes mesmo de conhecer a minha esposa.
— Sei, e para ela estar gamadinha em você, vocês teriam que ser inimigos?
Jonny sorriu sem graça. Na verdade, ele tinha desconfiado dos sentimentos de Marta por ele algumas vezes durante a graduação. Quando a conheceu, ficou deslumbrado com a beleza dela. Ele era apenas um cotista magricela inseguro, nunca passou pela cabeça dele tentar um “algo a mais”. Além de ser “muita areia para o caminhãozinho dele”, naquela época, ela tinha um namorado muito popular e Jonny nunca pensou que teria chance. Depois, com o passar do tempo, passou a vê-la apenas como amiga, quase irmã.
Há um tempo, eles estavam trabalhando juntos em um caso, o cliente estava sendo acusado de assassinato. Ele precisou de uns arquivos e sabia que ela tinha uma cópia no notebook. Como ela tinha ido ao fórum e ele estava com pressa, foi até a mesa dela e ligou o notebook. Surpreendeu-se ao ver sua foto como papel de parede. Era uma foto dos dois abraçados na festa de formatura dele. Na verdade, ao posarem para aquela foto, ele posicionou-se no meio. De um lado, Ana, que na época era sua namorada, e do outro, Marta.
Ela tinha deliberadamente cortado Ana da fotografia. Ele nunca contou isso a ninguém e Marta nunca soube o que ele havia visto. Jonny achou melhor fingir não ter visto nada. O fato aconteceu há mais de dois anos.
Achava constrangedor ouvir aquilo de outra pessoa, por mais que não quisesse admitir, não podia ser cínico e negar.
— Talvez tenha sido no passado, mas não agora, depois de todos esses anos.— Jonny falava mais para si mesmo do que para Diego.
— Está bem, Jonny, enterre a sua cabeça na areia, se quiser. Conta, como está a sua esposa?
— Está melhor, eu acho… com o tempo ela ficará bem… — Jonny respondeu em voz baixa, seu rosto anuviou-se.
— Vai sim, Jonny! Ana é guerreira, tudo vai ficar bem entre vocês, tenho certeza. Você tem um tesouro em casa!
— Eu sei… eu sei.
Respondeu Jonny ao pensar na esposa.
Naquela manhã, ele fez uma tentativa de reaproximação. Acordou bem cedo, preparou o café da manhã preferido dela: Suco de laranja natural e sanduíche de queijo quente. No centro da bandeja, uma rosa amarela. Levou para ela na cama e a acordou carinhosamente. Ela abriu os olhos e sorriu.
Foi o sorriso de Ana que o fez se apaixonar por ela desde a primeira vez que a viu, e mais uma vez naquela manhã, depois de tanto tempo. Ele não se lembrava mais da última vez que a viu sorrir…
◆◆◆
— Que lindo, João! — Ana segurou a rosa e a cheirou.
Das pessoas que o conheciam, Ana era a única a chamá-lo pelo nome de batismo. Algumas vezes apenas João e quando estava zangada, João Carlos.
Ela pôs a bandeja de lado e o abraçou.
— Obrigada, meu amor! — Ela disse com a voz fraca, quase um sussurro.
Permaneceram abraçados por um tempo, então ele a beijou na testa, como não fazia há meses. O coração dele bateu acelerado contra o peito quando ela aceitou o beijo com um sorriso. Jonny, então, a beijou na bochecha, e na outra, um pouco mais demorado… desceu os lábios pelo queixo, se dirigindo para o pescoço, passou a mão pela cabeça dela, sentiu o toque sedoso dos cabelos, o perfume…
Então, ela empurrou-o com força, afastando-o com um grito.
— Pare! Pare, por favor, não me toque!
Com o desespero da ação de Ana, a bandeja caiu no chão. O som do prato e do copo se quebrando ecoaram pela casa. Jonny se afastou, angustiado. Os olhos ardiam com as lágrimas que queriam escapar. A mão gelada, pelo sentimento de culpa e impotência, apertava o coração dele.
Sentiu-se chegar ao fundo do poço, um “beco sem saída.”
Ana se levantou e começou a catar os cacos, tentando freneticamente arrumar a bagunça ao ver o marido chorar.
— Sinto muito, João… O que eu fiz! Eu já arrumo tudo, perdoe-me… você não merece isso… Eu não consigo… Eu quero, mas… Eu devia ter morrido, assim você poderia ser feliz novamente!
— Não fale essas coisas, Ana! — Disse Jonny, levantando e enxugando as lágrimas com as costas da mão. — É melhor eu sair… Eu preciso me trocar, tenho que chegar cedo ao escritório hoje.
Jonny trocou de roupas no outro quarto, onde dormia desde o dia em que a sua vida desmoronou. Passou pela porta do quarto que antes era deles, suspirou e dirigiu-se à porta da entrada da casa.
Saiu sem se despedir.