Eduardo olhou mais uma vez para as palavras que acabara de escrever em seu bloco de anotações. Respirou fundo, balançando a cabeça insatisfeito. Arrancou a folha com um misto de raiva e frustração, amassou-a e atirou-a no cesto de lixo, junto com as outras que já tinham sofrido a mesma rejeição.
Faltavam poucos meses para o concurso de música voltado à descoberta de novos talentos. Eduardo participou do concurso anterior, sua música conseguiu o segundo lugar, mas isso não bastava. Precisava conseguir o prêmio em dinheiro, além do contrato com uma renomada gravadora. Ao olhar mais uma vez para a pilha de bolas de papel dentro da lixeira, Eduardo se lembrou das palavras de um dos julgadores do concurso:
"Sua música é boa, você tem talento, mas precisa encontrar a alma de sua música dentro de si, para que ela chegue até o público".
Aquelas palavras ecoavam na mente de Eduardo, deixando-o ainda mais irritado. Levantou-se da cama e começou a andar de um lado para o outro em seu quarto.
"O que esse jurado pensa que sabe sobre música? Encontrar a alma da minha música? Quanta besteira!"
Eduardo olhou para o bloco sobre a cama, então para o violão, e soltando o ar dos pulmões de maneira irritada, saiu do quarto, batendo a porta atrás de si com um estrondo.
— Eita! Cara, o que houve? — Perguntou Rafael, que estava parado no corredor da Pensão Universitária.
Rafael era um jovem de 22 anos, estatura mediana, loiro de olhos azuis e rosto angelical, muito popular entre as garotas da faculdade. Somados a Renato, Val e Alex, eles formavam um grupo de cinco amigos inseparáveis, que, se fossem personagens de um livro, se encaixariam perfeitamente no estereótipo de Bad Boys.
Pelo menos assim que eram vistos na universidade por seus colegas e professores, mas a vida real é muito mais complexa...
— Nada, só estou de mau humor. — Respondeu Eduardo, enquanto continuava a seguir na direção da saída.
— Qual a novidade? Você sempre está m*l-humorado! — Rafael soltou uma risada e seguiu Eduardo pelos corredores.
— Sabe quando o pessoal vai chegar? — Perguntou Rafael.
— Não. Val disse que voltaria hoje da casa do pai, mas não disse a hora. Os outros eu não faço ideia, sabe como eles são...
Era a última semana de férias e muitos alunos, que moravam na pensão universitária, ainda estavam nas casas de suas famílias. Rafael chegou pela manhã, Val passou uma semana na casa do pai e já estava à caminho de volta para a pensão. Os irmãos Renato e Alex disseram por telefone que só voltariam no dia seguinte. Eduardo ficou na pensão, como fez nos últimos anos...
— Como estão as coisas com ela? — A voz de Rafael mudou, se tornando hesitante devido à delicadeza do assunto, mas demonstrando sincera preocupação.
— Do mesmo jeito... Eu... Eu ainda não sei o que fazer... — Eduardo respondeu com o rosto sombrio, sem olhar para o amigo.
— Sinto muito, cara... —Rafael abraçou o amigo, maio de lado, de modo consolador. — Tudo vai dar certo, sabe que sempre vai poder contar comigo, não sabe?
Eduardo balançou a cabeça devagar, concordando com o amigo, sem dizer nada.
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Val estava sentado no trem distraído, ouvindo músicas pelo celular. Seus dedos brincavam com o fio dos fones de ouvido sobre o peito. Suas pernas estavam dormentes devido às duas horas de viagem que se seguiram. Olhou pela janela e suspirou... Mais três horas, incluindo cinco paradas de tortura, antes de chegar em casa.
Ele tinha saído cedo de casa, despedindo-se do pai cinco horas da manhã, na estação ferroviária da cidadezinha onde o pai vivia com sua nova esposa e o meio-irmão de Val.
Val não gostava de deixar a mãe sozinha na pensão, especialmente para visitar o pai e a madrasta, duas pessoas que ele m*l conseguia suportar. Mas ele gostava muito do meio-irmão e aceitava aturar a companhia do pai para manter contato com o pequeno Lucas.
Afinal, o menino praticamente idolatrava o irmão mais velho e não tinha culpa das ações dos pais deles...
Olhou as horas em seu celular, passavam vinte minutos das sete horas. Àquela hora ele encontrou assentos vazios, porém, depois de atravessar as duas primeiras cidadezinhas o trem sempre lotava, não importando a hora do dia. Suas previsões se concretizaram já na terceira estação, quando o trem lotou como uma lata de sardinhas e os passageiros que entraram ali teriam que seguir viagem em pé.
Ele olhou em volta, observando os rostos distraídos dos passageiros que acabaram de entrar, quando viu uma jovem aparentando cerca de dezoito anos, que carregava uma enorme bolsa de viagem com dificuldade. Ela fazia caretas à medida que se espremia para passar, pedindo licença aos demais passageiros, enquanto procurava um lugar confortável, se é que isso existe em um trem lotado...
Val levantou a cabeça para melhor observar a jovem que parou no meio do corredor do trem. As feições dela demonstravam o desânimo de quem acabou de tomar conhecimento do suplício que teria que enfrentar. Val passou a mão pelo rosto, escondendo o sorriso que se formou em sua boca ao observá-la. Cerca de 1,70, talvez um pouco mais. Morena, cabelos lisos, negros e compridos, presos por um r**o de cavalo. Vestia uma calça (jeans) justa e uma camiseta branca, bastante comprida, que valorizava seu corpo bem feito.
"Uau! Que corpão!"
Pensou, ainda com o sorriso no rosto. Voltou seu olhar para a tela do celular, escolhendo outra música para ouvir. Balançou a cabeça, seguindo as batidas da música e olhou novamente em direção a jovem que chamou sua atenção, mas não a encontrou.
Com a testa franzida, ergueu o corpo e olhou em volta. Um homem de meia-idade, se posicionando quase no meio do corredor, atrapalhava sua visão. Val continuou procurando a jovem discretamente, quando desceu o olhar e percebeu que o tal homem se posicionara exatamente atrás da jovem. O trem fez uma curva e Val pôde ver o rosto dela com a fisionomia contrariada e nervosa. A cada sacudidela do trem, o homem se esfregava ou passava a mão nela, ela olhava para o homem com os olhos arregalados, demonstrando irritação. Depois de tentar "chegar para lá", para evitar o contato com o inconveniente estranho, a jovem decidiu sair do lugar onde estava, carregando mais uma vez o peso de sua bolsa de viagem com dificuldade para um lugar mais próximo de Val, que agora a observava mais atentamente.
O rosto de Val não estampava mais nenhum sorriso.
O homem, sem nem ao menos disfarçar, seguiu a jovem e se posicionou mais uma vez atrás dela. Outra sacudidela do trem, e a mão do homem tocou mais uma vez a jovem, apalpando-a. Ela se virou irritada, mas antes que dissesse algo, Val interveio.
— Qual é a tua, p********o? Quem te deu o direito de tocar no que não te pertence? — O som da voz de Val ecoou pelo trem, todos os passageiros olharam em sua direção. A jovem olhou para Val com os olhos arregalados de surpresa. — Não tem vergonha na cara não, oh, b****a? — Val completou, as mãos fechadas em punhos.
O estranho olhou para Val com o rosto exibindo ressentimento e indignação, fingindo ser vítima de uma injustiça. Estava pronto para responder, mas fechou a boca no mesmo instante que viu Val se levantar. Os olhos dele se arregalaram ao se depararem com o jovem "Hulk" de mais de 1.90 m de altura, corpo musculoso de boxeador e a expressão do rosto indicando pura fúria.
Acovardado, o homem resmungou algumas palavras que Val não conseguiu entender e mudou de vagão.
—Tudo bem com você, princesa? — Perguntou Val, ainda olhando na direção que o estranho p********o tinha tomado.
—Sim... Eu estou bem! — Ela respondeu com a voz tímida.
— Gostaria de se sentar? — Perguntou Val ainda de pé.
A jovem o olhou agradecida e, sacudindo a cabeça, aceitou a oferta. Ela levantou a pesada bolsa que carregava e se preparou para sentar no lugar de Val. Ela não sabia, mas Val não tinha a menor intenção de seguir viagem em pé. Essa ideia, aliás, não passou pela cabeça dele em momento algum. Val simplesmente olhou para a pessoa sentada a seu lado, um rapaz magro, aparentando uns dezoito anos de idade, com óculos de aros grossos, escondendo seus tímidos olhos que estavam concentrados lendo Harry Potter e alheios a comoção.
— Hey, você! — Disse Val, com voz autoritária.
O rapaz levantou o rosto e ajeitou os óculos para dar ouvidos ao enorme Hulk desconhecido que se dirigia a ele.
— Levanta daí e deixa a dama sentar, coisa estranha! — Gritou Val, dando uma t**a no topo da cabeça do rapaz. Com o susto, o rapaz deixou o livro cair no chão e soltou um grito um tanto estridente e desproporcional, que fez Val olhar para ele com as sobrancelhas franzidas.
Hm...
A jovem mais uma vez arregalou os olhos, surpresa com a atitude dele, desviando o olhar de Val para o jovem fã de Harry Potter, que imediatamente pegou o livro e se levantou para que ela sentasse, sem nem ao menos olhar para ela. Ele desapareceu em meio aos passageiros antes que ela dissesse alguma coisa. Ela pretendia dizer que ele não precisava se levantar, ou pelo menos agradecer, mas ele correu para longe de Val, apavorado.
— Muito bem, meu rapaz, todos deveriam ser cavalheiros como você! — Gritou Val, olhando na direção que o rapaz seguiu.
Val indicou o lugar perto da janela para que ela se sentasse com uma reverência, estampando um sorriso sincero no rosto. A jovem, como se saísse de um transe, sentou-se hesitante. Depois de alguns instantes de silêncio, ela decidiu se apresentar.
— Obrigada... — Disse ela, colocando a imensa bolsa sob os pés. — Me chamo Bianca Barreto. —Completou, estendendo a mão para cumprimentá-lo.
— Lindo nome, BB. — Val pegou a mão dela e levou até os lábios, mais uma vez com uma reverência. — Meus amigos me chamam de Val.
— Muito prazer em te conhecer, Val, e mais uma vez obrigada por me defender.
— Não fiz mais do que minha obrigação. — Respondeu, com uma piscadela. — Pervertidos como ele mancham a imagem de nós, homens decentes.
Bianca sorriu encabulada e olhou para a mochila que estava no chão, entre as pernas de Val, e observou o símbolo estampado nela.
— Esse símbolo é da U.C.C, você estuda lá?
— Sim BB, estou voltando para lá, já que resta apenas uma semana de férias.
Bianca estava aliviada por conhecer alguém que estuda na mesma Universidade onde se matriculou. Não conhecer ninguém era excitante, mas apavorante. Ter pelo menos um conhecido tornaria tudo mais fácil.
— Que coincidência! — Comentou animada. — Estou indo para lá também, é meu primeiro período. Conhece a Pensão Universitária?
— Conheço sim! Vai se hospedar por lá?— O sorriso de Val se alargou.
— Vou! Acertei tudo pelo telefone com uma senhora muito simpática que me atendeu.
Dessa vez foi Val quem arregalou os olhos, surpreso. Lentamente seus lábios foram desenhando um sorriso mefistofélico.
"Isso vai ser muito interessante...".